Na esfera do bem querer não é computado o tempo. Daí o nosso marujo mais recente, Sarmento, tal como um mecenas da arte, tornou-se o financiador voluntário do aniversário da maruja, amiga, poetisa, fala mansa, Anita, que no cronograma da sua vida ocorreu em 25 de maio. Além de trazer os comestíveis, celebrou o momento cantando (no gogó) recente composição sua, sugestiva de um hino à esperança de um mundo com justiça social e liberdade, sem dominação, em que todos são irmãos, um mundo em harmonia. Diante da atual situação que vivemos, o hino de Sarmento nos lembrou do poema Liberdade, de Paul Eluard feito pouco antes da 2ª Guerra.Mundial, mas que teve um papel importante no resgate da esperança da resistência francesa, dos soldados que lutavam nos campos de guerra. (que, coincidentemente, seria lido no mesmo dia na Oficina).
COISAS QUE TANTO QUERO
Osvaldo Sarmento
As coisas que tanto quero
Só meus sonhos chegam lá.
São poucas e corriqueiras,
Mas difíceis de alcançar
As coisas que tanto quero
As coisas que tanto quero
Sonho ir além do horizonte, E fazer o destino mudar (Pra ver o que o destino me dá) Pra que, não muito distante, (Saber se não muito distante) Se possa um dia chegar (Eu possa um dia chegar) Às coisas que tanto quero As coisas que tanto quero
Quero um caminho e uma ponte Sem ter que neles morar, Um vale calmo, sem montes Difíceis de atravessar. Quero uma mesa bem-posta Pros filhos de qualquer lugar. Emprego certo, aos montes, Jorrando que nem uma fonte As coisas que tanto quero As coisas que tanto quero
As coisas que tanto quero Só meus sonhos chegam lá. São poucas e corriqueiras, Mas difíceis de alcançar As coisas que tanto quero As coisas que tanto quero
Quero só gente decente P’ra iluminar nossa gente Livros, bonecas e bolas Crianças todas na escola Chega de andar por aí (Chega de FMI) Sem rumo, sem ter aonde ir (Já temos bastante aquii)
Chega de dominação Devemos ser todos irmãos Perseverança à beça De um povo farto de promessas Clamando o que tanto quero Clamando o que tanto quero
Após o poema, Sarmento fez um breve e emocionante discurso, que deixou os navegantes muito felizes tanto por tocar a cada um em particular, como pela criatividade e humor.
Também quero lembrar e repartir com o mundo coisas, não tão corriqueiras, algumas delas que já tive a graça recente de consegui-las. Quero um mundo cheio de oficinas: literária, do trabalho, do amor, da esperança, do exercício da honestidade, da cidadania, da solidariedade, etc. Quero um mundo pleno de Anitas, nossa homenageada de hoje, artesã das palavras que desconfio ter a mágica de nos transmitir ternura até nas tramas da paixão, do ódio e da inveja, por exemplo. Torço por um mundo cheio de Adelaides, Cacildas, Eletas. Um mundo repleto de Lourdes, nossa líder, a estrela guia de nosso veleiro pelas águas revoltas da poesia, do conto e pelo que de belo existir na combinação infinita das palavras. Quero um mundo de Luzias, um mundo de Saletes, poetisa, com sua lição de como enxotar a saudade, ainda por mim não inteiramente assimilada; Não pode faltar nesse mundo as Salomés, com seu repente, e quem mais de mulher for desse maravilhoso grupo. Também quero um mundo pleno daquele que fala do tridente do diabo, só superável em maldade pelo tridente de Temer, objeto da próxima obra fantástica do nosso João. Um mundo pleno de Tadeus, com o auxílio de dona Guiomar livrando-nos do mal, amém; finalmente, precisamos de Juniors, tenaz, memória do tamanho do mundo, e cujas intervenções nos remetem aos escombros da alma. Enfim, caras e caros colegas, quero um mundo em que a bondade, a esperança, a solidariedade sempre prevaleçam.
A nossa homenageada deu-nos um poema para esse blog, escolhido com muito carinho por representar o seu atual momento. Este poema está na coletânea que está sendo publicada pela Editora Chiado, em Portugal, mas que será feito um lançamento aqui em Recife, em data ainda a ser confirmada.
SETE CIDADES
Anita Dubeux
Ruínas sob o sol. Silêncio. Deserta paisagem onde outrora ouviam-se cânticos entoados para amenizar o trabalho árduo e sempre igual. Hoje apenas árvores e folhas soltas no chão – dissipadas pelo vento constante – ressoam no cenário de recordação.
O tempo retido no gesto inacabado, na palavra impronunciada e para sempre inútil. Vivenda de lembranças onde repousa o amor antigo que habita Sete Cidades.
Recife, janeiro de 2017
De volta ao começo, no Momento Poético tivemos um poema de Paul Eluard que Salete nos enviou, lamentando por não poder estar presente naquele dia. O poema foi Liberdade que, além de ser uma grande obra literária, teve importante papel na história recente, fundamentalmente durante a Segunda Guerra Mundial. Escrito em 1942, com o titulo Une Seule Pensée (Um Único Pensamento), o poema foi transportado clandestinamente para a Inglaterra onde foi traduzido para várias línguas e distribuído sob a forma de panfleto, lançados dos aviões dos aliados em toda a Europa ocupada. Uma parte dessa história nos diz respeito porque foi Cícero Dias, pintor pernambucano, que morava em Paris à época, o responsável por contrabandear o poema da França ocupada para a Inglaterra. Por esse gesto, Dias (1907-2003) recebeu a condecoração Ordem Nacional do Mérito,do Governo Francês, em 1998. Outro pernambucano teve contato com a obra e com o próprio autor, Paul Eluard, em 1913-14, quando ambos lutavam contra a tuberculose num sanatório em Cladavel, na Suiça: Manuel Bandeira. Muitos anos depois, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade fizeram a tradução do poema. É esta tradução que nós estamos trazendo hoje aqui para o blog.
Paul Éluard, pseudônimo de Eugène Emile Paul Grindel (Saint-Denis, 14/12/1895 – Charenton-le-Pont, 18/11/1952) foi um poeta francês, autor de poemas contra o nazismo que circularam clandestinamente durante a Segunda Guerra Mundial. Tornou-se mundialmente conhecido como O Poeta da Liberdade. Paul Eluard tem poemas nos filmes de Godard. Liberté também apareceu em filme.
LIBERTÉ LIBERDADE
Tradução: Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade
Sur mesahiers solier
Sur mon pupitre et les arbres
Sur le sable sur la neige
J’écris ton nomSur toutes les pages lues Sur toutes les pages blanches Pierre sang papier ou cendre J’écris ton nomSur les images dorées Sur les armes des guerriers Sur la couronne des rois J’écris ton nomSur la jungle et le désert Sur les nids sur les genêts Sur l’écho de mon enfance J’écris ton nomSur les merveilles des nuits Sur le pain blanc des journées Sur les saisons fiancées J’écris ton nomSur tous mes chiffons d’azur Sur l’étang soleil moisi Sur le lac lune vivante J’écris ton nomSur les champs sur l’horizon Sur les ailes des oiseaux Et sur le moulin des ombres J’écris ton nomSur chaque bouffée d’aurore Sur la mer sur les bateaux Sur la montagne démente J’écris ton nomSur la mousse des nuages Sur les sueurs de l’orage Sur la pluie épaisse et fade J’écris ton nom
Sur les formes scintillantes Sur les cloches des couleurs Sur la vérité physique J’écris ton nom
Sur les sentiers éveillés Sur les routes déployées Sur les places qui débordent J’écris ton nom
Sur la lampe qui s’allume Sur la lampe qui s’éteint Sur mes maisons réunies J’écris ton nom
Sur le fruit coupé en deux Du miroir et de ma chambre Sur mon lit coquille vide J’écris ton nom
Sur mon chien gourmand et tendre Sur ses oreilles dressées Sur sa patte maladroite J’écris ton nom
Sur le tremplin de ma porte Sur les objets familiers Sur le flot du feu béni J’écris ton nom
Sur toute chair accordée Sur le front de mes amis Sur chaque main qui se tend J’écris ton nom
Sur la vitre des surprises Sur les lèvres attentives Bien au-dessus du silence J’écris ton nom
Sur mes refuges détruits Sur mes phares écroulés Sur les murs de mon ennui J’écris ton nom
Sur l’absence sans désir Sur la solitude nue Sur les marches de la mort J’écris ton nom
Sur la santé revenue Sur le risque disparu Sur l’espoir sans souvenir J’écris ton nom
Et par le pouvoir d’un mot Je recommence ma vie Je suis né pour te connaître Pour te nommer
Liberté.
Nos meus cadernos de escola Nesta carteira nas árvores Nas areias e na neve Escrevo teu nome Em toda página lida Em toda página branca Pedra sangue papel cinza Escrevo teu nome Nas imagens redouradas Na armadura dos guerreiros E na coroa dos reis Escrevo teu nomeNas jungles e no deserto Nos ninhos e nas giestas No céu da minha infância Escrevo teu nome Nas maravilhas das noites No pão branco da alvorada Nas estações enlaçadas Escrevo teu nome
Nos meus farrapos de azul No tanque sol que mofou No lago lua vivendo Escrevo teu nome
Nas campinas do horizonte Nas asas dos passarinhos E no moinho das sombras Escrevo teu nome
Em cada sopro de aurora Na água do mar nos navios Na serrania demente Escrevo teu nome
Até na espuma das nuvens No suor das tempestades Na chuva insípida e espessa Escrevo teu nome
Nas formas resplandecentes Nos sinos das sete cores E na física verdade Escrevo teu nome
Nas veredas acordadas E nos caminhos abertos Nas praças que regurgitam Escrevo teu nome
Na lâmpada que se acende Na lâmpada que se apaga Em minhas casas reunidas Escrevo teu nome
No fruto partido em dois de meu espelho e meu quarto Na cama concha vazia Escrevo teu nome
Em meu cão guloso e meigo Em suas orelhas fitas Em sua pata canhestra Escrevo teu nome
No trampolim desta porta Nos objetos familiares Na língua do fogo puro Escrevo teu nome
Em toda carne possuída Na fronte de meus amigos Em cada mão que se estende Escrevo teu nome
Na vidraça das surpresas Nos lábios que estão atentos Bem acima do silêncio Escrevo teu nome
Em meus refúgios destruídos Em meus faróis desabados Nas paredes do meu tédio Escrevo teu nome
Na ausência sem mais desejos Na solidão despojada E nas escadas da morte Escrevo teu nome
Na saúde recobrada No perigo dissipado Na esperança sem memórias Escrevo teu nome
E ao poder de uma palavra Recomeço minha vida Nasci pra te conhecer E te chamar
Liberdade
Em seguida foi lido A Festa no Jardim, de Katherine Mansfield. A capitã da embarcação, Lourdes Rodrigues, falou um pouco sobre a autora, da amizade e rivalidade entre ela e Virgínia Woolf que confessara em seu diário ter sido Katherine a única autora que ela realmente invejara. O estilo moderno da autora realmente influenciou toda uma geração de escritores que viam na sua escrita intimista muita densidade e qualidade literária. A leitura do conto foi acompanhada pelo original em Inglês, o que ajudou a tirar algumas dúvidas, pois havia mais de uma tradução do conto na ocasião. Lourdes Rodrigues havia pedido que lêssemos em casa antes e refletíssemos um pouco, usando os conhecimentos que já dispomos para análise e anotássemos as observações mais relevantes. Além disso como se tratava de um Estudo de Caso extraído do livro Para ler Literatura como um Professor , de Thomas C. Foster, havia uma pergunta que deveríamos fazer :O que trata o conto? Pergunta direcionadora da discussão que revelou não haver muitos pontos comuns, mostrando que a leitura coletiva é muito mais rica exatamente por esse aspecto. Qualquer leitura individual não nos dará a visão ampliada que uma leitura coletiva nos oferece. Houve uma rodada por todos os participantes, cada um do seu lugar no mundo e na literatura trazendo a sua contribuição. Lourdes pediu que levássemos por escrito as nossas visões para compor a análise que seria objeto de um blog. Entretanto, a análise do nosso marujo Junior, aplaudida no final, pela profundidade e clareza do ponto de vista psicanalista dos ingredientes do conto, nós gravamos e vamos deixar aqui postado.
Das viagens marianas tirei do baú Austro Costa, apresentado por Salomé Barros, viageira que gosta muito dos versos dos poetas da terrinha, assim como todos nós.
Austro Costa, além de poeta, jornalista, compositor nascido Austriclínio Ferreira Quirino, que ele assim que se descobriu homem das letras tratou de modificar, adotando aquele pseudônimo. Ao longo do tempo usou outros, entre eles, João da Rua Nova, Alcedo Tryste, Chrispim Fialho, Fra-Diávolo, João Queremista, João-do-Moka sem abandonar, jamais, o primeiro. Nasceu em Limoeiro, em 1899, órfão de pai, abandonado pela mãe, criado por um tio comerciante que o colocou para trabalhar no balcão de sua loja de tecidos. Mas parece que não era muito dado aos negócios, preferindo trabalhar na biblioteca como zelador, mais próximo dos seus amores. A sua carreira poética iniciou em LImoeiro, ali publicou seu primeiro poema, no jornal “O Empata”.
Vindo para a cidade do Recife, trabalhou numa empresa distribuidora de livros em fascículos (1918) e atuou na imprensa ocupando funções de repórter, cronista, copydesk em vários jornais A Luta, Jornal do Recife, Jornal do Comercio, A Notícia, Diário da Tarde e no Diário de Pernambuco, onde escreveu regularmente de 1922 a 1929. No Diário da Tarde, manteve a seção de sonetos humorísticos De Monóculo, de 1933 a 1935, da qual nasceu o livro póstumo organizado pelo escritor Luiz Delgado em 1967. A sua faceta humorística e satírica, que explorava bem o coloquial e a circunstância, são constatadas na longa série de sonetos De monóculo. Ele fazia um tipo dândi sempre presente nos círculos sociais, nas revistas e jornais com muito sucesso pela seu humor e sociabilidade.
