Cacilda Becker, fúria santa ou santa fúria

FÚRIA SANTA OU A SANTA FÚRIA DE CACILDA BECKER*

Lourdes Rodrigues

Fúria Santa, a biografia de Cacilda Becker, escrita por Luís Andrade do Prado, estava numa pilha de livros do meu marido, à espera de oportunidade para ser lida, quando eu a encontrei. Retirei-a da fila humilhante e disse: esta aqui eu vou ler primeiro! Nem perguntei se poderia, talvez por receio de ouvir um não, tão encantada que eu ficara com a possibilidade de ler sobre a mulher que se tornara mito na dramaturgia brasileira. A capa, uma bela imagem da atriz quando representou Antígona, de Jean Anouilh, personagem criada por Sófocles que sempre me emocionou pela força, determinação, coragem e beleza. Não foi à toa a escolha daquela capa, com certeza.

À medida que eu ia lendo, me dava conta da qualidade da escrita, tão rara quando se trata de biografia. Muitas vezes o biógrafo, na ânsia de escarafunchar a vida da sua vítima, se descompromete por completo com o estilo, a forma ou mesmo com o português. São livros abandonados, mesmo pelo praticante de voyeurismo de celebridades, porque após o consumo, nada sobra.

Cacilda Becker – fúria santa é uma biografia diferente. Guarda a força e a seriedade documental, pelo registro de uma parte importante da história da arte cênica no país, além de sua relevante qualidade literária. Ela veio para servir de referência à trajetória do teatro brasileiro, contextualizado por cenários socioeconômicos e políticos. E tudo contado com muita mestria, usando artifícios próprios de um ficcionista maduro. Desde o prólogo se percebe isso. Ao usar várias visões para contar o momento em que Cacilda Becker sente-se mal e é socorrida no teatro, entre o primeiro e o segundo ato da peça Esperando Godot, de Samuel Beckett, Luís Carlos Prado deu uma jogada de mestre, demonstrando que o seu objetivo não era registrar o fato como ele ocorreu, na triste e pretensa tarefa do historiador que se engana pensando existir uma verdade a ser contada. Tem-se a impressão de que ele quis mostrar como cada um, do lugar em que se encontrava, viu aquele momento. Lugar aqui entendido como espaço físico (no teatro) e emocional (na relação com a atriz), num resgate possível das emoções daquele dia. As lembranças do filho, Cacá, quase quarenta anos depois (data do depoimento), ainda revelam sentimento de culpa por ter deixado a mãe almoçar sozinha naquele dia, para ir se encontrar com a namorada. E ao ouvir a mãe reclamar de dor de cabeça no teatro, veio-lhe imediato à mente: Sua mãe vai morrer, sua mãe vai morrer. A estudante que estava no teatro para assistir a peça como tarefa da escola (tratava-se de uma matinê só para estudantes), que jamais havia  visto Cacilda Becker antes e nem mais a veria depois, é a única que diz ter percebido a atriz cambalear ainda no primeiro ato. Da longa espera para segundo ato até o aviso de que ela havia passado mal e passarem com ela para uma ambulância, ela  diz: Não deu para ver bem, foi muito rápido e estávamos bagunçando. Mas naquele momento ficou todo mundo quieto e assustado. Marília Pera, jovem atriz, na época, viu tudo com o seu olhar dramático e faz relato emocionante de Cacilda Becker sendo carregada nos braços do palco para a platéia, ainda vestida com o terninho de Estragon (o seu personagem na peça), o braço caído, a mão, os dedos esbarrando pelas cadeiras. Era como se ela estivesse tentando se segurar ou se despedir daquele lugar. O relato mais detalhado fica por conta de Líbero Ripoli Filho, ator da peça, que conta ter levado a atriz nos braços para a ambulância e no caminho, percebendo que ela estava com dificuldade para respirar, atribui ao nariz de palhaço que a atriz ainda estava usando, e pede para ela o retirar, e ao entregá-lo ela diz: Guarda para mim, como se fosse voltar logo.

São sete depoimentos, inclusive, o do ex-marido e companheiro de teatro Walmor Chagas que encurta tanto a sua contação que parece ainda não acreditar no que aconteceu naquele dia. Cada um contou a sua versão, do jeito que ela está na sua lembrança após todas essas décadas. O autor usou nas quase seiscentas páginas, sempre que possível, os depoimentos das pessoas entrevistadas para contar a história da atriz e do teatro, pessoas que conviveram com ela, familiares, vizinhos, conterrâneos, amores, colegas, diretores, dramaturgos.

