SINOS DA AGONIA

Escritor Autran Dourado morre aos 86 anos no Rio
Folha S. Paulo – 30/09/2012 – O romancista mineiro Autran Dourado, autor de “Ópera dos Mortos” (1967), morreu aos 86 anos, por volta das 7h30 deste domingo (30), em sua casa, em Botafogo, zona sul do Rio. Segundo familiares, ele sofria de problemas respiratórios crônicos e teve uma hemorragia estomacal pela manhã. Dourado havia ficado internado por cerca de cinco meses no Hospital São Lucas, em Copacabana, na zona sul do Rio, para tratamento de problemas respiratórios, segundo a família. Teve alta há dois meses e, desde então, estava em casa. O escritor deixa a mulher, Lúcia Campos, com quem foi casado por mais de 60 anos, quatro filhos, dez netos e dois bisnetos.
Esta notícia da Folha de São Paulo me fez lembrar da leitura de OS SINOS DA AGONIA na oficina de Raimundo Carrero em 2006. Foi para mim um desafio estimulante. A estrutura do romance obrigou-me a várias leituras para poder compreendê-lo e as discussões na oficina foram acaloradas. Li outros livros de Autran Dourado, mas aquele marcou o início de meu esforço para entender a complexidade do texto literário e tentar usar o que aprendi no que escrevo. Devo isto a muita gente, inclusive ao grande escritor mineiro.

RESENHA

BOA MISTURA

Em seu livro LENDO LOLITA EM TEERÃ, com subtítulo Memórias de uma resistência literária, a escritora e professora de literatura iraniana Azar Nafisi narra a difícil vida das mulheres na república muçulmana e, falando de seu trabalho nas universidades, comenta com viva paixão as obras de Vladimir Nabokov, Francis Scott Fitzgerald, Henry James e Jane Austen, além de fazer referências a muitos outros escritores famosos. Uma boa mistura, portanto, de política e literatura. Refere-se à forma como cada um de seus alunos reage contra a opressão, alguns pagando com a morte o desafio ao regime. Em 1997, ela o marido e os dois filhos emigram para os Estados Unidos. O livro tem 417 páginas com tradução de Fernando Esteves e foi editado pela BestBolso, Rio, 2009.

CONTO

A CABEÇA DE UM HEROI

 

                                                                                                                                                                                                     César Garcia – maio 2011

         Manuel Amaro foi à guerra disposto a dar a vida pelo Brasil e pela democracia no mundo. Chorava, ao pensar na mulher e nos dois filhos. Sabia do risco de não voltar, morto nos campos de batalha. Que seria da família, perguntava-se. Encontrava consolo na crença de que não seriam abandonados pelo governo e teriam orgulho de descenderem de um herói. Imaginava-se vítima de uma grande bomba que despedaçasse seu corpo. Apenas a cabeça seria repatriada e entregue solenemente aos familiares. Antes, porém, daria cabo de pelo menos uma dúzia de inimigos. Não ficaria na retaguarda, faria questão de avançar com a infantaria, ganhando terreno a cada passo, arrastando-se como cobra no solo italiano. Em julho de 1944 estava em Nápoles e tomou parte na ocupação de Massarosa. Ferido, baixou hospital, onde teve uma perna amputada. Contra a vontade, foi repatriado e apesar de ter ganho uma medalha aí começaram suas desilusões com os poderosos do mundo. De volta ao Brasil, esperava ser recebido por alguma autoridade, talvez o próprio prefeito do Recife, Dr. Antônio de Novais Filho de quem era admirador. No cais do porto, estava, sim, a família e mais ninguém que ele conhecesse. Mais do que a medalha, ostentava a muleta que fez chorar a mulher e os filhos.