O primeiro livro de poesias Mulheres e rosas foi publicado em 1922, recebendo boa crítica. Integrou em 1924, o Movimento Modernista em Pernambuco, aderindo ao verso livre, versando sobre o cotidiano. Seu segundo e último livro De Vida e Sonho recebeu o prêmio Academia Pernambucana de Letras, Othon Bezerra de Melo. O poeta também compôs vários hinos. Ele dizia que tinha três “cachaças”: imprensa, política e poesia.
Segundo Gilberto Freyre, ele foi “um dos melhores poetas românticos de Pernambuco. Entre seus poemas mais famosos estão Capibaribe, meu rio; Salomé Toda de Verde; O Recife da Madrugada é um Poema Futurista; Tartufo-mor; e O Último Porto, considerado pelo crítico Fausto Cunha como um dos vinte maiores sonetos da literatura brasileira.Em 1994, a FUNDARPE publicou uma antologia poética de Austro Costa, organizada pelo escritor Paulo Gustavo e com prefácio de Mauro Mota. Poemas que só foram publicados em revistas e jornais e que permaneciam inéditos em livro. Em 1949, ele havia tomado posse na cadeira nº. 5 da Academia Pernambucana de Letras.
Casou-se aos quarenta e oito anos de idade com Helena Lins de Oliveira.
Faleceu em Recife, outubro de 1953, em decorrência do acidente com o ônibus no qual ele viajava. Dizem que ele havia cedido o seu lugar para uma senhora e viajava, na ocasião, em pé, lendo um livro.
Austro Costa privilegiou o seu tempo, as paisagens, os lugares, costumes, eventos através de crônicas e versos.
O Último Porto
A Nehemias Gueiros
Porto do Desencanto. Cais do tédio.
Calmaria. Abandono. Solidão.
(A quem dizer meu último epicédio
A quem fazer minha última canção)
Depois de tanto malogrado assédio
a naus esquivas que bem longe vão,
– eate ancorar soturno, e sem remédio,
do velho brigue que é meu coração…
meu navio-pirata doutros dias,
velas colhidas – que de nostalgias
nessa langue modorra junto aos cais!
Ontem Mar alto… expedições bizarras…
Hoje (é inútil que tremas nas amarras)
a solidão… a bruma… o nunca-mais!…
Salomé toda de verde…
O teu vestido verde, esse vestido
com que te vi domingo, na novena,
não condiz bem com tua tez morena..
Não o uses mais! Atende a este pedido
Tu, que és somente Malvadez e Olvido
e tens no peito um coração de hiena,
olha que esse vestido te condena
e é, no teu corpo, um símbolo traído!
Guarda o vestido verde… ou não te zangue
o que te imploro aqui, flor das ingratas:
muda-lhe a cor… embebe-o no meu sangue!
Sou teu São João, ó Salomé sem dança!
mas, se – morena e má – rindo me matas,
não me mates vestida de esperança!…
Poema do Frevo
A Cidade, cedo, vira camarada,
vem toda para rua, […]
toda alvoroçada,
toda colorida,
sem pensar na crise,
sem pensar na vida,
sem pensar em nada…
vem toda para a rua vibrante, enfustecida
saracoteante”.
vibrar,
delirar…
E a farsa burguesa dos vãos preconceitos
Visíveis e estreitos
– Olé !-
de logo é esquecida, anulada, vaiada em tumulto […]
isto é,
o estalido orgulho, a vã fatuidade,
toda a austeridade
da burguesia
de pronto se desfazem em louca alegria
– EVOHE! EVOHE! –
e haja liberdade,
e haja intimidade,
a larga, a vontade…
Que promiscuidade!
Que democracia!
Carnavalesca Cidade!
Paraíso da Folia!…
FOLIA!
Depois de Austro Costa, continuamos a nossa viagem literária dessa feita com o cordel de Salomé Barros Maturidade Rima com Sexualidade:
MATURIDADE RIMA COM SEXUALIDADE
Salomé Barros
A vida nesse planeta
Tem constante evolução
Já nascemos programados
Pra cumprir uma missão
E tudo correndo bem
Ganhamos prorrogação
Acrescentar vida aos anos
Riqueza à maturidade
Incluindo com certeza
A sexualidade
Cuidando pra não perder
O prazo de validade
Cada um é diferente
Ninguém vai poder negar
Uns abertos para o mundo
Outros mais de observar
Mas todos sem exceção
Gostam de se aconchegar
Não é só na juventude
Que o desejo aparece
Só muda a qualidade
O afeto fortalece
E viver sem emoções
Afinal ninguém merece
Experiência de vida
Vem junto com a idade
Muitos anos de convívio
Provocam cumplicidade
Companheirismo e afeto
Num clima de liberdade
Quem disse que os idosos
Se aposentam da vida
Só são avôs e avós
E tem vida aborrecida
Precisa nos seus neurônios
Dar uma boa mexida
Por incrível que pareça
Ainda há preconceito
Resquício da educação
Carregada de conceito
De que sexo é pecado
Falar era desrespeito
Talvez só com a idade
Auge do conhecimento
Onde a personalidade
Atinge o melhor momento
As formas de amor e sexo
Alcancem seu crescimento
A mídia traz o enfoque
Na imagem corporal
Distorcer essa visão
Faz um diferencial
Valorizando equilíbrio
E saúde emocional
Afetividade inclui
Sentimentos e emoções
Auto-estima também conta
Pra apimentar as paixões
É um pacote completo
Que alimenta as pulsões
As mudanças acontecem
Nem toda fase é igual
Há que se redescobrir
O que pra nós é legal
O desejo é que não muda
É impulso natural
Descobertas científicas
Vem pra desmistificar
E trazem as soluções
Para o sexo ajudar
Farmácias estão aí
É só ir lá e comprar
Importante envelhecer
Com qualidade de vida
E se nada acontecer
Dê uma boa sacudida
Se enfeite e saia pra o mundo
Com a alma abastecida
Ficamos encantados com o texto de Salomé, nossa cordelista de primeira linha. É sempre com prazer que ouvimos um cordel, essa riqueza cultural da nossa Região. Há pouco li no livro Lá Sou Amigo do Rei, de Carlos Marques, que um decano da Sorbonne um dos maiores especialistas em cordel de todos os tempos, Raymond Cantel, segundo o autor, havia deixado em testamento o seu acervo de milhares de livretos de cordel adquiridos em vários estados do Nordeste para a Universidade de Poitiers, em Paris, onde hoje se encontra digitalizado e conservado em salas cuidadosamente refrigeradas, para serem estudados por pesquisadores do mundo inteiro. Informação que muito nos alegra não só pela valorização dessa produção genuinamente popular em suas origens, como pela sua preservação senão aqui pelo menos no exterior. .
Em seguida, Anita trouxe a sua releitura do conto – Hoje de Madrugada – de Raduan Nassar, onde ela conta a história a partir do personagem feminino, entregando-lhe a voz para falar dos seus sentimentos naquele encontro que ela mesma provocou durante a madrugada. O texto foi muito elogiado pelos viageiros que o acharam muito bem escrito, muito bem tecido, trazendo aspectos novos para a história .Apesar de muito bom, a ponto de alguns viageiros terem dificuldade de apresentar alguma sugestão de mudança, por sugestão de Júnior, foi proposto que ela desse mais espaço à histeria que uma rejeição daquela poderia provocar em uma mulher, afastando-se mais do autor Raduan Nassar, recriando as cenas ao estilo da escritora Anita. Ela concordou, ficando de apresentar posteriormente a sua reescrita.
O encontro terminou com a continuação da leitura do capítulos III de O Riso de Bergson.
Escarafunchando baús encontrei fragmentos de viagens pelos mares das palavras que, embora amarfanhados, permaneciam registros vivos, pulsantes, de grandes momentos vividos.
Uma delas foi a de 15 de abril quando Paulo Tadeu, viageiro de longas datas, nos levou a poeta portuguesa Florbela Espanca com o poema Tarde no Mar.
Tarde no Mar Florbela Espanca
A tarde é de oiro rútilo: esbraseia
O horizonte: um cacto purpurino.
E a vaga esbelta que palpita e ondeia,
Com uma frágil graça de menino,
Poisa o manto de arminho na areia
E lá vai, e lá segue ao seu destino!
E o sol, nas casas brancas que incendeia.
Desenha mãos sangrentas de assassino!
Que linda tarde aberta sobre o mar!
Vai deitando do céu molhos de rosas
Que Apolo se entretém a desfolhar…
E, sobre mim, em gestos palpitantes,
As tuas mãos morenas, milagrosas,
São as asas do sol, agonizantes…
Este vídeo fala de Florbela Espanca, da sua importância para o mundo literário, dos problemas emocionais que culminaram com o seu suicídio ao 36 anos de idade, apenas.
Em seguida, como era uma semana para nós cristãos de muito siso e pouco riso, dirigimos o leme para o Uruguai e ali escolhemos um roteiro mais denso. Começamos com o conto O Outro Eu, de Mario Benedetii, que numa narrativa breve, eu diria até brevíssima, extremamente interessante, trouxe mais uma vez, à Oficina, a questão do duplo, tão intensamente analisada quando lemos Wilson, Wilson, de Edgar Alan Poe.
O Outro Eu
(A morte e outras surpresas, 1968)
Mário Benedetti
Tratava-se de um rapaz comum: usava calças da moda, lia gibis, fazia barulho enquanto comia, cutucava o nariz com o dedo, roncava durante a soneca, se chamava Armando Corrente em tudo menos em uma coisa: tinha um Outro Eu.
O Outro Eu usava certa poesia no olhar, se apaixonava pelas atrizes, mentia cautelosamente, se emocionava com o entardecer. O rapaz se preocupava muito com seu Outro Eu e o fazia se sentir incomodado diante de seus amigos. Já o Outro Eu era melancólico e, por causa disso, Armando não podia ser tão vulgar quanto desejava.
Uma tarde Armando chegou cansado do trabalho, tirou os sapatos, moveu lentamente os dedos dos pés e ligou o rádio. Estava tocando Mozart, mas o rapaz dormiu. Quando acordou, o Outro Eu chorava desconsoladamente. Em um primeiro momento, o rapaz não soube o que fazer, mas depois se refez e conscientemente insultou o Outro Eu. Este não disse nada, mas na manhã seguinte já havia se matado.
No começo, a morte do Outro Eu foi um duro golpe para o pobre Armando, mas depois ele pensou que agora sim poderia ser inteiramente vulgar. Esse pensamento o reconfortou.
Levava apenas cinco dias de luto quando saiu pelas ruas com o propósito de exibir sua nova e completa vulgaridade. De longe viu que seus amigos se aproximavam. Isso o encheu de felicidade e o fez imediatamente explodir em risadas. Entretanto, quando passaram próximo dele, seus amigos não notaram sua presença. Para piorar, o rapaz pôde escutar que comentavam: “Pobre Armando. E pensar que parecia tão forte e saudável”.
O rapaz não teve outro remédio que parar de rir e, ao mesmo tempo, sentiu na altura do peito uma aflição que se parecia muito a nostalgia. Mas ele não pôde sentir uma autêntica melancolia, porque toda a melancolia tinha sido levada pelo Outro Eu.
A viagem seguinte foi pelo quarto de Sútulin, na Rússia, que ao aplicar o conteúdo de uma bisnaguinha escura, fininha, em seu quarto, começou a vê-lo crescer, crescer, de forma incontrolável. Trata-se de um conto de Sigismund Krzyanowski, que permaneceu quase toda a sua vida sem ser reconhecido, cuja narrativa bem se enquadra no fantástico maravilhoso hiperbólico, segundo Todorov, em que o exagero das dimensões daquele quarto vão criando tensão, asfixiando o leitor, apesar de consciente de sua irrealidade. Fantástico! Alguns vídeos e filmes foram feitos baseados nesse conto. Aqui está um deles, excelente.
Registro da viagem de 26 de abril de 2017 da Nau da Literatura.
*Anita Dubeux
Mantendo a tradição de partida, iniciando com o Momento Poético, a viageira Luzia trouxe a leitura de dois poemas de Joseph Brodsky, poeta russo, nascido em Leningrado, em 1940.
Joseph Brodsky (1940-1996) sentia-se marginalizado por sua descendência judaica. Começou a ser conhecido como poeta aos 23 anos. Logo, logo foi denunciado por um jornal de Leningrado e preso, sob a acusação de “parasitismo social”, já que não possuía nenhum emprego fixo além de escrever poesias. Condenado em 1964 a cinco anos de prisão com trabalhos forçados, passou 18 meses numa região remota e gelada, ao norte do país, onde rachava lenha, quebrava pedras e nas horas livres se dedicava à leitura de antologias de poesia inglesa e americana. Uma campanha realizada pelos poetas soviéticos pressionou o governo a libertá-lo antes do prazo previsto. Mesmo assim, foi impedido de publicar seus poemas, tendo que fazê-lo clandestinamente, em livretos que circulavam de mão em mão. Em 1971 ele foi convidado pelo Governo a se retirar do país e emigrar para Israel, mas o poeta não aceitou. Saiu um ano depois, embarcado num avião rumo a Viena. Antes de partir, ele deixou uma carta ao então líder soviético, Leonid Brejnev, em que dizia: “Embora esteja perdendo minha cidadania soviética, eu não deixo de ser um poeta russo”. Brodsky cumpriu o que dissera, mudou-se para Nova Iorque, ajudado pelo seu amigo e poeta inglês W.H. Auden, conseguiu fixar residência nos Estados Unidos, onde permaneceu até sua morte, em 1996. Embora naturalizado americano, continuou escrevendo em russo. Ele mesmo fazia a tradução de seus poemas, que eram publicados em revistas e suplementos literários dos jornais.
Em 1987, Joseph Brodsky recebeu o Prêmio Nobel de Literatura da Real Academia Sueca, empenhada em tirar das bibliotecas os grandes escritores esquecidos pelo mercado editorial e restrito ao mundo acadêmico e projetá-los mundialmente.