No último capítulo, Godot Chegou, Luís André de Prado começa com o trecho final do primeiro ato da peça que finaliza com a frase de Estragon/Cacilda: Então, vamos? (Esta frase, inclusive,  abre o capítulo dos sete depoimentos) e Vladimir/Walmor responde: Vamos, para dar continuidade à cena do primeiro capítulo quando Cacilda é levada de ambulância para o hospital, retornando ao momento trágico da atriz, usando da forma circular para contar a história.

Nos dezoito capítulos anteriores ele volta para o começo, para as origens dos Becker e Yaconis, para o caminho percorrido pela atriz desde a menina pobre, apaixonada pela dança – quem sabe sonhando um dia ser tão grande quanto Isadora Duncan, seu paradigma criador somente conhecido muitos anos depois –  e encher os palcos com a sua dança criativa,  até a grande atriz de teatro na qual ela se tornou, um mito da dramaturgia brasileira. A pesquisa do autor o levou ao tataravô de Cacilda Becker, por volta de 1780, na Alemanha, ao conde Von Becker, a linhagem nobre de ascendência da atriz pelo lado materno, cujo neto, Carlos Henrique, quase um século depois, não mais conde e sim ferreiro, o que denota o empobrecimento da família, migrou para o Brasil com a esperança de prosperidade. A ascendência paterna o autor foi buscar na Calábria e Grécia, origem dos Yaconis que migraram para o nosso país, possivelmente na mesma época dos Becker. Questões ligadas à colonização alemã e italiana e ao cenário sociopolítico e econômico dos imigrantes são trazidas com muita competência.

A arte na vida de Cacilda Becker, o autor foi garimpar na fala da atriz: Desde cedo mamãe se incumbiu de despertar em mim o gosto pela arte, porque ela era uma mulher irrealizada. A mãe costumava ligar o gramofone movido a manivela e colocar a filha em cima de uma mesa, onde lhe ensinava alguns gestos: Tenho memória de dançar com o véu de noiva de minha mãe, em cima de uma mesa; Eu era – imagine – tão pequena e a mamãe me ensinava a compor os gestos. Incentivada ou não pela mãe, a verdade é que a menina já levava jeito desde tenra idade. Durante muitos anos, ela fez da dança o seu objetivo, buscando apoio e técnicas, porém sem jamais entrar em aulas formais de balé, usando, essencialmente, a criatividade para se expressar.

O autor recompôs a longa caminhada de Cacilda Becker até chegar ao teatro, descrevendo suas tentativas de fazer carreira como bailarina. Há dois momentos grandiosos desse período, registrados pela imprensa, anunciando a grande estrela que ela viria a ser: a sua primeira apresentação, em carreira solo, no palco; e a última récita, como bailarina, no final de 1939. Da primeira, A Tribuna registra, em out/38:

Em Santos, uma jovem bailarina vae apparecer em público, officialmente, pela primeira vez. Cacilda Becker é uma linda moça. A dansa não é para Ella prenda gentil de menina rica. Dansa porque nasceu dansarina, porque tem no jovem coração occultas melodias e rythmos musicaes no corpo airoso. (…) Dansando para os seus conterrâneos, Cacilda Becker vae, é quase certo, dar-lhes o praser raro de assistir ao desabrochar de uma flor preciosa, ao fulgir primeiro de uma nova estrella.”

Da segunda, O Diário comenta, em nov/ 1939:

“Cacilda vive o que dansa. Suas mãos ganham formas subtilíssimas e seu corpo sabe descrever, em meneios e movimentos agitados, a angustia de um ser que soffre ou o requebro de uma alma em festa. No Bailado das Sombras Felizes, envolta em crepe cinza, revoluteando pelo palco com extrema elegância; na Valsa Triste, de Sybellius,parecendo uma mãe em prece deante do berço do filho enfermo;na Oração a Deus Oriental, em que apparece como provocante odalisca e, finalmente, no Samba Estilizado, que teve nella uma baiana cheinha de balangandãs.”

A atriz estava ali, no palco, desde sempre.

