Julien Sorel: Sua Consciência Moral
*Cacilda Portela
Escrevo sobre Julien Sorel para entender porque muitas de suas ações, principalmente as referentes ao crime e à punição, são realizadas por dever. O dever entendido como razão, afetividade, sociedade e intercâmbio cultural. Entender também seu desejo de fazer uma grande fortuna e ser um homem brilhante. Dever e ambição permeiam toda sua vida e o levou a traçar um plano de ação só interrompido depois do crime e autopunição.
O texto não tem a intenção da verdade, do novo, do não dito; mas de ressaltar o caráter de acontecimento e suspender a soberania do significante. (M. Foucault)
Julien aceita a sua punição como um dever moral. Julga e age segundo princípio interior ideal de respeito à dignidade humana. Tem a liberdade de fazer valer a sua vontade e fixar os seus próprios objetivos ou fins. No mundo do dever ser ou dos fins valem os julgamentos morais. Sua ação é julgada segundo os critérios do bem e do mal, do certo e do errado, do justo e do injusto.
Sua consciência moral foi sendo construída e reconstruída na infância em sua interação com o grupo. Existiu entre Julien, o cirurgião-mor e o abade Chélan uma relação de afeto e de cooperação, na qual se tinha presente o livre intercâmbio de pontos de vista; havia uma relação de igualdade de poder de ação onde prosperou o respeito mútuo e o amor. O respeito às regras ou o modo como a consciência se obriga a respeitá-las. O pai avarento e os irmãos o desprezavam porque ele tinha um porte fraco para o trabalho na marcenaria, e porque preferia as histórias sobre Napoleão contadas pelo cirurgião-mor, como também a Bíblia, cujo conhecimento lhe permitiria entrada para o seminário.
Na casa do Senhor de Rênal e depois no seminário, Julien via hipocrisia e desprezo. O lucro, o luxo, as condecorações, o orgulho e as carreiras de barão, marquês e duque, ou de cura, monsenhor e bispo. Julien desejava construir uma grande fortuna e ser uma pessoa brilhante, mas não a qualquer preço.
Sua paixão eram os livros. Até ser preceptor dos filhos do Senhor de Rênal, Julien só tinha três livros: A Bíblia, em latim, que sabia de cor e podia recitar de trás para frente (era importante para a sua ascensão social), o Memorial de Santa Helena e As Confissões de Rousseau, e precisava escondê-los de todos com quem convivia. Como preceptor, utilizava como artifício para compra de livros que interessavam a ele, a necessidade de aprimorar a educação das crianças que os pais percebiam apresentando grandes progressos depois de sua chegada. No seminário, recebe do bispo de Besançon (que tinha setenta e cinco anos e preocupava-se muito pouco com o que aconteceria em dez anos…) seis volumes de Tácito e as palavras elogiosas: não esperava encontrar um doutor em um aluno do meu seminário. Embora o presente não seja muito canônico, quero dar-lhe um Tácito. No palacete do marquês de La Mole fica deslumbrado com a biblioteca e pôde se imaginar lendo todos os livros.
Em Paris, e como secretário do marquês, ia vencendo etapas para a construção de uma grande fortuna e tornar-se uma pessoa brilhante. No primeiro jantar com a família do marquês e convidados, Julien se saiu muito bem. Submetido a uma espécie de exame, não se deixou intimidar e respondeu apresentando ideias e um latim perfeito. Desde o seminário ele fazia pouco caso dos homens e dificilmente se deixava intimidar por eles. Assim que percebeu que Julien tinha ideias e um caráter firme, o marquês o encarregava de novos negócios e foi possível empreender novas especulações. O trabalho de Julien era realizado com o ardor de uma grande ambição. O marquês se afeiçoa ao seu secretário.
Julien se acostumara aos salões de Paris e outros da Europa. Suas ideias e sentimentos expressavam uma conduta e princípios morais que não exprimiam meramente a intuição moral de uma cultura ou época específica.