Depois do Nobel, a imprensa soviética começou a anunciar a publicação de alguns de seus poemas na revista literária Novy Mir. Cético quanto ao possível reconhecimento tardio de sua arte, Brodsky declarou: “Poemas, romances – essas coisas pertencem à nação, à cultura e ao povo. Elas foram roubadas do povo e agora as coisas roubadas estão sendo devolvidas a seus donos, mas não acho que os donos devam estar agradecidos em recebê-las”. Contam que no seu famoso julgamento na Russia, o juiz perguntara: “Quem o reconheceu como poeta? Quem o enlistou no rol dos poetas?”, e ele calmamente respondera: “Ninguém. Quem me enlistou no rol da raça humana?”
Há uma tradução do Julgamento de Brodsky que será postada no final.
M.B
Querida, hoje saí de casa já muito ao fim da tarde
para respirar o ar fresco que vinha do oceano.
O sol fundia-se como um leque vermelho no teatro
e uma nuvem erguia a cauda enorme como um piano.
Há um quarto de século adoravas tâmaras e carne no braseiro,
tentavas o canto, fazias desenhos num bloco-notas,
divertias-te comigo, mas depois encontraste um engenheiro
e, a julgar pelas cartas, tomaste-te aflitivamente idiota.
Ultimamente têm-te visto em igrejas da capital e da província,
em missas de defuntos pelos nossos comuns amigos; agora
não param (as missas). E alegra-me que no mundo existam ainda
distâncias mais inconcebíveis que a que nos separa.
Não me interpretes mal: a tua voz, o teu corpo, o teu nome
já não mexem com nada cá dentro. Não que alguém os destruísse,
só que um homem, para esquecer uma vida, precisa pelo menos
de viver outra ainda. E eu há muito que gastei tudo isso.
Tu tiveste sorte: onde estarias para sempre – salvo talvez
numa fotografia – de sorriso trocista, sem uma ruga, jovem, alegre?
Pois o tempo, ao dar de caras com a memória, reconhece a invalidez
dos seus direitos. Fumo no escuro e respiro as algas podres.
Tradução de Carlos Leite. Paisagem Com Inundação (Lisboa: Edições Cotovia, 2001).
Antes de ler a segunda poesia, inspirada na mitologia grega, Luzia trouxe um resumo do mito de Odisseu e Telêmaco, abrindo as portas para a melhor compreensão do significado desse poema.
Odisseu a Telêmaco
Caro Telêmaco,
encerrou-se a Guerra
de Tróia. Quem venceu, não lembro. Gregos,
sem dúvida: só gregos deixariam
tantos defuntos longe de seu lar.
Mesmo assim, o caminho para casa
mostrou-se demasiado longo, como
se Posseidon, enquanto ali perdíamos
nosso tempo, tivesse ampliado o espaço.
Não sei nem onde estou nem o que tenho
diante de mim, que suja ilhota é esta,
que moitas, casas, porcos a grunhir,
jardins abandonados, que rainha,
capim, raízes, pedras. Meu Telêmaco,
as ilhas todas se parecem quando
já se viaja há tanto tempo, o cérebro
confunde-se contando as ondas, o olho
chora entulhado de horizonte e a carne
das águas nos entope enfim o ouvido.
Não lembro como terminou a guerra
e quantos anos tens, tampouco lembro.
Cresce, Telêmaco meu filho, os deuses,
só eles sabem se nos reveremos.
Não és mais o garoto em frente a quem
contive touros bravos. Viveríamos
juntos os dois, não fosse Palamedes,*
que estava, talvez, certo, pois, sem mim,
podes, liberto das paixões de Édipo,
ter sonhos, meu Telêmaco, impolutos.
Tradução de Boris Schnaiderman e Nelson Ascher. Quase uma elegia (Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996).
A Song – Poem by Joseph Brodsky
I wish you were here, dear,
I wish you were here.
I wish you sat on the sofa
and I sat near.
The handkerchief could be yours,
the tear could be mine, chin-bound.
Though it could be, of course,
the other way around.
I wish you were here, dear,
I wish you were here.
I wish we were in my car
and you’d shift the gear.
We’d find ourselves elsewhere,
on an unknown shore.
Or else we’d repair
to where we’ve been before.
I wish you were here, dear,
I wish you were here.
I wish I knew no astronomy
when stars appear,
when the moon skims the water
that sighs and shifts in its slumber.
I wish it were still a quarter
to dial your number.
I wish you were here, dear,
in this hemisphere,
as I sit on the porch
sipping a beer.
It’s evening, the sun is setting;
boys shout and gulls are crying.
What’s the point of forgetting
if it’s followed by dying?
Em seguida, Lourdes destacou a ausência de Adelaide e a falta que ela faz: o companheirismo, as contribuições nos debates dos assuntos tratados. Propôs, e foi unanimemente aceito, que as próximas reuniões possam ocorrer em sua casa, uma vez que ela não está em condições de saúde que possibilite deslocamento. Todos manifestaram auguro de melhora da saúde de Adelaide.
A Timoneira lembrou a tarefa sugerida na viagem anterior, de escrita de versões individuais sobre o trio de personagens do conto As Babas do Diabo, de Julio Cortázar, lido naquela ocasião.
O foco principal dessa viagem foi inegavelmente o conto de autoria de Paulo Tadeu, Livrai-nos do Mal, Amém , que ele leu em voz alta e suscitou inúmeras interpretações e sugestões por parte dos viageiros atentos. Uma trama bem urdida e que levou em consideração as recomendações básicas da escrita de contos. O autor deverá apresentar uma nova versão do texto, no próximo encontro, contemplando algumas das sugestões apresentadas, enquanto que os viageiros foram desafiados a escrever versões diferentes, do ponto de vista dos personagens, para efeito didático de escrita criativa.
Lourdes sugeriu um exercício de escrita para Tadeu: reescrever inteiramente o conto a partir da perspectiva da personagem Rute.O viageiro João Gratuliano sugeriu “Então tá, Jeeves”, de P. G. Wodehouse como exemplo de uma narrativa que mostra em vez de dizer e “Emissários do Diabo”, de Gilvan Lemos como exemplo de um romance escrito em falsa terceira pessoa.
Como sugestão de seleção da próxima leitura, surgiu a ideia da escolha de um conto ou romance que contasse com uma resenha elaborada pelo próprio autor.João já havia sugerido “O risco do Bordado” de Autran Dourado que relatou a sua gênese no livro “Uma poética do romance” ou “Doutor Fausto” de Thomas Mann e “A gênese do doutor Fausto”. Eu sugeri “O coração é um caçador solitário”, de Carson McCullers, que na verdade queria dizer “Balada do Café Triste”, que ela resenha detalhadamente no livro póstumo, “Coração Hipotecado”, dissecando cada personagem.
A viagem da semana foi encerrada com o humor das tirinhas de Mafalda.
Anita Dubeux é poeta, contista, resenhista, ensaísta.
O JULGAMENTO DE BRODSKY – texto retirado do blog ESCAMANDRO- poesiatradução crítica – Tradução do francês de Guilherme Gontijo Flores. A edição utilizada foi Brodski ou le procès d’un poète: commentaires d’Efim Etkind, préface d’Hélène Carrère D’Encausse. Traduzido do russo para o françês por Janine Lévy. Editado pela Librairie Générale Française, em 1988.
As anotações das audiências feitas por Frida Vigdorova e posteriormente editadas na forma de um diálogo é uma experiência digna de peças de Beckett.Por isso, traduzi a partir do francês uma boa parte do processo que hoje funciona como uma espécie de monumento: as perguntas do juiz Savelieva permanecerão, creio, como pérolas da percepção ocidental — não apenas soviética — sobre o ofício do poeta, enquanto as tentativas de resposta de Brodsky por vezes nos fazem lembrar personagens de Kafka, presos num universo burocrático que não parece fazer sentido, diante de um processo em que só poderá ser condenado, ainda que não compreenda muito bem. (Guilherme Gontijo Flores)
Primeira audiência no tribunal
Bairro Dzerjinsky, cidade Leningrado, rua Vosstania, 36.
Juiz Savelieva.
18 de fevereiro de 1964.
Juiz: Qual é a sua profissão?
Brodsky: Escrevo poemas. Faço traduções. Suponho…
J.: Guarde as suposições para o senhor! Porte-se de modo adequado! Não fique em cima do muro! Olhe para o tribunal! Responda de modo conveniente a uma corte! (para mim) Para imediatamente de fazer notas, ou expulsarei a senhora daqui! (Para Brodsky). O senhor tem um trabalho regular?
B.: Eu pensei que se tratasse de um trabalho regular.
J.: Responda a questão!
B.: Escrevo poemas. Pensava que seriam publicados. Suponho…
J.: Não nos interessam as suas suposições. Responda à questão: por que o senhor não trabalhava?
B.: Eu trabalhava. Escrevia poemas.
J.: Isso não nos interessa. O que queremos saber é a instituição à qual o senhor estava ligado.
B.: Eu tinha contratos com uma editora.
J.: Ganhava o suficiente para viver? Quais contratos? Para quais datas? Por quais valores? Seja mais preciso.
B.: Já não lembro exatamente. Estão todos com meu advogado.
J.: O senhor é o interrogado.
B.: Saíram em Moscou dois livros com traduções minhas (ele informa quais).
J.: Qual é a sua experiência profissional, e quanto tempo durou?
B.: Cerca de…
J.: Nada de “cerca”. Isso não é resposta.
B.: Cinco anos.
J.: Onde o senhor trabalhou?
B.: Numa usina. Com uma equipe de geólogos.
J.: Quanto tempo trabalhou na usina?
B.: Um ano.
J.: Em qual cargo?
B.: Perfurador.
J.: De modo geral, qual é a sua especialidade?
B.: Eu sou poeta. Poeta-tradutor.
J.: Quem decidiu que o senhor era poeta? Quem o classificou entre os poetas?
B.: Ninguém. (Sem qualquer desafio) E quem me classificou no gênero humano?
J.: E o senhor estudou com tal objetivo?
B.: Qual objetivo?
J.: De se tornar poeta. Não tentou fazer os estudos superiores para se preparar… para aprender…
B.: Eu não pensava que seria possível aprender isso.
J.: Como se tornar poeta, então?
B.: Penso que… (Desconcertado) … é um dom de Deus…
J.: O senhor deseja apresentar alguma demanda ao tribunal?
B.: Adoraria saber por que fui preso.
J.: Isso é uma questão, não uma demanda.
B.: Nesse caso, não tenho demanda a formular.
J.: A defesa tem questões?
Advogada: Sim. Cidadão Brodsky, o dinheiro que o senhor ganhou, por acaso foi levado à sua família?
B.: Sim.
A.: Seus pais também trabalhavam?
B.: São aposentados.
A.: Vocês vivem juntos?
B.: Sim.
A.: Portanto, a sua renda contribuía para o orçamento familiar.
J.: A senhora não está apresentando questões, está generalizando. E o ajuda a responder. Não generalize: apenas apresente questões.
A.: O senhor foi inscrito num asilo psiquiátrico?
B.: Sim.
A.: O senhor foi hospitalizado?
B.: Do fim de dezembro de 1963 até 5 de janeiro deste ano, em Moscou, no Hospital Kachtchenko.
A.: O senhor não acha que a sua enfermidade o impediu de manter por muito tempo o mesmo emprego?
B.: É possível. Certamente. Na verdade, não sei bem. Não, não sei.
A.: O senhor traduziu poemas para uma antologia de poetas cubanos?
B.: Sim.
A.: O senhor traduziu romanceros espanhóis?
B.: Sim.
A.: O senhor tinha relações com a seção de tradução da União dos Escritores?
B.: Sim.
A.: Demando ao tribunal que sejam versados no dossiê o atestado do Escritório dos Tradutores, a lista de poemas publicados, a cópia dos contratos (ela os enumera), o seguinte telegrama: “Favor acelerar assinatura contrato”. Demando que o cidadão Brodsky seja objeto de um exame médico em que seja constatado seu estado de saúde e se estabeleça se ele o impediria de ocupar um emprego regular. Ademais, demando que o cidadão Brodsky seja libertado sem demora. Considero que ele não cometeu qualquer delito e que seu encarceramento não apresenta fundamento legal. Ele tem domicílio fixo e pode, portanto, responder um mandato de comparecimento.
O tribunal se retira para deliberar. Depois, retoma seu lugar, e o juiz lê o arrazoado:
“Submeter Brodsky a um exame psiquiátrico que deverá decidir se ele sofre ou não de alguma enfermidade psíquica, e se tal enfermidade impediria que ele fosse enviado aos trabalhos forçados em regiões distantes. Uma vez que o dossiê indica que Brodsky recusa hospitalização, encarregar a seção 18 da milícia para conduzi-lo ao exame psiquiátrico.”
J.: O senhor tem alguma questão?
B.: Gostaria que levassem papel e um lápis para minha cela.
J.: Quanto a isso, dirija-se ao chefe da milícia.
B.: Eu já lhe demandei, e ele me negou. Eu peço papel e um lápis.
J.: (amansado): Pois bem. Eu concederei.
B.: Obrigado.
Quando o público evacuava a sala, nós percebemos uma multidão, sobretudo jovens, nos corredores e escadas.
J.: Quanta gente! Não imaginei que haveria tamanho agrupamento.
Alguém na multidão: Não é todo dia que se julga um poeta.
J.: Poeta ou não, para nós dá no mesmo!
Segundo a senhora Toporova, advogada de defesa, o juiz Savelieva deveria ter libertado Brodsky para que este fosse por conta própria ao exame, no dia seguinte, no hospital psiquiátrico; porém Savelieva o manteve preso, e foi sob escolta que ele foi conduzido ao hospital.
Segunda Audiência
Fontanka, sala do Clube de Construtores.
13 de março de 1964.
As conclusões do exame são as seguintes: reconhece-se a existência de traços psicopáticos de caráter, mas considera-se que o sujeito está apto para o trabalho. Que, por conseguinte, pode ser submetido a medidas administrativas.
Um letreiro acolhe quem chega: “Processo do parasita social Brodsky”. A grande sala do Clube de Construtores está repleta de gente.