O autor seguindo as pegadas da atriz nos anos quarenta vai localizar a entrada de Cacilda Becker no teatro, mais precisamente no TEB – Teatro do Estudante do Brasil, pelas mãos do seu amigo e incentivador Miroel Silveira que, segundo o biógrafo, já estava certo de que a carreira de bailarina da amiga não tinha futuro. Ele se refere à dificuldade enfrentada por uma bailarina, pouco convencional, para se manter com tal profissão. Cacilda Becker era muito pobre, sabia muito bem o que era passar fome, além de ter de garantir a própria sobrevivência, cabia-lhe colaborar com a renda da família. Não, não, ela não podia se dar ao luxo de uma profissão assim. A frase de Cacilda Becker, que o biógrafo foi buscar, entretanto, demonstra o quanto ela tinha consciência de sua capacidade artística: Eu deveria abdicar e não me desperdiçar como artista; teria que trocar de arte. Até aquele momento, ela jamais havia pisado num teatro fosse para assistir uma tragédia, ou uma comédia, e ela ficou muito surpresa quando Miroel lhe disse ser o teatro o único meio pelo qual ela poderia assumir totalmente a sua vida artística.

O livro é riquíssimo em detalhes sobre a vida de Cacilda Becker no teatro, desde 1941, até a sua última cena, em Esperando Godot. Não foi um caminho fácil, ela parecia ter todas as características que um ator de teatro não poderia ter: respiração curta, voz metálica, dicção acentuada, baixo peso, lutando arduamente para se manter nos 47 kilos, numa época em que as mulheres cheiinhas eram as preferidas. No entanto, a forma como investia nos personagens, o jeito que os representava, eliminava todas as suas fraquezas, subjugando totalmente o personagem à sua interpretação. Décio de Almeida Prado, um dos mais conceituados críticos daquela época, escreve no Estadão que Cacilda Becker, na peça Entre Quatro Paredes, de Jean Paul Sartre, não tinha a voz nem o físico ideal para interpretar o papel de Inês, a lésbica, mas que havia superado com o espírito tais dificuldades, forçando vitoriosamente os limites da própria personalidade. Numa entrevista Cacilda Becker disse:

“Ate que ponto eu penetro dentro de uma personagem e ela dentro de mim, não é fácil dizer. Em poucos momentos eu e a personagem nos tornamos uma coisa só – artisticamente – e daí uma permanente insatisfação. Persigo essa fusão com a personagem, quase uma osmose, e quando ela não vem sinto-me frustrada. (…) Sou um instrumento da minha própria arte, sou o meu próprio violino.

Assim a reconheceu Carlos Drummond de Andrade em seu poema quando de sua morte: A morte emendou a gramática./ Morreram Cacilda Becker/Não era uma só. Era tantas. E o poeta enumera: Professorinha pobre de Pirassununga/Cleópatra e Antígona/Maria Stuart/Mary Tyrone… E o poema segue enumerando tantas Cacildas…

Fúria Santa é um livro para ser lido e relido por todos aqueles que amam o teatro e querem saber sobre ele na década de quarenta, cinqüenta e até quase os anos setenta. A obra recompõe as dificuldades que os atores e produtores vivenciavam nos palcos do Rio de Janeiro, celeiro do teatro brasileiro, ali ele começou e desabrochou. Todas as peças que foram montadas, o empenho dos atores, as respectivas críticas estão cuidadosamente detalhadas. Os movimentos teatrais TEB, GUT, TBC. As inovações, os experimentos, a modernização do teatro, a profissionalização dos atores, o controle pelos italianos, Zampari, Adolfo Celi, o surgimento da figura de diretor, o polonês Ziembinski, os diversos grupos que foram se formando, as paixões, os ciúmes, as peças montadas para arrecadar recursos, as peças idealizadas, enfim, toda a história do teatro brasileiro desse período contou com a participação de Cacilda Becker, de alguma forma. Mesmo tendo em conta uma geração de titãs como Franco Zapari, Flávio Rangel, Ziembinski, Adolfo Celi, Alfredo Mesquita, Paschoal Carlos Magno, Sérgio Cardoso, Bibi Ferreira, Décio de Almeida Prado, Paulo Autran, Nydia Lícia, Nelson Rodrigues, entre outros que contribuíram para ampliar, renovar e modernizar a arte teatral, Cacilda Becker consegue não só se destacar, mas tornar-se um mito. Ela começou a sua carreira numa época em que a polícia ainda cadastrava juntas as atrizes e as prostitutas. Moças de família, jovens talentosas não buscavam o teatro com receio da fama condenável que a profissão lhes daria. E quando morreu, dona do seu próprio teatro há mais de uma década, o Teatro Cacilda Becker, que lhe deu muitas alegrias e não pouco sofrimento para mantê-lo, já havia assegurado, para sempre, o seu lugar na história do teatro.