         Já em casa, teve a sensação de estar apenas em visita à família, que voltaria logo à Itália. Seu lugar não era mais ali, na segurança e no conforto. Desejava voltar à luta para terminar um serviço interrompido, matar inimigos e morrer. A expressão triste e silenciosa foi atribuída pela mulher à perda do membro inferior, “questão de tempo” – pensou Imaculada. Os vizinhos chegavam alegres, querendo homenagear o herói e tentavam consolá-lo pela amputação. Nada nem ninguém, no entanto, conseguia um sorriso, muito menos uma descrição das cenas de guerra. Para livrar-se das perguntas, Manuel dizia que mais tarde, quando se sentisse melhor, contaria o que vira.

         Imaculada e os dois filhos faziam tudo para animar o ambiente. Ligavam o rádio, arranjavam flores em jarros, e a cozinheira caprichava nas receitas, tudoem vão. Umdia, um médico entrevistado na emissora de rádio usou a expressão “neurose de guerra”. Imaculada pensou: “é isto que ele tem”. Falou primeiro com sua ginecologista, parenta em segundo grau. A médica disse que seria melhor conversar com um psiquiatra. Manuel foi, a contragosto, dizendo que não tinha nada de maluco.

         O médico começou perguntando como ele se sentia. Respondeu: bem.

         – Então, por que veio procurar-me?

         – Minha mulher insistiu até me vencer pelo cansaço. Diz que estou com neurose de guerra.

         – Já deu o diagnóstico?

         – Já.

         – E o senhor, que acha?

         – Estive pouco tempo no campo de batalha, o suficiente para mudar de idéia a respeito da vida. No navio, queria morrer defendendo o Brasil e a democracia. Achava que morreria numa explosão e a família receberia apenas minha cabeça e uma gorda pensão. Alguma rua teria meu nome, seria lembrado como herói. Na verdade, perdi uma perna e hoje ando com auxílio desta muleta. Tive esperança de mesmo assim ter algum reconhecimento, mas o tempo passou e tudo se tornou normal. Parece até que nasci com uma perna só. Há algo errado. Não fui à guerra para voltar. Quem sou eu na minha casa? Um ex-combatente, um deficiente. Penso naquela multidão de jovens brasileiros, americanos, italianos, alemães, todos se matando para não morrer. Ali no campo ninguém pensava em política, país, nada. Eu pensava em matar o inimigo antes que ele me acertasse. Minha vontade de morrer pela pátria desaparecia da cabeça e eu tratava de acertar o tiro em um homem que só existia para me eliminar. Não o conhecia, não sabia se ainda era solteiro, filho único, um bruto qualquer ou um poeta. Só me interessava a certeza de que estava de posse de um fuzil talvez melhor do que o meu e apontava sua mira para mim. Uma bala de fuzil atravessa qualquer capacete e perfura o crânio ou quebra uma costela e abre o coração em pedaços. É o melhor que acontece a um soldado. Pior é ter o fêmur fraturado e não poder levantar-se. Sangrar até morrer ou ser levado em maca contorcendo-se de dores insuportáveis. No meu caso, o terreno era coberto de lama e todos nós estávamos irreconhecíveis, pretos, porcamente sujos. Fui levado pelos companheiros com a metade da perna pendurada logo acima do joelho. Não sei quantos matei, sei que tive a intenção de matar todos que estavam à minha frente, ao meu alcance. Na viagem de ida, tinha consciência de que estava em guerra contra o nazismo, o fascismo, mas não os matei por serem nazistas ou fascistas – talvez nem o fossem – e sim porque estavam ali tentando matar-me. E por que queriam fazê-lo, se não tinham a menor idéia de quem era eu? Porque sabiam que eu apontava uma arma contra eles, mais nada. Compreendi então que o soldado morto que matou apenas para não morrer é transformado em herói da pátria e o que volta mutilado é um deficiente que não serve mais para a guerra.

         – Desculpe interrompê-lo, mas o senhor precisa valorizar o fato de estar vivo, ter uma família, poder acompanhar o crescimento das crianças. Com a ajuda de um medicamento, seu ânimo poderá voltar e outros interesses surgirão. Esqueça a guerra e volte a uma vida produtiva, há muito o que fazer.