[…]
J.: Quanto aos autointitulados poemas, nós concedemos [a retirada do dossiê]; mas quanto ao diário íntimo, não há qualquer motivo para removê-lo do dossiê. Cidadão Brodsky, desde 1956 o senhor mudou treze vezes de emprego. Trabalhou um ano numa usina, depois parou de trabalhar por seis meses. No verão seguinte, participou de uma excursão geológica, então passou quatro meses sem trabalhar. (Ele enumera os diversos postos e as interrupções entre cada um deles) Explique à corte porque, nesses intervalos do seu trabalho, o senhor viveu como parasita.
B.: Nesses intervalos, eu trabalhava. Ocupava-me com o que me ocupo sempre: escrevia poemas.
J.: Então o senhor escrevia os seus autointitulados poemas? Qual era a utilidade dessas constantes trocas de emprego?
B.: Eu comecei a trabalhar aos quinze. Tudo me interessava. Eu trocava porque queria conhecer o máximo possível das coisas e das pessoas.
J.: E o que o senhor fez de útil pela pátria?
B.: Escrevi poemas. É o meu trabalho. Estou convencido… creio realmente que aquilo que escrevi presta um serviço não apenas aos homens de hoje, como também às gerações por vir.
Uma voz no público: Ah, bom, vai, diz! Ele não se acha pouco!
Outra voz: Um poeta, é normal que pense assim.
J.: Então o senhor considera que os seus autointitulados poemas são úteis aos homens?
B.: Por que o senhor sempre qualifica os meus poemas como “autointitulados” poemas?
J.: Nós os chamamos de “autointiulados” poemas porque não podemos considerar de outro modo.
Sarokin (procurador geral): O senhor nos disse que estava ávido por saber. Por que não quis fazer o serviço militar?
B.: Não responderei esse tipo de questão.
J.: Responda!
B.: Eu fui dispensado. O que eu “quis” não tem pertinência alguma, simplesmente fui liberado. Não é a mesma coisa. Eu fui dispensado duas vezes. Na primeira por causa da enfermidade de meu pai, na segunda por causa da minha.
S.: É possível viver com o que o senhor ganha?
B.: É possível. Na prisão, pediam-me todo dia uma assinatura para reconhecer que eu custava quarenta kopecks à administração. Ora, eu ganhava mais de quarenta kopecks por dia.
S.: Mas era necessário se vestir, se calçar.
B.: Eu tenho uma roupa. É velha, mas tenho uma. Pra mim basta.
A.: Os especialistas apreciavam os seus poemas?
B.: Sim. Tchoukovski e Marchak me fizeram grandes elogios pelas traduções. Mais do que eu merecia.
A.: O senhor travou relações com a seção de tradutores da União dos Escritores?
B.: Sim. Participei da revista Pela primeira vez em língua russa e apresentei leituras da minhas traduções do polonês.
J.: A senhora deveria interrogá-lo sobre o que ele fez de útil, e só apresenta questões a respeito das suas leituras e traduções.
A.: Suas traduções representam precisamente um trabalho útil.
J.: Brodsky, explique à corte porque o senhor não fazia nada entre dois empregos.
B.: Eu trabalhava. Escrevia poemas.
J.: Como isso lhe impedia de trabalhar de verdade.
B.: Eu trabalhava. Escrevia poemas.
J.: Havia pessoas que trabalhavam na usina e que ao mesmo tempo escreviam poemas. O que lhe impedia de fazer o mesmo?
B.: Nem todos se parecem comigo, até mesmo na cor dos olhos ou na expressão do rosto.
J.: Não foi o senhor quem descobriu isso. Todos o sabem. Melhor seria se o senhor nos explicasse o valor da sua participação em nossa grande marcha progressiva rumo ao comunismo.
B.: Não se constrói o comunismo apenas manuseando ferramentas o trabalhando na terra. É também o trabalho intelectual que…
J.: Grandiosas frases! Diga-nos em que bases o senhor pretende construir o seu futuro profissional.
B.: Eu pensavam em escrever poemas e fazer traduções. Mas, se é contrário a uma norma qualquer, admitida em geral, eu terei um emprego e escreverei do mesmo modo os poemas.
Tiagli (jurado): Entre nós, todos trabalhamos. Como o senhor viveu tanto tempo na indolência?
B.: O senhor não reconhece meu trabalho como tal. Eu escrevia versos, para mim é um trabalho.
J.: O senhor aprendeu uma lição a partir do que se publicou a seu respeito?
B.: O artigo de Lerner era mentiroso. Foi a única lição que eu aprendi.
J.: Assim, ela não te inspirou outra coisa?
B.: Não. Eu não me considero um parasita social.
[….]
J.: Pare de tomar notas!
Eu: Eu sou jornalista, membro da União dos Escritores. Faço artigos sobre a educação da juventude. Peço-lhe permissão para tomar notas.
J.: Quem sabe as notas que a senhora vai tomar! Pare imediatamente!
Uma voz no público: Ela voltou a tomar notas!
[…]
O tribunal retoma seu lugar e o juiz lê a sentença:
“Como bem provam as frequentes mudanças de emprego, Brodsky se esquivou sistematicamente de seu dever como cidadão soviético, que deve produzir bens materiais e garantir pessoalmente sua subsistência. Em 1961 e 1962, os órgãos do MGB [trata-se da KGB da época] darem-lhe um aviso. Ele prometeu conseguir um emprego regular. Mas não fez nada disso e continuou sem trabalhar, escrevendo e apresentando leituras de poemas decadentes. Dos relatórios das comissões de trabalho com os jovens autores, conclui-se que Brodsky não é poeta. Os leitores do Vechernij Leningrad [nome de um jornal de Leningrado] o condenaram. Por conseguinte, em aplicação do decreto de 4 de maio de 1961, o tribunal estipula que Brodsky será enviado para cinco anos de trabalhos forçados em uma região distante.”
Um auxiliar da milícia (que passava diante da advogada): Então, a senhora perdeu o caso, camarada advogada?
[transcrição do processo efetuada por Frida Vigdorova.
*João Gratuliano como primeiro oficial ad hoc no comando da nau por motivo de doença da capitã.
Todo ditado popular tem sua sabedoria, e quando os gatos saem, os ratos fazem a festa não foge à regra. Sem a capitã, nosso quebra gelo foi um pouco mais prolongado. A tripulação esteve um pouco reduzida, mas quando já estavam Salete, Anita, Adelaide, Sarmento, Everaldo Júnior, Paulo, eu e as irmãs Cajazeiras, digo, Portela, nosso viageiro Everaldo Júnior falou de um texto escrito por Freud sobre a transitoriedade, que surgiu de um passeio do mestre da psicanálise com dois amigos (que os historiadores dizem ter sido Rilke e Lou Andreas Salomé) por uns campos sorridentes.
.Eis o texto:
8. SOBRE A TRANSITORIEDADE (1916 [1915])
VERGÄNGLICHKEIT
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:1916 Em Das Land Goethes 1914-1916. Stuttgart: Deutsche Verlagsanstalt. Pág. 37-8.1926 Almlanach 1927, 39-42.
1928 G.S., 11, 291-4.1946 G.W., 10, 358-61.
(b) TRADUÇÃO INGLESA:‘On Transience’1942 Int. J. Psycho-Anal., 23 (2), 84-5. (Trad. de James Strachey.)1950 C.P., 5, 79-82. (Mesmo tradutor.)
A presente tradução inglesa é uma reimpressão ligeiramente alterada da que foi publicada em 1950.
Este ensaio foi escrito em novembro de 1915, a convite da Berliner Goetherbund (Sociedade Goethe de Berlim) para um volume comemorativo lançado no ano seguinte sob o título de Das Land Goethes (O País de Goethe). Esse volume, produzido com esmero, enfeixava grande número de contribuições de autores e artistas conhecidos, passados e atuais, como von Bülow, von Brentano, Ricardo Huch, Hauptmann e Liebermann. O original alemão (exceto o quadro que apresenta dos sentimetnos de Freud sobre a guerra, que estava então em seu segundo ano) constitui excelente prova de seus poderes literários. É interessante notar que o ensaio abrange um enunciado da teoria do luto contido em ‘Luto e Melancolia’ (1971e), que Freud escrevera alguns meses antes, mas que só foi publicado dois anos depois.
SOBRE A TRANSITORIEDADE
Não faz muito tempo empreendi, num dia de verão, uma caminhada através de campos sorridentes na companhia de um amigo taciturno e de um poeta jovem mas já famoso. O poeta admirava a beleza do cenário à nossa volta, mas não extraía disso qualquer alegria. Perturbava-o o pensamento de que toda aquela beleza estava fadada à extinção, de que desapareceria quando sobreviesse o inverno, como toda a beleza humana e toda a beleza e esplendor que os homens criaram ou poderão criar. Tudo aquilo que, em outra circunstância, ele teria amado e admirado, pareceu-lhe despojado de seu valor por estar fadado à transitoriedade.
A propensão de tudo que é belo e perfeito à decadência, pode, como sabemos, dar margem a dois impulsos diferentes na mente. Um leva ao penoso desalento sentido pelo jovem poeta, ao passo que o outro conduz à rebelião contra o fato consumado. Não! É impossível que toda essa beleza da Natureza e da Arte, do mundo de nossas sensações e do mundo externo, realmente venha a se desfazer em nada. Seria por demais insensato, por demais pretensioso acreditar nisso. De uma maneira ou de outra essa beleza deve ser capaz de persistir e de escapar a todos os poderes de destruição.
Mas essa exigência de imortalidade, por ser tão obviamente um produto dos nossos desejos, não pode reivindicar seu direito à realidade; o que é penoso pode, não obstante, ser verdadeiro. Não vi como discutir a transitoriedade de todas as coisas, nem pude insistir numa exceção em favor do que é belo e perfeito. Não deixei, porém, de discutir o ponto de vista pessimista do poeta de que a transitoriedade do que é belo implica uma perda de seu valor.
Pelo contrário, implica um aumento! O valor da transitoriedade é o valor da escassez no tempo. A limitação da possibilidade de uma fruição eleva o valor dessa fruição. Era incompreensível, declarei, que o pensamento sobre a transitoriedade da beleza interferisse na alegria que dela derivamos. Quanto à beleza da Natureza, cada vez que é destruída pelo inverno, retorna no ano seguinte, do modo que, em relação à duração de nossas vidas, ela pode de fato ser considerada eterna. A beleza da forma e da face humana desaparece para sempre no decorrer de nossas próprias vidas; sua evanescência, porém, apenas lhes empresta renovado encanto. Um flor que dura apenas uma noite nem por isso nos parece menos bela. Tampouco posso compreender melhor por que a beleza e a perfeição de uma obra de arte ou de uma realização intelectual deveriam perder seu valor devido à sua limitação temporal. Realmente, talvez chegue o dia em que os quadros e estátuas que hoje admiramos venham a ficar reduzidos a pó, ou que nos possa suceder uma raça de homens que venha a não mais compreender as obras de nossos poetas e pensadores, ou talvez até mesmo sobrevenha uma era geológica na qual cesse toda vida animada sobre a Terra; visto, contudo, que o valor de toda essa beleza e perfeição é determinado somente por sua significação para nossa própria vida emocional, não precisa sobreviver a nós, independendo, portanto, da duração absoluta.
Essas considerações me pareceram incontestáveis, mas observei que não causara impressão quer no poeta quer em meu amigo. Meu fracasso levou-me a inferir que algum fator emocional poderoso se achava em ação, perturbando-lhes o discernimento, e acreditei, depois, ter descoberto o que era. O que lhes estragou a fruição da beleza deve ter sido uma revolta em suas mentes contra o luto. A idéia de que toda essa beleza era transitória comunicou a esses dois espíritos sensíveis uma antecipação de luto pela morte dessa mesma beleza; e, como a mente instintivamente recua de algo que é penoso, sentiram que em sua fruição de beleza interferiam pensamentos sobre sua transitoriedade.
O luto pela perda de algo que amamos ou admiramos se afigura tão natural ao leigo, que ele o considera evidente por si mesmo. Para os psicólogos, porém, o luto constitui um grande enigma, um daqueles fenômenos que por si sós não podem ser explicados, mas a partir dos quais podem ser rastreadas outras obscuridades. Possuímos, segundo parece, certa dose de capacidade para o amor – que denominamos de libido – que nas etapas iniciais do desenvolvimento é dirigido no sentido de nosso próprio ego. Depois, embora ainda numa época muito inicial, essa libido é desviada do ego para objetos, que são assim, num certo sentido, levados para nosso ego. Se os objetos forem destruídos ou se ficarem perdidos para nós, nossa capacidade para o amor (nossa libido) será mais uma vez liberada e poderá então ou substituí-los por outros objetos ou retornar temporariamente ao ego. Mas permanece um mistério para nós o motivo pelo qual esse desligamento da libido de seus objetos deve constituir um processo tão penoso, até agora não fomos capazes de formular qualquer hipótese para explicá-lo. Vemos apenas que a libido se apega a seus objetos e não renuncia àqueles que se perderam, mesmo quando um substituto se acha bem à mão. Assim é o luto.
Minha palestra com o poeta ocorreu no verão antes da guerra. Um ano depois, irrompeu o conflito que lhe subtraiu o mundo de suas belezas. Não só destruiu a beleza dos campos que atravessava e as obras de arte que encontrava em seu caminho, como também destroçou nosso orgulho pelas realizações de nossa civilização, nossa admiração por numerosos filósofos e artistas, e nossas esperanças quanto a um triunfo final sobre as divergências entre as nações e as raças. Maculou a elevada imparcialidade da nossa ciência, revelou nossos instintos em toda a sua nudez e soltou de dentro de nós os maus espíritos que julgávamos terem sido domados para sempre, por séculos de ininterrupta educação pelas mais nobres mentes. Amesquinhou mais uma vez nosso país e tornou o resto do mundo bastante remoto. Roubou-nos do muito que amáramos e mostrou-nos quão efêmeras eram inúmeras coisas que consideráramos imutáveis.