Na prisão, declara ao juiz: mereço a morte e a espero. Não via nada mais claro do que o seu caso: eu quis matar, devo ser morto. Considerava todas as coisas sobre um novo prisma. Não tinha mais a ambição de uma fortuna colossal. Quando interrogado pelo seu confessor para aceitar o indulto, Julien se revolta e exclama fui ambicioso… agi segundo as conveniências do meu tempo. Não pensava em seus êxitos em Paris. E não triunfar era sua única vergonha.
Julien é punido pela transgressão da lei ou direito positivo. Por não integrar-se no contexto societário, subordinando-se ao interesse geral. Não há margem para a liberdade do sujeito, não há conflitos morais, não há princípios que orientam a ação individual. Para a sociedade a objetividade do social (das leis) prevalece sobre a subjetividade do indivíduo. A lei que se impõe com autoridade implacável ao indivíduo, que sofre punições, não para repor o dano causado pela transgressão da norma, mas para reafirmar diante da sociedade a validade da norma que foi transgredida. Julien não considera essa lei uma justiça superior.
Pode ser importante mencionar a existência de um descompasso entre as estruturas autoritárias repressivas da sociedade e as estruturas de consciência moral atingidas.
Quando soube pelo carcereiro que a Senhora de Rênal não morreu, cessou o estado de irritação física e de desatino desde que saíra de Paris para Verrières onde cometeu o crime. E foi possível pensar:
Como seria feliz em dizer-lhe todo o horror que sinto do meu crime! Apenas estas palavras: considero-me justamente condenado; e que bastariam apenas duas ou três mil libras de renda para viver feliz em Vergy com ela…
Julie é condenado à morte por burgueses provincianos indignados que, aspirando às benesses da realeza burguesa, visavam desencorajar os jovens nascidos de uma classe inferior e oprimidos pela pobreza que tiveram, como ele, a felicidade de dispor de uma boa educação e a audácia de introduzir-se na sociedade dos ricos e poderosos.Comprou o revolver, pediu que a arma fosse carregada e deflagrou dois tiros contra a Senhora de Rênal que o perdoou pelo atentado. Revê a Senhora de Rênal antes de sua morte e por um bom tempo choraram juntos. Ela esclarece o motivo da carta que fez Julien cometer o crime.
Seu confessor comparece à prisão e pede que Julien solicite o indulto. A resposta é que nada mais lhe restará caso se despreze a si mesmo. Fui ambicioso e não quero absolutamente censurar-me por isso; agi, então, segundo as conveniências do tempo. Agora vivo só do dia de hoje.
Na prisão, ele filosofa: não existe absolutamente direito natural; esse termo não passa de uma tolice obsoleta… Julien não nega o direito natural. Acredita no direito natural como a lei que elabora a moral através da razão. Refere-se ao Código de Napoleão que inverte as relações tradicionais entre direito natural e a lei (direito positivo), não negando o primeiro, mas desvalorizando sua importância e significado prático. É a concepção rigidamente estatal do direito, que tem na lei a única e verdadeira.
Estou isolado aqui nesta prisão; mas não vivi isolado na terra; tinha a poderosa ideia do dever. O dever que me impus com ou sem razão… foi como o tronco de uma árvore sólida, na qual eu me apoiava durante a tempestade; eu vacilava, era agitado, mas não era levado…
Nem sempre agiu por dever porque nem sempre agiu com a razão, mas também por interesse, inclinação ou paixão. Julien tem uma máxima: quis matar, devo morrer, e age de acordo com a lei da sua consciência. Julien tinha ainda muito a percorrer e saberia encontrar o caminho.
Era muito jovem quando foi decapitado. A idade lhe daria o exato valor da riqueza, porque ele tinha um caráter firme e um coração bom.
Duas coisas me enchem a alma de crescente admiração e respeito, quanto mais intensa e frequentemente o pensamento delas se ocupa: o céu estrelado sobre mim e a lei moral dentro de mim. Kant (primeiro filósofo a desenvolver uma teoria sobre moral).
* Cacilda Portela é advogada, pesquisadora social, ensaísta.