         – É verdade, doutor. Há muito o que fazer, para quem não foi à guerra e voltou mutilado. O senhor está me propondo tomar um comprimido e esquecer o inesquecível. Como já lhe disse, vim por insistência de minha mulher, não para perguntar-lhe o que fazer. Tentei resumir o que ocorreu comigo, para lhe dar uma pálida idéia de uma cena de guerra, mas é indescritível. Quanto a mim, não vejo saída, a não ser, se fosse possível, voltar à Itália. Nada mais faz sentido. Com as idéias que tenho hoje, não aceitaria nenhuma convocação, mesmo diante da ameaça de condenação como desertor. Só existe uma guerra justa: a defesa contra uma invasão, da mesma forma que só é lícito matar em legítima defesa.

         – Mas se o senhor é contra a guerra, por que esta fantasia de voltar à Itália?

         – Porque o Manuel Amaro que se dedicava aqui ao trabalho e à família não mais existe – a guerra transformou-me em soldado matador de outros soldados também matadores. Se tampouco sirvo para isto, nada me resta. Morto, serei melhor exemplo para meus filhos do que vivo. Guardarão a lembrança de que fui à guerra e voltei sem uma perna. Não vão se lembrar de um pai que não queria mais viver, ou melhor, que não devia mais viver.

         Manuel despediu-se do médico e nem sequer comprou o remédio receitado.

PARA GLAUCE

GLAUCE ERA ASSIM

Ela mesma…
Vezes sorrindo
Outras brincando
Algumas brigando
Muitas chorando,
Se fechando…
Sofrendo…
Mas, sempre amando!

Sim, o quanto ela amava…
E amando vivia, odiava, perdoava,
Escrevia, pintava e bordava
Bordava a vida, a morte
A alma sem norte à cata da sorte
Na escrita com arte e fantasia
Dizia muito do que lhe doía e
O real que abstraía nos pincéis refletia…

GLAUCE, minha cara GLAUCE,
Não sei por onde andas agora
Mas sei que nesta hora
Que o teu corpo mais não anda
Os que por aqui andam e
Te souberam conhecer e amar
Choram a tua brusca partida
Vivem doída saudade nesse não mais estar…

OBS: Poema feito em 27/09/2011 por Edwiges C. Caraciolo Rocha, em homenagem a sua amiga Glauce, falecida em 26/09/2011

LANÇAMENTO DE LIVRO

 

No dia 6 de agosto foi lançada em São Paulo, pela Editora ANDROSS, a antologia MOEDAS PARA O BARQUEIRO V.II organizada por CRISTINA GIMENES,  na qual se inclui o conto UM CORAÇÃO DELICIOSO, da autoria de César Garcia, escritor colaborador desse blog e participante da nossa Oficina de Criação Literária Clarice Lispector . O livro pode ser adquirida pelo endereço cesaradi@uol.com.br .

 