Não pode surpreender-nos o fato de que nossa libido, assim privada de tantos dos seus objetos, se tenha apegado com intensidade ainda maior ao que nos sobrou, que o amor pela nossa pátria, nossa afeição pelos que se acham mais próximos de nós e nosso orgulho pelo que nos é comum, subitamente se tenham tornado mais vigorosos. Contudo, será que aqueles outros bens, que agora perdemos, realmente deixaram de ter qualquer valor para nós por se revelarem tão perecíveis e tão sem resistência? Isso parece ser o caso de muitos de nós; só que, na minha opinião, mais uma vez, erradamente. Creio que aqueles que pensam assim, de e parecem prontos a aceitar uma renúncia permanente porque o que era precioso revelou não ser duradouro, encontram-se simplesmente num estado de luto pelo que se perdeu. O luto, como sabemos, por mais doloroso que possa ser, chega a um fim espontâneo. Quando renunciou a tudo que foi perdido, então consumiu-se a si próprio, e nossa libido fica mais uma vez livre (enquanto ainda formos jovens e ativos) para substituir os objetos perdidos por novos igualmente, ou ainda mais, preciosos. É de esperar que isso também seja verdade em relação às perdas causadas pela presente guerra. Quando o luto tiver terminado, verificar-se-á que o alto conceito em que tínhamos as riquezas da civilização nada perdeu com a descoberta de sua fragilidade. Reconstruiremos tudo o que a guerra destruiu, e talvez em terreno mais firme e de forma mais duradoura do que antes.
Em seguida surgiu um debate sobre a mulher. Sobre o seu papel e as dificuldades numa sociedade ocidental machista. Tínhamos uma artigo para ler sobre o conto Hoje de Madrugada de Raduan Nassar, segundo Anita, um dos contos mais impactantes que ela já leu ultimamente. E segundo Adelaide, “Um sopapo escrito e narrado por um homem que percebe os meandros da alma feminina e do que magoa e sabe como narrá-lo. (…) Erótico implícito.”
Como nem todos haviam lido o conto, não vou denunciar quem fui que não leu, então resolvemos relê-lo. E seguiram-se os comentários sobre o conto e de como cada um tinha sido impactado por ele. Com isso não havia mais tempo para ler o artigo e deixamos para o próximo encontro. Não sei se foi só isso, mas sei que foi assim.
Segue o Conto de Raduan Nassar lido:
Hoje de Madrugada
Raduan Nassar
O que registro agora aconteceu hoje de madrugada quando a porta do meu quarto de trabalho se abriu mansamente, sem que eu notasse. Ergui um instante os olhos da mesa e encontrei os olhos perdidos da minha mulher. Descalça, entrava aqui feito ladrão. Adivinhei logo seu corpo obsceno debaixo da camisola, assim como a tensão escondida na moleza daqueles seus braços, enérgicos em outros tempos. Assim que entrou, ficou espremida ali ao canto; me olhando. Ela não dizia nada, eu não dizia nada. Senti num momento que minha mulher mal sustentava a cabeça sob o peso de coisas tão misturadas, ela pensando inclusive que .me atrapalhava nessa hora absurda em que raramente trabalho, eu que não trabalhava. Cheguei a pensar que dessa vez ela fosse desabar, mas continuei sem dizer nada, mesmo sabendo que qualquer palavra desprezível poderia quem sabe tranquilizá-la. De olhos sempre baixos, passei a rabiscar ao verso de uma folha usada, e continuamos os dois quietos: ela acuada ali no canto, os olhos em cima de mim; eu aqui na mesa, meus olhas em cima do papel que eu rabiscava. De permeio, um e outro estalido na madeira do assoalho.
Não me mexi na cadeira quando percebi que minha mulher abandonava o seu canto, não ergui os olhos quando vi sua mão apanhar o bloco de rascunho que tenho entre meus papéis. Foi uma caligrafia rápida e nervosa; foi una frase curta que ela escreveu, me empurrando o bloco todo, sem destacar a folha, para o foco dos meus olhos: “vim em busca de amor” estava escrito, e em cada letra era fácil de ouvir o grito de socorro. Não disse nada, não fiz um movimento, continuei com os olhos pregados na mesa. ?Mas logo pude ver sua mão pegar de novo o bloco e quase em seguida me devolvê-lo aos olhos: “responda” ela tinha escrito mais embaixo numa letra desesperada, era um gemido. Fiquei um tempo sem me mexer, mesmo sabendo que ela sofria, que pedia em súplica, que mendigava afeto. Tentei arrumar (foi um esforço) sua imagem remota, iluminada; provocadoramente altiva, e que agora expunha a nuca a um golpe de misericórdia. E ali, do outro lado da mesa, minha mulher apertava as mãos, e esperava. Interrompi o rabisco e escrevi sem pressa: “não tenho afeto para dar”, não cuidando sequer de lhe empurrar o bloco de volta, mas nem foi preciso, sua mão, com a avidez de um bico, se lançou sobre o grão amargo que eu, num desperdício, deixei escapar entre meus dedos. Mantive os olhos baixos, enquanto ela deitava o bloco na mesa com calma e zelo surpreendentes, era assim talvez que ela pensava refazer-se do seu ímpeto.
Não demorou, minha mulher deu a volta na mesa e logo senti sua sombra atrás da cadeira, e suas unhas no dorso do meu pescoço, me roçando as orelhas de passagem, raspando o meu couro, seus dedos trêmulos me entrando pelos cabelos desde a nuca. Sem me virar, subi o braço, fechei minha mão ao alto, retirando sua mão dali como se retirasse um objeto corrompido, mas de repente frio, perdido entre meus cabelos. Desci lentamente nossas mãos até onde chegava o comprimento do seu braço, e foi nessa altura que eu, num gesto claro, abandonei sua mão no ar. A sombra atrás de mim se deslocou, o pano da camisola esboçou um voo largo, foi num só lance para a janela, tinha até verdade naquela ponta de teatralidade. Mas as venezianas estavam fechadas, ela não tinha o que ver, nem mesmo através das frinchas, a madrugada lá fora ainda ressonava. Espreitei um instante: minha mulher estava de costas, a mão suspensa na boca, mordia os dedos.
Quando ela veio da janela, ficando de novo à minha frente, do outro lado da mesa, não me surpreendi com o laço desfeito do decote, nem com os seios flácidos tristemente expostos, e nem com o traço de demência lhe pervertendo a cara. Retomei o rabisco enquanto ela espalmava as mãos na superfície, e, debaixo da mesa, onde eu tinha os pés descalços na travessa, tampouco me surpreendi com a artimanha do seu pé, tocando com as pontas dos dedos a sola do meu, sondando clandestino minha pele no subsolo. Mais seguro, próspero, devasso, seu pé logo se perdeu sob o pano do meu pijama, se esfregando na densidade dos meus pelos, subindo afoito, me lambendo a perna feito uma chama. Fiz a tentativa com vagar, seu pé de início se atracou voluntarioso na barra, e brigava, resistia, mas sem pressa me desembaracei dele, recolhendo meus próprios pés que cruzei sob a cadeira. Voltei a erguer os olhos, sua postura, ainda que eloquente, era de pedra: a cabeça jogada em arremesso para trás, os cabelos escorridos sem tocar as costas, os olhos cerrados; dois frisos úmidos e brilhantes contornando o arco das pálpebras; a boca escancarada, e eu não minto quando digo que não eram os lábios descorados, mas seus dentes é que tremiam.
Numa arrancada súbita, ela se deslocou quase solene em direção à porta; logo freando porém o passo. E parou. Fazemos muitas paradas na vida, mas supondo-se que aquela não fosse uma parada qualquer, não seria fácil descobrir o que teria interrompido o seu andar. Pode ser simplesmente que ela se remetesse então a uma tarefa trivial a ser cumprida quando o dia clareasse. Ou pode ser também que ela não entendesse a progressiva escuridão que se instalava para sempre em sua memória. Não importa que fosse por esse ou aquele motivo, só sei que, passado o instante de suposta reflexão minha mulher, os ombros caídos, deixou o quarto feito sonâmbula.
O texto acima foi extraído dos “Cadernos de Literatura Brasileira”, Instituto Moreira Salles – Rio de Janeiro, exemplar número 2 de setembro de 1996, pág. 56.
João Gratuliano é contista, ensaísta, poeta, crítico literário.
Aceitei o desafio de contar a viagem da última quarta-feira, 28, março, que findava sem chuvas a fechar o verão, hoje quando escrevo, cai uma chuva maravilhosa, com trovões, abril abrindo com chuvas do outono.
Dá um aconchego bom essa chuva atrasada, tal o que senti ao chegar na Oficina Literária, já começada, repleta de viageiros, ali na bica, para serem bebidos em sua essência, sem destilação: poemas de Charles Bukowski.
Engraçado como de repente uma cortina se abre e lembramos já termos ouvido suas frases em lugares diversos, até em postagem do filho, e mesmo escolhido um livro dele ao acaso em livraria de aeroporto, para ler no avião. Essas surpresas são parte da Oficina, tão deliciosas como os doces Lolita que Adelaide nos traz,
e que alegria que ela estava lá, já sentada ao lado de Lourdinha, a nos falar sobre ele ser um escritor apreciado dos jovens e movimento Underground.
Para saber tudo sobre ele existe esse site, tem uma time-line ótima, não deixem de dar uma espiada: https://bukowski.net/
Então, aqui vou dizer pouco: Charles Bukowski nasceu na Alemanha em 1920, aos três anos mudou-se com a sua família para Los Angeles, USA. Publicou mais de 45 livros de poesia e prosa, dentre os quais Misto-quente, Numa Fria, Factótum,Notas de um velho safado,Fabulário geral do delírio cotidiano e Pulp (o que comprei no aeroporto), concluído alguns meses antes de sua morte, em março de 1994, aos 73 anos.
Trazidos por Lourdinha, responsável pelo Momento Poético nesse dia, foram lidos os seguintes poemas e algumas frases de Bukowski:
Um poema de amor
Charles Bukowski (Tradução: Jorge Wanderley)
todas as mulheres
todos os beijos delas as
formas variadas como amam e
falam e carecem.
suas orelhas elas todas têm
orelhas e
gargantas e vestidos
e sapatos e
automóveis e ex-
maridos.
principalmente
as mulheres são muito
quentes elas me lembram a
torrada amanteigada com a manteiga
derretida
nela.
há uma aparência
no olho: elas foram
tomadas, foram
enganadas. não sei mesmo o que
fazer por
elas.
sou
um bom cozinheiro, um bom
ouvinte
mas nunca aprendi a
dançar — eu estava ocupado
com coisas maiores.
mas gostei das camas variadas
lá delas
fumar um cigarro
olhando pro teto. não fui nocivo nem
desonesto. só um
aprendiz.
sei que todas têm pés e cruzam
descalças pelo assoalho
enquanto observo suas tímidas bundas na
penumbra. sei que gostam de mim algumas até
me amam
mas eu amo só umas
poucas.
algumas me dão laranjas e pílulas de vitaminas;
outras falam mansamente da
infância e pais e
paisagens; algumas são quase
malucas mas nenhuma delas é
desprovida de sentido; algumas amam
bem, outras nem
tanto; as melhores no sexo nem sempre
são as melhores em
outras coisas; todas têm limites como eu tenho
limites e nos aprendemos
rapidamente.
todas as mulheres todas as
mulheres todos os
quartos de dormir
os tapetes as
fotos as
cortinas, tudo mais ou menos
como uma igreja só
raramente se ouve
uma risada.
essas orelhas esses
braços esses
cotovelos esses olhos
olhando, o afeto e a
carência me
sustentaram, me
sustentaram.
O Pássaro Azul
Charles Bukovski (Tradução: Pedro Gonzaga)
há um pássaro azul em meu peito
que quer sair
mas sou duro demais com ele,
eu digo, fique aí, não deixarei que ninguém o veja.
há um pássaro azul em meu peito que
quer sair
mas eu despejo uísque sobre ele e inalo
fumaça de cigarro
e as putas e os atendentes dos bares
e das mercearias
nunca saberão que
ele está
lá dentro.
há um pássaro azul em meu peito
que quer sair
mas sou duro demais com ele,
eu digo,
fique aí,
quer acabar comigo?
(…) há um pássaro azul em meu peito que
quer sair
mas sou bastante esperto, deixo que ele saia
somente em algumas noites
quando todos estão dormindo.
eu digo: sei que você está aí,
então não fique triste.
depois, o coloco de volta em seu lugar,
mas ele ainda canta um pouquinho
lá dentro, não deixo que morra
completamente
e nós dormimos juntos
assim
como nosso pacto secreto
e isto é bom o suficiente para
fazer um homem
chorar,
mas eu não choro,
e você?
Bluebird
there’s a bluebird in my heart that
wants to get out
but I’m too tough for him,
I say, stay in there, I’m not going
to let anybody see
you.
there’s a bluebird in my heart that
wants to get out
but I pour whiskey on him and inhale
cigarette smoke
and the ****s and the bartenders
and the grocery clerks
never know that
he’s
in there.
there’s a bluebird in my heart that
wants to get out
but I’m too tough for him,
I say,
stay down, do you want to mess
me up?
you want to screw up the
works?
you want to blow my book sales in
Europe?
there’s a bluebird in my heart that
wants to get out
but I’m too clever, I only let him out
at night sometimes
when everybody’s asleep.
I say, I know that you’re there,
so don’t be
sad.
then I put him back,
but he’s singing a little
in there, I haven’t quite let him
die
and we sleep together like
that
with our
secret pact
and it’s nice enough to
make a man
weep, but I don’t
weep, do
you?
então queres ser um escritor?