Foram muitas as batalhas da atriz dentro e fora do palco. Acusada de colonizada por encenar peças estrangeiras numa época em que a fúria nacionalista campeava no mundo artístico, movimento que se propunha a revolucionar o mundo através do palco, ela sofreu duras críticas. Quando ocupou o cargo de presidente do CET – Comissão Estadual de Teatro, órgão da Secretaria de Cultura, no dizer de Sábato Magaldi foi extraordinária em sua atuação, tinha prestígio junto às autoridades, mas teve de enfrentar um grupo de forte oposição o que a deixou muito abalada, numa fase em que ela já enfrentava o luto da sua separação de Walmor Chagas, marido, parceiro, amigo de todas as horas. Não havia sido a primeira separação, mas a dessa vez parecia definitiva. Ela estava disposta a fazer qualquer acordo para tê-lo de volta e de alguma forma ela o conseguiu, porque estavam juntos em sua última peça, naquela da qual sairia dos braços dele para nunca mais voltar: Estragon: Vamos?, Vladimir: Vamos.

Luís André do Prado, o autor, até então desconhecido para mim, é um escritor, pesquisador, jornalista que já trabalhou em vários jornais e revistas de renome. Para a biografia de Cacilda Becker, ele levou sete (7) anos entre pesquisa e elaboração. Em 2011 ele lançou outro livro, agora com o historiador João Braga e sobre a História da Moda no Brasil.

Jaboatão dos Guararapes, 20 de janeiro de 2013

* Publicado no blog de Lourdes Rodrigues: marilurde.wordpress.com

O adeus a Carlos Fuentes

Carlos Fuentes, escritor mexicano, morreu na última terça-feira – 15 de maio – de uma hemorragia digestiva, em um hospital da Cidade do México. Ele estava com 83 anos de idade, em plena atividade política e literária. Escrevia um novo livro.

Sobre a morte de Carlos Fuentes, seu amigo e companheiro do fazer literário Mario Vargas Llosa disse:”Fomos amigos todo esse tempo sem que nada, nunca, empobrecesse essa amizade. Deixa uma obra enorme que é um testemunho eloquente de todos os grandes problemas políticos e realidades culturais de nosso tempo”,

Na Oficina tivemos a oportunidade de ler uma obra desse autor: Aura, considerada a melhor prosa lírica dele. O livro não só nos encantou pelo surreal da história contada, como nos permitiu boas discussões sobre a narração na segunda pessoa e o processo de duplicação utilizados por ele. O interesse de todos para desvendamento do sujeito da fala, de quem era aquela voz que se escondia atrás daquele tu, levando a inúmeras possibilidades interpretativas, esquentou as tardes das quartas-feiras durante toda a leitura do livro e culminou na elaboração de um texto, que já foi publicado nesse blog em julho de 2011, mas estamos trazendo de volta, hoje, para a nossa homenagem particular ao grande escritor mexicano Carlos Fuentes.

AURA, DUPLO OU SEGUNDA PESSOA?

Aura, romance de Carlos Fuentes, escritor mexicano, publicado em1962. A tradução usada nesta resenha é de Olga Savary, publicação L&PM, Porto Alegre, 2001.