CONTO DE CÉSAR GARCIA

JULIÃO E SEUS HÓSPEDES

C.G. 29.7.2011

Dois homens chamados Julião. Um era professor em colégio masculino religioso tido como o melhor, onde estudavam os filhos dos ricos e dos remediados que queriam a todo custo dar uma boa educação à prole. De origem espanhola, branco, magro, alto e famoso no colégio por sua autoridade dentro e fora da sala de aula, o homem aterrorizava os alunos mais tímidos com gritos, ameaças e castigos físicos. Enciclopédico, ensinava todas as disciplinas do programa e tinha o hábito de cuspir no lenço que guardava no bolso da batina. Tinha lá seus alunos preferidos a quem dava tratamento privilegiado. As más línguas espalhavam histórias nunca comprovadas. Pois foi na classe deste Padre Julião que um aluno certo dia revelou que o pai tinha o mesmo nome, o que foi motivo de piadas e brincadeiras. Coisa de pouca importância se aquele não fosse o ano em que ocorreria a maior e mais escandalosa tragédia da história da cidade. O outro Julião, homem rico e feio, era casado com Eugênia, bela mulher de trinta anos ou pouco mais. Quem queria agradá-la dizia que se parecia com Ingrid Bergman, atriz então no auge da fama. Dispondo de empregada para todas as tarefas domésticas, D. Eugênia ocupava seu tempo com salão de beleza, encontros com amigas, curso de pintura e demoradas visitas à mãe e às tias. Fazia esses percursos em seu automóvel dirigido por Manuel, motorista de confiança com cinco anos no emprego, selecionado por ela própria, rapaz de boa aparência e leitor de romances durante as horas de espera. O filho estudava em colégio religioso por decisão do marido, pois D. Eugênia não gostava de igreja, de religião nem de padres – único traço de personalidade que não combinava com seu prestígio social, segundo a opinião das amigas. Quando a questionavam sobre o assunto, dizia que as religiões causavam mais mal do que bem e tinha sua própria forma de comunicar-se com Deus. Não era, contudo, uma forma eficiente. Do contrário, teria obtido de Deus a informação de que os sogros chegariam sem avisar para matar saudades, com a intenção de ficar alguns dias. Julião avisara que almoçaria na cidade com dois empresários amigos. Assim, D. Eugênia disse à cozinheira que seriam quatro à mesa: ela, o filho e os sogros. A estes, após o almoço, disse-lhes que fizessem a sesta na suíte do casal, pois o quarto de hóspedes não estava ainda arrumado. Permitiu que a empregada saísse mais cedo para acudir uma filha que dera à luz um bebê – e foi, com Manuel, levar o menino ao colégio. Todos esses eventos do cotidiano teriam pouca ou nenhuma importância se não estivessem inscritos numa sucessão de fatos que só o destino pode explicar. É que durante o almoço, os amigos de Julião acharam que algo não corria bem. Durante a conversa, tiveram que repetir as frases para que Julião entendesse o que diziam, parecendo distraído ou preocupado. Indagaram se estava bem e só ouviram a desculpa de que havia despedido um empregado há três dias e que recebera ameaças, o que só em parte era verdade. Não recebera ameaças. De fato, não estava nada bem porque lhe tinha chegado às mãos, na empresa, uma carta anônima dizendo que D. Eugênia o traía com o motorista na sua própria casa. Lera uma só vez a folha escrita em letras de imprensa e a rasgara em pequenos pedaços antes de jogá-la à lixeira. Atribuiu a maldade ao sujeito demitido, mas, na verdade, o veneno estava inoculado. Pensou na beleza da mulher, na sua antipatia pela religião, nos modos gentis do motorista, e em casos semelhantes que conhecia. Quase cancelara o almoço, mas achou que seria pior e também não devia tomar atitude precipitada, sem um mínimo de investigação. Mesmo assim, ao sair do restaurante, percebeu que não tinha condições de trabalhar e resolveu ir direto a casa. Dirigiu lentamente, pensando como deveria agir: de modo racional, civilizado, ou com violência, no caso de ficar provada a denúncia. Parou em frente à residência, deixou o carro na rua e entrou em silêncio com a cabeça confusa. Ao abrir a porta da suíte, viu na penumbra do quarto iluminado apenas pelas cores de um vitral acima da janela fechada, o casal deitado em sua cama. Sacou o revólver e começou a atirar. No segundo tiro, os corpos já não se mexiam, mas continuou atirando até acabarem-se as balas.

As famílias dos dois lados não conseguiram abafar os acontecimentos e os jornais estamparam fotos e títulos em grandes letras: EMPRESÁRIO MATA OS PAIS. No colégio, a repercussão foi terrível. O menino não queria voltar às aulas e os colegas tentavam obter notícia pelo telefone. Julião, o professor, proibiu que os garotos falassem no assunto, mas, no recreio, eles riam e inventavam várias histórias a partir da coincidência dos nomes: que Julião era chifrudo, assassino, qual Julião? Que o menino era filho do motorista e coisas piores. A agitação chegou a ponto de forçar o diretor a dar uma semana de férias à turma da quarta série, na esperança de caírem no esquecimento a tragédia e as infames brincadeiras – e aconselhou D. Eugênia a transferir o menino para outro colégio.