(Tradução: Manuel A. Domingos)
se não sai de ti a explodir
apesar de tudo,
não o faças.
a menos que saia sem perguntar do teu
coração, da tua cabeça, da tua boca
das tuas entranhas,
não o faças.
se tens que estar horas sentado
a olhar para um ecrã de computador
ou curvado sobre a tua
máquina de escrever
procurando as palavras,
não o faças.
se o fazes por dinheiro ou
fama,
não o faças.
se o fazes para teres
mulheres na tua cama,
não o faças.
se tens que te sentar e
reescrever uma e outra vez,
não o faças.
se dá trabalho só pensar em fazê-lo,
não o faças.
se tentas escrever como outros escreveram,
não o faças.
se tens que esperar para que saia de ti
a gritar,
então espera pacientemente.
se nunca sair de ti a gritar,
faz outra coisa.
se tens que o ler primeiro à tua mulher
ou namorada ou namorado
ou pais ou a quem quer que seja,
não estás preparado.
não sejas como muitos escritores,
não sejas como milhares de
pessoas que se consideram escritores,
não sejas chato nem aborrecido e
pedante, não te consumas com auto-devoção.
as bibliotecas de todo o mundo têm
bocejado até
adormecer
com os da tua espécie.
não sejas mais um.
não o faças.
a menos que saia da
tua alma como um míssil,
a menos que o estar parado
te leve à loucura ou
ao suicídio ou homicídio,
não o faças.
a menos que o sol dentro de ti
te queime as tripas,
não o faças.
quando chegar mesmo a altura,
e se foste escolhido,
vai acontecer
por si só e continuará a acontecer
até que tu morras ou morra em ti.
não há outra alternativa.
e nunca houve.
As frases de Bukowski lidas na ocasião;
Ainda no Momento Poético, Sarmento nos trouxe a música Mulheres, de Martinho da Vila, que Um Poema de Amor” o fez lembrar, com similar tema.
Mulheres
Martinho da Vila
Já tive mulheres de todas as cores
De várias idades, de muitos amores
Com umas até certo tempo fiquei
Pra outras apenas um pouco me dei
Já tive mulheres do tipo atrevida
Do tipo acanhada, do tipo vivida
Casada carente, solteira feliz
Já tive donzela e até meretriz
Mulheres cabeça e desequilibradas
Mulheres confusas, de guerra e de paz
Mas nenhuma delas me fez tão feliz
Como você me faz
Procurei em todas as mulheres a felicidade
Mas eu não encontrei e fiquei na saudade
Foi começando bem, mas tudo teve um fim
Você é o sol da minha vida, a minha vontade
Você não é mentira, você é verdade
É tudo o que um dia eu sonhei pra mim
Já tive mulheres de todas as cores
De várias idades, de muitos amores
Com umas até certo tempo fiquei
Pra outras apenas um pouco me dei
Já tive mulheres do tipo atrevida
Do tipo acanhada, do tipo vivida
Casada carente, solteira feliz
Já tive donzela e até meretriz
Mulheres cabeça e desequilibradas
Mulheres confusas, de guerra e de paz
Mas nenhuma delas me fez tão feliz
Como você me faz
Procurei em todas as mulheres a felicidade
Mas eu não encontrei e fiquei na saudade
Foi começando bem, mas tudo teve um fim
Você é o sol da minha vida, a minha vontade
Você não é mentira, você é verdade.
É tudo o que um dia eu sonhei pra mim
Procurei em todas as mulheres a felicidade
Mas eu não encontrei e fiquei na saudade
Foi começando bem, mas tudo teve um fim
Você é o sol da minha vida, a minha vontade
Você não é mentira, você é verdade
É tudo o que um dia eu sonhei pra mim
Após saboreado o momento poético, Eleta leu o seu conto CARNAVAL, que os viageiros, ansiosos para entender a história em meio a fantasias, foliões, frevos, suspiros e decepções amorosas, logo lhe cobriram de perguntas, e deram algumas sugestões, em alvoroço de mar agitado.
Passamos à leitura de um conto de Raduan Nassar (para acalmar os ânimos e os espíritos?): Hoje de Madrugada:
“O que registro agora aconteceu hoje de madrugada quando a porta do meu quarto de trabalho se abriu mansamente, sem que eu notasse. Ergui um instante os olhos da mesa e encontrei os olhos perdidos da minha mulher. Descalça, entrava aqui feito ladrão. Adivinhei logo seu corpo obsceno debaixo da camisola, assim como a tensão escondida na moleza daqueles seus braços, enérgicos em outros tempos. Assim que entrou, ficou espremida ali ao canto; me olhando. Ela não dizia nada, eu não dizia nada. Senti num momento que minha mulher mal sustentava a cabeça sob o peso de coisas tão misturadas, ela pensando inclusive que .me atrapalhava nessa hora absurda em que raramente trabalho, eu que não trabalhava. Cheguei a pensar que dessa vez ela fosse desabar, mas continuei sem dizer nada, mesmo sabendo que qualquer palavra desprezível poderia quem sabe tranquilizá-la. De olhos sempre baixos, passei a rabiscar ao verso de uma folha usada, e continuamos os dois quietos: ela acuada ali no canto, os olhos em cima de mim; eu aqui na mesa, meus olhos em cima do papel que eu rabiscava. De permeio, um e outro estalido na madeira do assoalho.”
Registrei aqui apenas o primeiro parágrafo desse conto, que Adelaide nos tinha enviado por e-mail, e vários dentre os viageiros o leram e discutiram à época; em consenso: um soco no estômago! Relido, agora, na Oficina, ainda mais nos assombrou e doeu. É assim Raduan Nassar, não escreve à toa. Merecidamente recebeu o prêmio Camões de Literatura 2016:
E assim voltamos para casa, marujadamente maravilhados, querendo ler e reler, escrever, cortar, recortar e reescrever nossos enxeridos escritos, depois de ler mestres.
*Salete Oliveira é engenheira química, poeta e contista
O viageiro Sarmento, no Momento Poético, relembrou um passado que não passou e que continua muito vivo ainda em nossas lembranças, com a poesia Operário em Construção, de Vinicius de Moraes. Certamente este poema, parafraseando o próprio poeta, será imortal enquanto dure, enquanto dure a exploração do homem pelo próprio homem, eu acrescentaria.
O operário de construção, semelhante a um pássaro sem asas, subia com as casas que lhe brotavam das mãos. Estávamos vivendo um Brasil ditatorial cruel que não permitia –aos operários/povo- reconhecer o valor do seu trabalho. Vinicius mostra esse desconhecimento ao dizer: Como podia o operário compreender porque um tijolo valia mais que um pão? Como também desconhecia que o operário faz a coisa e a coisa faz o operário. Os ditadores não conseguiram impedir que pelas mãos desse humilde operário nascesse um mundo novo, adquirindo a dimensão da poesia que ia aos poucos sendo derramada nos corações dos outros operários. E o operário disse NÃO! Um não que custou a ele e seus companheiros bárbaros tratamentos, pau de arara, choque elétrico, morte, sem direito à família de velar o seu defunto, restando a esperança de que novos tempos viriam. Muitas águas passaram por debaixo da ponte, mas a violência não conseguiu que o operário deixasse de enxergar, de agigantar-se, vendo em tudo que fazia o que de fato acontecia: o lucro do patrão. Neste poema, Vinicius descreve o processo de tomada de consciência do operário, partindo do pressuposto marxista de alienação.
O OPERÁRIO EM CONSTRUÇÃO
(Rio de Janeiro,1959)
Vinicius de Moraes
E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo:
– Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu.
E Jesus, respondendo, disse-lhe:
– Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.
Lucas, cap. V, vs. 5-8.
Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.
De fato, como podia
Um operário em construção
Compreender por que um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia…
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento
Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse, eventualmente
Um operário em construção.
Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
– Garrafa, prato, facão –
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.
Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.
Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
– Exercer a profissão –
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.
E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.
E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Que sempre dizia sim
Começou a dizer não.
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:
Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uísque do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.
E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução.
Como era de se esperar
As bocas da delação
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão.
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação
– “Convençam-no” do contrário –
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isso sorria.
Dia seguinte, o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu, por destinado
Sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!
Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras se seguiram
Muitas outras seguirão.
Porém, por imprescindível
Ao edifício em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.
Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário.
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
– Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.
Disse, e fitou o operário
Que olhava e que refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
O operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!
– Loucura! – gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
– Mentira! – disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.
E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão.
Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção.
Nem precisa ser muito ligado em literatura para gostar do diplomata, jornalista, compositor (dos bons), poeta Marcus Vinicius de Mello Moraes, ou Vinicius de Moraes, como era mais conhecido, ou simplesmente poetinha, como o chamava Tom Jobim. Era como poeta e compositor, através de sonetos e de canções, que ele gostava de ser reconhecido. Carioca da gema, sessenta e seis anos vividos intensamente, casou nove vezes, era um boêmio curtindo a vida carioca com cigarro e uísque.
É difícil elencar a obra deste gênio brasileiro, por isso escolhemos citar trechos de algumas delas para ilustrar a poesis do branco mais preto do Brasil
Soneto da fidelidade
De tudo ao meu amor serei atento
Que ele seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure
Samba da benção
È melhor ser alegre que ser triste
A alegria é a melhor coisa que existe
Mas pra se fazer um samba com beleza
é preciso um bocado de tristeza
Se não, não se faz um samba não
A vida é arte do encontro
Embora exista tantos desencontros pela vida
Cantos de Ossanha
Não vou eu não sou ninguém de ir
Em conversas de esquecer a tristeza
De um amor que passou
Não eu sou vou se for pra ver
Uma estrela aparecer
Na manhã de um novo amor
Rosa de Hiroschima
A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa, sem nada
Onde anda você
E por falar em saudade
Onde anda você
Onde andam seus olhos que a gente não vê
Minha namorada
Mais se em vez minha namorada
Você quer ser minha amada
Minha amada, mais amada pra valer
Aquela amada pelo amor predestinada
Sem a qual a vida é nada
Sem a qual se quer morrer
Garota do Ipanema
Vejam que coisa mais linda
Mais cheia de graça
é ela menina
que vem e que passa
no doce balanço
A caminho do mar
Samba em preludio
Eu sem você não tenho nem porque
Porque sem você
Não sei nem chorar
Sou chama sem luz
Jardim sem luar
Sarmento continuou alimentando o grupo sedento de poesia, dessa feita com os poemas de Geir Campos, Tarefa e Alba, seguindo a mesma trilha de poesia de denúncia social, poesia comprometida politico e socialmente.
Tarefa
Morder o fruto amargo e não cuspir
mas avisar aos outros quanto é amargo,
cumprir o trato injusto e não falhar
mas avisar aos outros quanto é injusto,
sofrer o esquema falso e não ceder
mas avisar aos outros quanto é falso;
dizer também que são coisas mutáveis…
E quando em muitos a noção pulsar
— do amargo e injusto e falso por mudar —
então confiar à gente exausta o plano
de um mundo novo e muito mais humano.
(1957)
**Alba
Não faz mal que amanheça devagar,
as flores não têm pressa nem os frutos:
sabem que a vagareza dos minutos
adoça mais o outono por chegar.
Portanto não faz mal que devagar
o dia vença a noite em seus redutos
de leste – o que nos cabe é ter enxutos
os olhos e a intenção de madrugar.
(1957)
O poeta Geir Canpos é capixaba, membro do partido comunista, engajado nas lutas políticas e sociais., formado em Teatro e Doutor em Comunicação Social. Talvez por suas posições políticas foi pouco difundido pela mídia. Poeta, livreiro, tradutor, faz parte dos poetas da chamada geração 45, destacava-se pelo rigor literário e estético.. Foi um dos fundadores da editora Hipocampo, junto com o poeta Thiago de Melo, para difundir suas obras de forma artesanal. Marcou presença também como um dos organizadores dos Cadernos do Povo Brasileiro, Violão de Rua, publicados pelo Centro Popular de Cultura da UNE.
. “A poesia de Geir Campos tem circulação, ousadia e canto. Ninguém pode equivocar-se: aproximando o ouvido, sentimo-la como um rumor de cristal errante, sentido e som da poesia verdadeira.” (Pablo Neruda)
**Alba significado: Claridade que precede ao nascer do dia
Seguindo com a Oficina, outro pilar dos trabalhos foi iniciado com a leitura dos contos escritos pelos seus participantes, os viageiros pelos mares das palavras. Três contos estavam previstos para serem lidos, sendo seus autores eu, Salete e Eleta. A Oficina procura estimular a criatividade e o exercício da lapidação das palavras, para que os viageiros se tornem artesãos da escrita. trabalhando técnicas de ensaio, contos, novelas ou outras, sobre temas acordados entre seus pares. Neste dia o tema foi o do triangulo amoroso, com o constrangimento da duplicação, em que uma história estaria sendo contada e outra estava ocorrendo ao mesmo tempo, tão ou mais importante do que a primeira. A ideia do constrangimento decorre da concepção Oulipiana de limitar a escrita a alguma condição anterior.
Iniciando a leitura dos contos por mim, Luzia, com o conto Corações na Bananeira, que gerou um debate profundo sobre a construção do tema, entendimento dos personagens, linguagem poética, ortografia, gramatica, ineditismo.O tempo da oficina esgotou-se sem as demais leituras programadas e sem a conclusão da análise do meu conto. Por conta disso, algumas sugestões foram apontadas para maximizar o tempo para as análises das narrativas, entre elas, a da leitura antecipada, cada participante traria a sua análise para que melhor fosse aproveitado esse importante momento literário.
Assim como no ano anterior, comemoramos o dia Internacional da Mulher com poesia, que outra forma melhor para se homenagear um ser tão inspirador dos poetas? Foi por isso que levamos o papa da poesia americana, com assento no panteão poético universal, Walt Whitman, com Esta é a Forma Fêmea:
Esta é a Forma Fêmea
*Walt Whitman
Esta é a forma fêmea:
dos pés à cabeça dela exala um halo divino,
ela atrai com ardente
e irrecusável poder de atração,
eu me sinto sugado pelo seu respirar
como se eu não fosse mais
que um indefeso vapor
e, a não ser ela e eu, tudo se põe de lado
— artes, letras, tempos, religiões,
o que na terra é sólido e visível,
e o que do céu se esperava
e do inferno se temia,
tudo termina:
estranhos filamentos e renovos
incontroláveis vêm à tona dela,
e a acção correspondente
é igualmente incontrolável;
cabelos, peitos, quadris,
curvas de pernas, displicentes mãos caindo
todas difusas, e as minhas também difusas,
maré de influxo e influxo de maré,
carne de amor a inturgescer de dor
deliciosamente,
inesgotáveis jactos límpidos de amor
quentes e enormes, trémula geléia
de amor, alucinado
sopro e sumo em delírio;
noite de amor de noivo
certa e maciamente laborando
no amanhecer prostrado,
a ondular para o presto e proveitoso dia,
perdida na separação do dia
de carne doce e envolvente.