O ESCRITOR – Carlos Fuentes nasceu em 1928, no Panamá, de pais mexicanos. Filho de diplomata, na infância morou com a família nos Estados Unidos, Chile, Equador, Uruguai, Argentina e Brasil. Apesar do rigor de sua mãe que não permitia que se falasse outra língua em casa além do espanhol, a educação de Fuentes em Washington tornou-o bilíngüe ainda criança. Do pai, ele herdou a paixão pelos livros, verdadeira compulsividade pelas leituras, pelo cinema, artes em geral, e o interesse pelo conhecimento aprofundado da história do México, que ele passou a ver como uma história de amargas derrotas se comparada com a história dos EUA. A educação privilegiada imprimiu um cosmopolitismo precoce à sua personalidade, tanto que, aos 16 anos, ao retornar ao México para iniciar os estudos universitários, assumiu postura de rebelião, decidindo tornar-se escritor e abandonar os estudos. Confrontado com a necessidade da formalização acadêmica exigida pelo seu pai e aconselhada pelo seu amigo escritor Alfonso Reys com o argumento de que o México era un país muy formal…. Si tú no tienes .un título de abogado, si no eres el licenciado Fuentes, entonces es como una taza sin asa. No saben por donde agarrarte, tienes que tener un título, luego haz lo que quiera…  Fuentes tornou-se advogado e depois cursou Economia em Geneva, na Suiça, onde aprendeu a dominar o francês, língua inicialmente conhecida através das leituras de seu escritor preferido: Balzac. A rebeldia, todavia, não foi arrefecida, tornando-se marxista e filiando-se ao partido comunista no período universitário. De 1950 a 1952 foi membro da delegação mexicana da Organização Internacional do Trabalho, em Genebra, voltando ao México em 1954 quando se tornou assistente do Ministro de Relações Exteriores e depois Chefe do Departamento de Relações Culturais. Em 1955 fundou junto com Octavio Paz e Emmanuel Carballo, a Revista Mexicana de Literatura. Ainda trabalhou como assistente de diretor da Universidade Autônoma do México, abandonando tudo em 1959 para se dedicar à carreira de escritor.. Nos anos sessenta ele viveu na Europa, entretanto, o período em que esteve no México, marcou definitivamente a sua obra e a sua ação política expressando sentimento de compromisso com o país: Onde quer que eu fosse, o espanhol seria a língua da minha escrita e a América Latina a cultura da minha língua. Foi embaixador na França (1972/76) e chefe da Delegação na reunião do grupo dos 19 países em desenvolvimento na Conferência sobre Cooperação Econômica Internacional. Na vida acadêmica reúne títulos de catedrático das Universidades de Harvard (USA) e Cambridge (Inglaterra).

AS OBRAS – O escritor Carlos Fuentes marcou a sua vida literária pela autoria de extensa obra narrativa composta por contos, romances, ensaios, artigos, roteiros cinematográficos, além das reflexões sobre o fazer literário e a compreensão das civilizações pré-colombianas. A carreira literária foi iniciada antes mesmo do término dos estudos universitários com a publicação do livro de contos Los días enmascarados (1954). A influência de Balzac e de Cervantes em sua obra é admitida pelo próprio autor. Balzac, ele divide em duas fases, confessando-se influenciado pela fase mais realista, a que retrata os costumes, a sociedade, o cotidiano, composta pelas obras organizadas sob o título de Comédia Humana, chamada também de Waterloo ou napoleônica. De Cervantes, ele se diz herdeiro dos procedimentos literários presentesem Dom Quixote.

O sucesso das suas primeiras obras, entre elas Aura e A morte de Artemio projetou-o como uma das principais figuras literárias surgidas do boom latino-americano. Engajado politicamente chegou a afirmar que o escritor não pode ser alheio à luta pela transformação política que, em última instância, pressupõe também a transformação cultural. Carlos Fuentes organizou a sua obra literária segundo um esquema intitulado  La edad del tiempo. A idéia de rotular e encontrar algo que concatenasse toda a sua obra, segundo ele, veio de Balzac que reuniu na Comédia humana mais de 90 romances e contos que retratam a realidade da vida burguesa na França do século XIX. Como a temática do tempo sempre havia sido o eixo da sua obra ele denominou o seu esquema geral de La edade del Tiempo, desdobrando-o conforme  exposto a seguir:

                I.El mal del tiempo: Aura (1962), Cumpleaños (1969) e Una familia lejana (1980), Constancia y otras novelas para Vírgenes (1990), Instinto de Inez (2001), La hueste inquieta (em processo).

II.Tiempo de Fundaciones: Terra Nostra (1975), El naranjo o los círculos del tiempo (1992)

III.El tiempo Romántico: La Campaña (1990), La novia muerta (en proceso ) y El baile del Centenario (en proceso)

IV.El tiempo revolucionario: Gringo Viejo (1985) e Emiliano en Chimaneca (en proceso)

V.La Región más Transparente (1958)

VI.  La Muerte de Artemio Cruz (1962)

VII.  Los Años con Laura Díaz (1999)

VIII.  Dos Educaciones:  Las Buenas Conciencias (1959) e Zona Sagrada (1967)

IX. Los Días Enmascarados: Los Días Enmascarados (1954), Cantar de Ciegos  (1964), Agua Quemada (1981) e La frontera de cristal (1995)

X.El tiempo político: La Cabeza de la Hidra (1978),  La  silla del águila (2003), Los 68 (2005), El caminos de Texas (en proceso)

XI. Cambio de Piel (1967)

XII. Cristóbal Nonato (1987)

XIII.  Crónicas de nuestro tiempo: Diana o la cazadora solitaria (1994),  Aquiles, o el guerrillero y el asesino  (en proceso), Prometeo, o el precio de la libertad (en proceso).

XIV.  Ensayos en el tiempo: La nueva novela hispanoamericana (1969),Casa con dos puertas (1970), Tiempo mexicano (1995), Valente mundo nuevo  (1990), El espejo enterrado (1992), Geografia de la novela  (1993), Retratos en el tiempo (con Carlos Lemos), Los cinco soles de México (2000), En esto creo (2002).

XV.  Obras de teatro: Todos los gatos son pardos (1970), El tuerto es rey (1970), Los reinos originarios (1971), Orquidea a la luz de la luna (1982), Ceremonias del alba (1990). Guiones: Las dos Elenas (1964), El gallo  de  oro  (em colaboracão  com Gabriel Garcia Márquez ey Roberto Gabaldón) (1964), Un alma pura (baseado num conto de Cantar de ciegos) (1964), Los caimanes (em colaboracão con Juan ibáñez) (1965), Pedro Páramo (en colobaración com Manuel Barbachano Ponce  e Carlos Velo) (1970), Las  cautivas (1971), ¿No oyes ladrar los perros? (1974). Guión documental: El espejo enterrado (sobre o descobrimento e independência da América Latina) (1971).

Entre os títulos mais importantes da sua obra literária destacam-se, além dos já mencionados, La región más transparente” (1959), “Zona sagrada” (1967), “Cambio de piel” (1967), Terra nostra (1975), Cristóbal Nonato (1987), Los años con Laura Díaz, Agua quemada (1981); Gringo viejo (1985) e mais recente La silla del águila. E, ainda, peças teatrais de grande originalidade tais como  El tuerto es rey”, 1971, e “Orquídeas a la luz de la luna”, 1982.

ANÁLISE DE AURA –  Aura foi publicada em 1962, juntamente com La muerte de Artemio Cruz, e é considerada por Bella Josef ,que escreveu Carlos Fuentes: História e Identidade, como a melhor prosa lírica do autor. E o próprio autor mexicano diversas vezes manifestou seu especial carinho por essa novela.

Importante análise de Aura é encontrada na dissertação de mestrado de Camila Chaves Cardoso intitulada As imagens duplas e a narração em segunda pessoa em Aura.[1] Nesta resenha se tentará extrair resumo dos principais aspectos ali enfocados, especialmente no que se referem à intertextualidade, às possibilidades de leitura, ao duplo, ao narrador na segunda pessoa e ao papel do leitor.

A inserção de Aura entre as três primeiras narrativas do ciclo El mal del tiempo, as outras duas são Cumpleãnos (1967) e Uma família lejana  (1980) foi do próprio autor, e elas guardam em comum, além da questão devastadora do tempo, a estrutura quixotesca, vez que os fatos ali representados, a história ali contada, são menos relevante no que concerne à transfiguração da realidade, e mais privilegiada no seu complexo e intricado jogo ficcional que dispensam o conhecimento dos fatos históricos e sociais, buscando na própria organização da narrativa as respostas para seus muitos mistérios; nesse sentido, seriam ficções que se confessam ficções.

Camila Cardoso refere-se a uma análise dos romances de Fuentes, realizada por Carmem Perilli, à luz das tradições, a napoleônica e a quixotesca, que ressalta serem as duas tradições apoiadas na importância da representação, embora obedeçam a diferentes concepções das relações entre a linguagem e a realidade. Enquanto na primeira fazem parte tanto os romances do realismo social como as novelas psicológicas; no segundo o romance perde a estrutura tradicional –princípio, meio e fim – e os personagens é que organizam o mundo e dão sentido às coisas. A tradição quixotesca, fundada na Espanha por Cervantes ao escrever Dom Quixote, revolucionou os modos de ler, diz ela, fundando o romance moderno, assim como James Joyce viria mais tarde mudar o modo de escrita com a criação de Ulisses.