Eis o núcleo — depois vem a criança
nascida de mulher,
vem o homem nascido de mulher;
eis o banho de origem,
a emergência do pequeno e do grande,
e de novo a saída.
Não se envergonhem, mulheres:
é de vocês o privilégio de conterem
os outros e darem saída aos outros
— vocês são os portões do corpo
e são os portões da alma.
A fêmea contém todas
as qualidades e a graça de as temperar,
está no lugar dela e movimenta-se
em perfeito equilíbrio,
ela é todas as coisas devidamente veladas,
é ao mesmo tempo passiva e activa,
e está no mundo para dar ao mundo
tanto filhos como filhas,
tanto filhas como filhos.
Assim como na Natureza eu vejo
minha alma refletida,
assim como através de um nevoeiro,
eu vejo Uma de indizível plenitude
e beleza e saúde,
com a cabeça inclinada e os braços
cruzados sobre o peito
— a Fêmea eu vejo.
Sempre procuramos postar, junto ao traduzido, o poema no seu original, para dar a sua verdadeira dimensão, força e beleza. Não foi fácil dessa vez, o único encontrado pelas minhas pesquisas estava incompleto, então recorri a Adelaide, a nossa maruja garimpadora de perolas poéticas, para me ajudar. E aqui está o poema em Inglês completo: This is the female form , in Leaves of Grass.
This is the female form
A divine nimbus exhales from it from head to foot,
It attracts with fierce undeniable attraction,
I am drawn by its breath as if I were no more than a helpless
vapor, all falls aside but myself and it,
Books, art, religion, time, the visible and solid earth, and what was
expected of heaven or fear’d of hell, are now consumed,
Mad filaments, ungovernable shoots play out of it, the response
likewise ungovernable,
Hair, bosom, hips, bend of legs, negligent falling hands all dif
fused, mine too diffused,
Ebb stung by the flow and flow stung by the ebb, love-flesh swell-
ing and deliciously aching,
Limitless limpid jets of love hot and enormous, quivering jelly of
love, white-blow and delirious juice,
Bridegroom night of love working surely and softly into the pros-
trate dawn,
Undulating into the willing and yielding day,
Lost in the cleave of the clasping and sweet-flesh’d day.
This the nucleus—after the child is born of woman, man is born
of woman,
This the bath of birth, this the merge of small and large, and the
outlet again.
Be not ashamed women, your privilege encloses the rest, and is the
exit of the rest,
You are the gates of the body, and you are the gates of the soul.
The female contains all qualities and tempers them,
She is in her place and moves with perfect balance,
She is all things duly veil’d, she is both passive and active,
She is to conceive daughters as well as sons, and sons as well as
daughters.
As I see my soul reflected in Nature,
As I see through a mist, One with inexpressible completeness,
sanity, beauty,
See the bent head and arms folded over the breast, the Female
I see.
No ano anterior trouxemos Carlos Drummond de Andrade para homenagear a Mulher. Agora, em 2017, revemos poema já lido anteriormente na Oficina, de Vinicius de Moraes, A Mulher que Passa, uma entre várias celebrações desse poeta às mulheres.
A Mulher que Passa
Vinicius de Moraes
Meu Deus, eu quero a mulher que passa.
Seu dorso frio é um campo de lírios
Tem sete cores nos seus cabelos
Sete esperanças na boca fresca!
Oh! Como és linda, mulher que passas
que me sacias e suplicias
Dentro das noites, dentro dos dias!
Teus sentimentos são poesia
Teus sofrimentos, melancolia.
Teus pêlos leves são relva boa
Fresca e macia.
Teus belos braços são cisnes mansos
Longe das vozes da ventania.
Meu Deus, eu quero a mulher que passa!
Como te adoro, mulher que passas
Que vens e passas, que me sacias
Dentro das noites, dentro dos dias!
Porque me faltas, se te procuro?
Por que me odeias quando te juro
Que te perdia se me encontravas
E me encontrava se te perdias?
Por que não voltas, mulher que passa?
Por que não enches a minha vida?
Por que não voltas, mulher querida
Sempre perdida, nunca encontrada?
Por que não voltas à minha vida
Para o que sofro não ser desgraça?
Meu Deus, eu quero a mulher que passa!
Eu quero-a agora, sem mais demora
A minha amada mulher que passa!
No santo nome do teu martírio
Do teu martírio que nunca cessa
Meu Deus, eu quero, quero depressa
A minha amada mulher que passa!
Que fica e passa, que pacifica
Que é tanto pura como devassa
Que bóia leve como a cortiça
E tem raízes como a fumaça.
O nosso companheiro de viagens, Everaldo Soares Júnior, levou para a Oficina um grande poeta: Ezra Pound, famoso pelos seus poemas e pela influência sobre escritores e poetas famosos como James Joyce, T.S Eliot e muitos outros cardeais da Literatura.
Júnior levou uma pequena biografia do poeta para que nos familiarizássemos um pouco mais com ele, até porque ficou muito marcado pela sua posição política, principalmente, durante um dos períodos mais negros da nossa história que foi a Segunda Guerra MUndial.
Americano, nascido em Halley, Idaho, cresceu perto da Filadéfia e formou-se na Universidade da Pensilvânia. Durante algum tempo foi professor e em seguida viajou pela Espanha, Itália e França. O primeiro livro de poesias ele publicou em Veneza, em 1908. Mudou-se para Londres onde fez um círculo de amizade com escritores importantes como Ford Madox, James Joyce, Yeats, T.S.Eliot, Windham Lewis, influenciando todos eles. Nesse período, publicou Personae e Exultations e um volume de ensaios sobre o Romance. Participou como coautor de Revistas em Londres e depois em Paris, para onde foi morar. Data de 1920 a publicação de textos críticos sobre Literatura. Conhecedor da Literatura Ocidental e Oriental, Pound, associou-se ao movimento Imagista, do qual foi o líder durante algum tempo. A ideia que circunscrevia esse movimento era que o poeta deveria explorar de forma disciplinada as potencialidades da imagem e da metáfora., consideradas a essência da poesia. As origens desse movimento se encontravam na poesia chinesa e japonesa, na poesia latina, em poemas de tradição medieval inglesa. Pound escreveu Cantos, publicados ao longo de 1917/1949, e inacabados, onde pretendia fazer uma versão moderna da Divina Comédia de Dante.
Ao se mudar para a Itália, em 1924, as suas posições teóricas sobre política e economia o associaram ao fascismo, tendo inclusive feito pronunciamentos antidemocráticos numa radio italiana, durante a Segunda Guerra Mundial. Devido ao seu comprometimento com o fascismo foi preso em 1945 e solto pela pressão internacional dos artistas, quando foi repatriado. A defesa usou como argumento para que fosse libertado, que ele era mentalmente incapaz. Por conta disso, ao ser repatriado ele ficou internado num hospital psiquiátrico em Washington. Quando a acusação de traição, enfim, foi retirada, em 1958, Pound voltou à Itália e continuou escrevendo os seus Cantos até 1972, ano da sua morte.
Considerado um dos maiores poetas do século XX, título que divide com Maiakóvski, a sua obra lírica, erudita, carregada de citações e alusões históricas, renovou a linguagem poética. Sendo o primeiro líder do modernismo dos Estados Unidos, sua influência fez-se sentir inclusive na poesia da Geração beat,que levou a extremos a ideia poundiana de que o poema deve reproduzir a ordem natural da sintaxe de uma língua (falada) e não afastar-se demais da música ou da própria língua falada, já que o poema deve soar natural ao ouvido se lido em voz alta.
Pound classifica três maneiras de escrever poesia: uma voltada para as suas qualidades sonoras, pela sua melodia (melopeia); outra voltada para as imagens, para o visual (fanopeia), e outra para o que ele chamou de “a dança das ideias”, (logopeia). Ele continua presente na poesia, ultrapassando as fronteiras da Europa e da língua inglesa. No Brasil, a sua influência foi percebida no grupo da Poesia Concreta, na defesa pela economia verbal, sendo o exemplo mais claro João Cabral de Melo Neto.
Aqui estão as poesias trazidas por Everaldo Júnior no original e traduzidas, a exceção de Salvação que não consegui encontrar:
Envoi (1919)
Ezra Pound – tradução de Augusto Campos
Vai, livro natimudo,
E diz a ela
Que um dia me cantou essa canção de Lawes:
Houvesse em nós
Mais canção, menos temas,
Então se acabariam minhas penas,
Meus defeitos sanados em poemas
Para fazê-la eterna em minha voz
Diz a ela que espalha
Tais tesouros no ar,
Sem querer nada mais além de dar
Vida ao momento,
Que eu lhes ordenaria: vivam,
Quais rosas, no âmbar mágico, a compor,
Rubribordadas de ouro, só
Uma substância e cor
Desafiando o tempo.
Diz a ela que vai
Com a canção nos lábios
Mas não canta a canção e ignora
Quem a fez, que talvez uma outra boca
Tão bela quanto a dela
Em novas eras há de ter aos pés
Os que a adoram agora,
Quando os nossos dois pós
Com o de Waller se deponham, mudos,
No olvido que refina a todos nós,
Até que a mutação apague tudo
Salvo a Beleza, a sós.
Envoi
By Ezra Pound
Go, dumb-born book,
Tell her that sang me once that song of Lawes:
Hadst thou but song
As thou hast subjects known,
Then were there cause in thee that should condone
Even my faults that heavy upon me lie
And build her glories their longevity.
Tell her that sheds
Such treasure in the air,
Recking naught else but that her graces give
Life to the moment,
I would bid them live
As roses might, in magic amber laid,
Red overwrought with orange and all made
One substance and one colour
Braving time.
Tell her that goes
With song upon her lips
But sings not out the song, nor knows
The maker of it, some other mouth,
May be as fair as hers,
Might, in new ages, gain her worshippers,
When our two dusts with Waller’s shall be laid,
Siftings on siftings in oblivion,
Till change hath broken down
All things save Beauty alone.
E ASSIM EM NÍNIVE
Ezra Pound – tradução de Augusto Campos
“Sim! Sou um poeta e sobre minha tumba
Donzelas hão de espalhar pétalas de rosas
E os homens, mirto, antes que a noite
Degole o dia com a espada escura.
“Veja! não cabe a mim
Nem a ti objetar,
Pois o costume é antigo
E aqui em Nínive já observei
Mais de um cantor passar e ir habitar
O horto sombrio onde ninguém perturba
Seu sono ou canto.
E mais de um cantou suas canções
Com mais arte e mais alma do que eu;
E mais de um agora sobrepassa
Com seu laurel de flores
Minha beleza combalida pelas ondas,
Mas eu sou poeta e sobre minha tumba
Todos os homens hão de espalhar pétalas de rosas
Antes que a noite mate a luz
Com sua espada azul.
“Não é, Ruaana, que eu soe mais alto
Ou mais doce que os outros. É que eu
Sou um Poeta, e bebo vida
Como os homens menores bebem vinho.”
And Thus In Nineveh – Poem by Ezra Pound
Aye! I am a poet and upon my tomb
Shall maidens scatter rose leaves
And men myrtles, ere the night
Slays day with her dark sword.
‘Lo ! this thing is not mine
Nor thine to hinder,
For the custom is full old,
And here in Nineveh have I beheld
Many a singer pass and take his place
In those dim halls where no man troubleth
His sleep or song.
And many a one hath sung his songs
More craftily, more subtle-souled than I;
And many a one now doth surpass
My wave-worn beauty with his wind of flowers,
Yet am I poet, and upon my tomb
Shall all men scatter rose leaves
Ere the night slay light
With her blue sword.
‘It is not, Raana, that my song rings highest
Or more sweet in tone than any, but that I
Am here a Poet, that doth drink of life
As lesser men drink wine.’
Ezra Pound
SAUDAÇÃO
Ezra Pound – tradução de Mário Faustino
Oh geração dos afetados consumados
e consumadamente deslocados,
Tenho visto pescadores em piqueniques ao sol,
Tenho-os visto, com suas famílias mal-amanhadas,
Tenho visto seus sorrisos transbordantes de dentes
e escutado seus risos desengraçados.
E eu sou mais feliz que vós,
E eles eram mais felizes do que eu;
E os peixes nadam no lago
e não possuem nem o que vestir.
Foi um dia muito intenso na Oficina, além dos poetas referidos, lemos uma peça teatral de Moliére, As Preciosas Ridículas . Dividimos os papéis e ficou muito interessante a leitura, momento de descontração incrível por perceber o drama dos burgueses querendo apresentar uma cultura que eles não tinham.
Molière (1622/1673) foi um dramaturgo francês, além de encenador e ator. Ele foi considerado um mestre no teatro, especialmente na comédia satírica que, até então, era muito dependente das tragédias gregas. Ele inaugurou uma nova forma de fazer teatro, em que a crítica aos costumes da época era a tônica. Foi considerado o fundador da Comédie -Française . As Preciosas Ridículas chamou a atenção da crítica para Moliére, mas não foi um sucesso absoluto, na época. Só muitos anos depois a peça começou a figurar entre as grandes obras do autor.
Não houve tempo para se discutir mais a peça nem o seu autor porque havia se esgotado o tempo e nem nos déramos conta.
Às vésperas do Carnaval, os rufos dos tambores já sendo ouvidos muito próximos, a batucada no ar, a cuíca gemendo, alguns viageiros já alhures para não cederem a apelos tão fortes, nós navegantes que permanecemos a velejar vestimos as fantasias e fizemos um carnaval literário com direito a muitos poemas, teatro e cantos. E festejamos a chegada do novo viageiro Sarmento que se diz disposto a enfrentar os mares das palavras com toda paixão que eles exigem. Salve, navegante! .