No que se refere às fontes de inspiração do autor para a realização de Aura,  Camila Cardoso traz algumas contribuições, entre elas, as apontadas pelo próprio Carlos Fuentes no ensaio intitulado Como escrevi um dos meus livros, apresentando fontes de ordem pessoal e de cunho literário. No campo pessoal ele reporta-se a um reencontro com uma antiga namorada e a uma ópera com a cantora lírica Maria Callas, diferentes situações que o fizeram refletir sobre o efeito devastador do tempo. No primeiro caso, devido ao impacto sofrido com a observação das mudanças físicas e de personalidade dela, e dele, porque também se reconhecera mudado após todos os anos que não se viram. E no segundo, ao assistir uma ópera com Callas em que ela torna idênticas, num só personagem, condições opostas como a juventude e a velhice, a morte e a vida, ficou completamente extasiado a refletir sobre o que vira. Sob o ponto de vista literário, muitos foram os pais poéticos apresentados por ele. Durante a escrita de Aura tivera oportunidade de conviver com  Luiz Buñuel de quem recebeu duas narrativas japonesas dos séculos XVII e XVIII nas quais casais por longo tempo separados, a despeito da velhice ou da morte reencontram-se, tamanha a força do desejo que os move. Daí o arremate que ele deu ao falar de Aura:  es una novela sobre la vida de la muerte. …Es mi novela emblemática del tiempo y del deseo; no sólo de la posibilidad de convocar el deseo, obtener el objeto del deseo y descubrir que no hay deseo inocente. Não foi por acaso que ele fez a escolha da peculiar voz narrativa, a segunda pessoa do singular, o tu que estrutura o desejo.Além de Buñuel, outras fontes bem específicas, tais como Henry James em Os papéis de Aspern (1909), Charles Dickens em  Grandes Esperanças (1861) e Alexandre Pushkin. em A Dama de Espadas  (1834). Os três romancistas usaram nas obras citadas triângulo semelhante ao que ele veio a criar depois, representados por uma senhora de idade avançada, uma bela moça e um jovem rapaz, sendo que a velha senhora em todos elas é um tipo de feiticeira, e segundo o autor, de alguma forma originadas na feiticeira medieval do francês Jules Michelet, único texto não ficcional que dialoga com .Aura. Tão escancarada assim a influência que na epigrafe contém citação daquele autor: O homem caça e luta. A mulher intriga e sonha; é a mãe da fantasia, dos deuses. Possui a segunda visão, as asas que lhe permitem voar para o infinito do desejo e da imaginação… Os deuses são como os homens: nascem e morrem sobre o peito de uma mulher… Outros empréstimos feitos à obra de Jules Michelet foram alguns nomes de personagens: Llorente, autor da Inquisiton dÉspagne, relevante fonte documental da narrativa de Jules Michelet: nome do general marido de Consuelo, em Aura; Saga, antigo nome dado às curandeiras: a coelha que vivia na cama de Consuelo era chamada por ela de Saga; Aura, brisa que acompanha Satã ou que penetra o corpo das mulheres possuídas pelo demônio: a jovem que representará Consuelo quando jovem recebeu esse nome; Felipe, nome proferido durante o sabá, missa negra das feiticeiras; o historiador contratado para fazer as memórias do general; e Consuelo, referência à família de plantas e ervas usadas pelas feiticeiras para os mais diversos fins ou a um papel específico de consolar da mulher no sociedade medieval, ou alusão à mulher que ingenuamente teria acreditado ser possível reaproximar Deus e o Diabo: nome da velha que contratou o historiador. A cor verde nas cortinas do casarão, nos olhos e nas roupas de Aura pode guardar, ainda, alguma relação com a da cor do Príncipe do mundo, que Michelet informa também ser verde. Outra relação possível, a dos rins, única dieta no casarão, com antigo encantamento em que a dama buscava reacender o amor no coração de seu amante: “Sobre seus rins, a feiticeira instala uma base, um forninho, e faz cozer ali o bolo…” E mais outros, como o sacrifício do cabrito, que poderia remeter ao sacrifício de um bode no dia de São João; e a partenogênese que aludiria à capacidade das feiticeiras de conceber sem a participação masculina, e explicaria, segundo Camila Cardoso, a incrível semelhança entre Aura e Consuelo e, principalmente, o ritual realizado pelas viúvas, que traria seus falecidos maridos de volta. Tal ritual inclui colocar seus talheres à mesa, acariciar uma roupa do falecido, vestir-se de noiva, beber vinho e deitar-se, a sua espera, procedimentos a que Consuelo parece ter obedecido.