O Momento Poético começou com Zodíaco, de Daniel Lima, escolhido pela nossa viageira Adelaide Câmara que, infelizmente, não pôde estar presente embora muito o quisesse. Só a saúde bombardeada por uma tosse inimiga atroz a impediria de ali estar para ela mesma ler o seu poeta. O poema escolhido fala mesmo do carnaval, do mês de fevereiro:
ZODÍACO 5 – Janeiro e fevereiro
Daniel Lima …
E ao chegar fevereiro ainda serás imortal da trágica imortalidade dos palhaços das colombinas e dos arlequins. Fevereiro é o Brasil, já vem gingando. (e o que é gingar? Não perguntes, não se diz, não se explica: só se vendo (ou se fazendo) Fevereiro desfila gosta de ser fevereiro. Ele se adora. E porque se adora, fevereiro samba e ri e se cobre todo de miçangas. Há borboletas que não vejo no jardim de rosas que não tenho. Mas fevereiro cria as rosas e o jardim e as borboletas. Fevereiro não gosta de Scarlatti mas gosta de escarlate e azul e cores misturadas. Fevereiro é ligeiro, um vôo de pássaro encantado, um relâmpago no céu inesperado (o relâmpago e o céu), o céu de fevereiro, a luz fugaz de um fósforo aceso. A alegria que levas de reserva colheste-a por certo em fevereiro, para queimá-la talvez a vida inteira. Mês leviano, essencial eterno e contingente. …
Fevereiro é geral, não te pertence. Universal riso puro de todos e ninguém. Fevereiro é Brasil. Viva Macunaíma! Ai, que preguiça! Do jeito que ora está Ninguém aguenta. Vou embora pra Bahia Hoje mesmo, Que ninguém é de ferro. E a vida vai comigo. E fevereiro fica. Não te esqueças: Dize:”adeus , fevereiro!” E outra vez mais: “Viva Macunaíma! Ai que preguiça!” Poemas,2011.
E os viageiros quiseram saber mais de Daniel Lima. Nascido em Timbaúba, foi sacerdote, diretor da Gazeta de Nazaré, um Jornal literário de Recife durante mais de 20 anos, lecionou Psicologia e Filosofia na UFPE. Até 2011 havia escrito 27 livros, 13 de poesia e 14 de Filosofia. Modesto, recusava-se a publicar suas obras, uma de suas alunas levou os originais de Poemas para a CEPE que o editou. Com este livro ele conquistou o primeiro lugar no Prêmio Alphonsus de Guimarães da Biblioteca Nacional. Morreu às vésperas de completar 96 anos, em 2012.
Outros poemas de Daniel Lima:
Ao nasceres, tinhas o prefigurado rosto
Que hoje terias se houvesses sido tu mesmo
No tempo singular de tua vida.
Mas viveste o relógio, não teu tempo
e agora vê teu rosto:
o que dele te resta é a desfigurada
sombra do primeiro rosto
que não soubeste ter,
nem mereceste.
x.x.x.x.x.x.x.x.x.x
Minha mãe era feita de incertezas.
tecida de solidão de infindas luas.
Nunca assentou seu coração viajeiro
de medo de esquecer o fim da viagem.
Não dormia, sonhava,
Vivia os sonhos acordada e louca
e amava a vida
com tal ódio e paixão, que até se percebia nos seus olhos,
nas mãos, nos gestos
na vontade de ser e o desespero
de não ser nunca e ainda.
E eu perguntava coisas
E ela não respondia,
apenas navegava incertos mares,
guiada por estrelas que eu não via.
Minha mãe era feita de incertezas
mas, por certo, sabia o que queria.
x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x
Nada será jogado no vazio.
Nem mesmo o vazio da vida,
porque é vida.
Nem mesmo o gesto inútil,
pois-que é gesto.
Nem mesmo o que não chegou a realizar-se,
pois-que é possível.
Nem mesmo ainda o que jamais se realizará,
porque é promessa.
E o próprio impossível
é vontade absurda de existir.
E nisso existe.
x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x
Os pássaros são sábios.
Não discutem: cantam.
Cantar é o jeito mais puro de entender
a vida.
Em seguida foi lido o poema Apego, da nossa viageira-poeta Salete Oliveira:
Apego
Salete Oliveira
Ah pego
Apego
Afeição
Ah pego
Simpatia
Gosto
Ah pego
Amor
Enamorar-me
Ah pego
Zelo
Paixão
Ah pego
Admiração
Enternecimento
Ah pego
Porque não sou uma pedra
E mesmo as pedras,
Vestem-se de multicoloridos limos
Após o Momento Poético, dirigimo-nos ao teatro para assistir o poema lírico em formato de peça teatral Máscaras, de Menotti Del Picchia, que fala do encantamento de dois homens muito diferentes, Arlequim e Pierrot, por uma mesma Mulher, Colombina.
Paulo Menotti del Picchia, paulista (1892/1988), poeta, ficcionista, ensaísta, editor, jornalista, industrial, banqueiro, deputado estadual e federal, escultor. Ficou conhecido ao projetar a Semana de Arte Moderna de 1922, da qual fez um diário na imprensa entre 20 e 30, tendo sido membro das Academias Paulista e Brasileira de Letras. Ao completar 85 anos, Menotti concedeu entrevistas das quais transcrevemos um trecho que pensamos traduzir bem a sua escrita:
Em matéria de arte não admito pressão externa: a arte deve ser pessoal, independente e livre; é ela que tira o ser humano da animalidade. (Folha de S.Paulo, 20 mar.1982).
O texto foi escrito em 1920 período de extrema efervescência cultural no Brasil. Os personagens, entretanto, já eram conhecidos, vieram da Commedia dell”arte, século XVIII, na Itália, também chamada de Comedia de Ofício e Comédia Artesã porque nasceu nos berços da cultura popular, com roteiros simples, os personagens usavam máscaras durante a encenação para não serem identificados. Tratava-se de uma espécie de resposta ao teatro clássico, ao teatro dos grandes e nobres salões. Na ocasião lemos um texto que falava de cada personagem, de como ele surgiu, de suas características Quem são o Pierrô, o Arlequim e a Colombina?
Na leitura da peça, Salete foi a Colombina que Paulo-Arlequim e Eleta-Pierrot tentaram conquistar. Foi muito engraçado, principalmente quando Colombina se confessava em dúvida com qual dos dois ficar. Foram horas muito divertidas.
Após a leitura, Sarmento disse que sempre havia gostado muito do tema, embora jamais houvesse pesquisado sobre as suas origens, disse ter gostado muito das informações e análises que foram levadas naquela tarde. Ele, inclusive, falou de uma marchinha de carnaval que havia feito há alguns anos, usando os personagens, e nós tivemos que insistir para que ele a cantasse..
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Lemos ainda trechos de um artigo que analisa sob o ponto de vista psicanalítico e um pouco literário este poema e dá uma breve biografia do seu autor,As máscaras de Menotti del’Picchia: Arlequim, o desejo − Colombina, a mulher − Pierrot, o sonho, de Stetina Trani de Meneses Dacorso. A epigrafe deste trabalho, retirada de uma música de Chico Buarque e Edu LObo, diz muito dos conflitos amorosos, triangulares ou não:
Mesmo sendo errados os amantes,
Seus amores serão bons.
(Choro Bandido,Chico Buarque/Edu Lobo)
Registro de nosso encontro em 15 de fevereiro de 2017 por Juan Rulfo, digo, Gratuliano.
Vim a oficina porque me disseram que aqui vivia uma musa, uma tal de literatura. Minha amiga me disse.
Aquele era o tempo do verão, quando o ar de fevereiro sopra quente, envenenado pelo odor apodrecido dos esgotos do Recife. No portão Lu me recebeu com seu cordial boa tarde. Estou aqui esperando dona Lurdinha, para ajudar com as sacolas. Ela vem sempre tão carregada. A porta está aberta. Pode entrar.
Agora eu estava aqui, nesta sala ainda sem os risos. Ouvia meus passos caírem sobre a cerâmica que empedrava o chão. Meus passos ocos, repetindo seu som no eco das paredes tingidas pelo cartazes de seminários do Traço.
Naquela hora, fui andando para o meu lugar. Olhei as cadeiras vazias; apenas quatro estavam ocupadas: Everaldo, Eleta, Cacilda e Salete. Uma bolsa feminina indicava que mais alguém estaria por ali e não tardou para que Anita aparecesse com sua elegância habitual.
Lourdes telefonou nos autorizando a começar a leitura das poesias. Como era mesmo o nome daquele fulano que Eleta nos apresentou? Walt Whitman! Sim, esse senhor um tanto barbudo, que bem poderia ser Pedro Páramo…
Walt Whitman (Huntington, 31 de maio de 1819 – Camden, 26 de março de 1892) foi um poeta, ensaísta e jornalista norte-americano, considerado por muitos como o “pai do verso livre”. Paulo Leminski o considerava o grande poeta da Revolução americana, como Maiakovsky seria o grande poeta da Revolução russa.
Eleta fez uma bela introdução sobre o escritor. E lemos dois poemas curtos:
A um Estranho
Estranho que passa! você não sabe com quanta saudade eu lhe olho,
Você deve ser aquele a quem procuro, ou aquela a quem procuro, (isso me vem, como em um sonho,)
Vivi com certeza uma vida alegre com você em algum lugar,
Tudo é relembrado neste relance, fluído, afeiçoado, casto, maduro,
Você cresceu comigo, foi um menino comigo, ou uma menina comigo,
Eu comi com você e dormi com você – seu corpo se tornou não apenas seu, nem deixou o meu corpo somente meu,
Você me deu o prazer de seus olhos, rosto, carne, enquanto passamos – você tomou de minha barba, peito, mãos, em retorno,
Eu não devo falar com você – devo pensar em você quando sentar-me sozinho, ou acordar sozinho à noite,
Eu devo esperar – não duvido que lhe reencontrarei,
Eu devo garantir que não irei lhe perder.
To a Stranger
Passing stranger! you do not know how longingly I look upon you,
You must be he I was seeking, or she I was seeking, (it comes to me, as of a dream,)
I have somewhere surely lived a life of joy with you,
All is recall’d as we flit by each other, fluid, affectionate, chaste, matured,
You grew up with me, were a boy with me, or a girl with me,
I ate with you, and slept with you—your body has become not yours only, nor left my body mine only,
You give me the pleasure of your eyes, face, flesh, as we pass—you take of my beard, breast, hands, in return,
I am not to speak to you—I am to think of you when I sit alone, or wake at night alone,
I am to wait—I do not doubt I am to meet you again,
I am to see to it that I do not lose you.
A Você
Estranho! se, ao passar, você me encontrar e desejar falar comigo, por que não falar comigo?
E por que eu não falaria com você?
To You
Stranger! if you, passing, meet me, and desire to speak to me, why should you not speak to me?
And why should I not speak to you?
Chegaram nesse meio tempo, Saló, Lourdes e Luzia carregando a tal bagagem que Lu estava esperado para ajudar.
Dando continuidade ao Momento Poetico, Anita lembrou que o Riso, tema dos nossos trabalhos este ano, também faz poesia e leu o Poema Matuto, Eu e Maria:
POEMA MATUTO
*DO LIVRO ‘CANTIGAS QUE VÊM DA TERRA”
EU E MARIA
Nasci no sítio Belém
Lá nasci e me criei
E desde novo eu jurei
De num casar com ninguém
Por arte num sei de quem
Com Maria me encrontei
Quebrei tudo que jurei
Passei dois mês namorano
Passei três me ajeitano
Com quatro mês me casei
Me casei com muita fé
Mas pro pintura do diacho
Lá perto morava um macho
Inludidô de muié
Um tal de Joca Romeu
E esse um dia apareceu
No rancho que nós vivia
Com um jeitão muito estranho
Um oiá desse tamanho
Reparando pra Maria
Depois de um mês de casado
Eu notei que tinha um sócio
Ela inventou um negócio
De nós drumir apartado
Inventava um bucho inchado
Dô de cabeça e de ouvido
Um tal de corpo doído
Umas fireira no pé…
Essas manha de muié
Que quer dexá o marido
Eu só vivia dizeno:
Talvez nunca me acostume
Eu morrendo de ciúme
E os amô dela cresceno
Sempre aquelas coisa, eu veno
Ela toda diferente
Ele metido a valente
E pra terminar a novela
Tratou de vim buscá ela
Na outra noite da frente
Inda vi eles sainno
Ele perguntou por mim
Ela arrespondeu assim:
O bestaião tá drumino
Eu aquelas coisa ouvino
Fui me levantei também
Ela dizia: Ele vem
Mas num vá temê acocho
Que aquele meu véi é frôxo
Nunca brigou com ninguém
Isso era de madrugada
Quaje amanheceno o dia
Quando eu oiei, eles ia
Já descambando a chapada
Larguei os pés na estrada
Pra ver se ela me atendia
Gritava: Vem cá, Maria
Vorta pronde tu morava!
Mas quato mais eu gritava
Mais a danada corria
Mas sabe o que aconteceu
Com a vida de nós dois?
Com uns dez anos depois
Maria me apareceu
Deixou o Joca Romeu
Voltou toda diferente
Com oito fios na frente
Uns com tosse, outros com gogo
E eu tenho comido é fogo
Pra sustentar tanta gente
*Lançado em 2002 por Geraldo Amâncio e Wanderley Pereira
Após os poemas contamos algumas piadas, rimos muito, mas a coordenadora colocou ordem na casa. Fizemos uma rápida reprogramação da agenda e deixamos a leitura de As Preciosos Ridículas para o próximo encontro.
Lemos um conto de humor, O homem que nem é dental, de João Gratuliano (estranho falar de si mesmo na terceira pessoa) e depois lemos Ele? de Guy de Maupassant. Júnior fez ótimas pontuações sobre a doença que afligiu Guy.
Salete comentou sobre a sessão de leitura do livro de Anita e comentou que pelo prefácio havia descoberto um João Gratuliano menos irônico e mais romântico. E me desafiou a mostrar esse lado. Então eu aproveitei que a audiência estava pequena. Everaldo e Saló já tinham vazado, e li um do meu vasto repertório de três ou quatro poemas meu.
Assim nos despedimos no clima habitual de alegria entre os leitores e escritores de boa vontade. Fomos em paz e que Clarice nos acompanhe.