Todos esses diálogos com a obra de Jules Michelet, e outras intertextualidades com os romances citados de Henry James, Charles Dickens e Alexandre Pushkin, segundo a autora,  não retira de Aura a sua originalidade, característica muito particular, quixotesca, própria do realismo fantástico enquanto aquelas obras se organizam segundo convenções literárias tradicionais, do realismo objetivo, nos quais as palavras representam as coisas, em que realidade da ficção é a realidade do cotidiano. Características quase ausentes nos textos com os quais dialoga, dão à obra de Carlos Fuentes autenticidade, tais como a atmosfera obscura resultante da carga simbólica, das elipses, da escuridão, do entrecruzamento do sonho com a realidade, com a magia, o encantamento. A adoção da voz narrativa na segunda pessoa muito contribuiu para criar o clima ambíguo, a alternância entre passado e futuro, também, técnicas muito particulares encontradas em Aura que fazem dela uma obra particular, criativa.

A narração em segunda pessoa e o processo de duplicação para Camila Cardoso estimulam a pesquisa para desvendamento de quem é a voz que fala, quem se esconde atrás daquele tu, levando a inúmeras possibilidades interpretativas. São algumas interpretações apontadas por ela:

a) Santiago Rojas, em Modalidad Narrativa en  Aura: Realidad y enajenación(1980),  considera Aura uma bela história de amor, sublime e macabra, em que o historiador Felipe é um falso protagonista, Consuelo, uma bruxa que enfeitiça, a mente enlouquecida que, oculta e dissimulada atrás da voz narrativa em segunda pessoa, “se dirije a la consciencia o al subconsciente del joven traductor”,e é com essa força hipnótica que comanda suas ações. Aura e Felipe seriam criações imaginárias, fantoches manipulados por Consuelo, a primeira para perpetuar a ilusão da beleza e da juventude e o outro, o sonho de amor e paixão.

b) Eduardo Thomas Dublé, em Hechicerías del discurso narrativo latinoamericano: Aura de Carlos Fuentes (1998), e Maria Aparecida Silva, em El simbolismo erótico en Aura (2005), enveredam por questões histórico-sociais. Dublé relaciona a segunda pessoa da voz narrativa com processos de feitiçaria arquitetados por Consuelo, com os objetivos macabros dela. a bruxa. Para que o historiador se identifique com o general ela faz com que ele leia a correspondência e se identifique com o general até o nível da fusão de ambos. Esses fatos remetem, segundo ele, a ambigüidade da relação dos latino-americanos com o continente europeu, vez que os latinos americanos se defrontam com a necessidade de fundar a sua própria identidade ao mesmo tempo em que se identificam com o velho mundo, assim, Consuelo, a bruxa, simbolizaria, una consciencia en conflicto consigo misma... Em Silva, a vertente apontada é a do mágico religioso. Ela argumenta que muitos dos povos antigos usavam a segunda pessoa para referir-se às forças sagradas. Assim, Felipe era vítima do feitiço da  bruxa habilmente planejado.

Camila Cardoso, entretanto, diz que a maioria dos estudiosos da obra tem ponto de vista diferente, considerando que a narração na segunda pessoa da obra de Fuentes é uma forma de  o sujeito do enunciado se confundir com o sujeito da enunciação, ou seja, por trás do “tu” descortina-se o “eu” do próprio Felipe Montero. Para a mesma concepção, existem variações:

  • Charleen Merced, La percepción del tiempo y el espacio en Aura, diz que Aura está escrita en segunda persona,  lo que sugiere un estado de mente alterado del personaje principal, Felipe, pues, suponemos que se ve fuera del cuerpo.
  • Glória Durán, La bruja de Carlos Fuentes,, acredita que é possível explicar  o que ela chamou de truque estilístico de Aura, a partir  da teoria da reencarnação: o tu seria o próprio Felipe, que, sendo a reencarnação de Llorente, relata em um futuro “inevitável” fatos que já teriam lhe ocorrido. 
  • Emilio Bejel e Elizabethann Beaudin, em Aura de Carlos Fuentes: la liberación de los espacios simultâneos, trazem similar interpretação, mas a partir de uma reflexão mais ampla. Consideram que Carlos Fuentes adotou essa voz narrativa para subverter a tradição “realista” em literatura, violando tanto a relação pronominal eu-tu como as relações espaço-tempo, desfazendo a unidade do sujeito e a cronologia linear – ambos fundamentos do “efecto de realidad del signo aceptado proposto pelo “realismo burguês. Para eles, Felipe Montero,  numa espécie de auto-enfoque, é ao mesmo tempo personagem e narrador: Felipe habla a sí mismo sobre sí mismo, se convierte en sujeto de la enunciación y a la vez que es sujeto del enunciado.. O tu permitiria a simultaneidade de pessoas que se duplicam, Felipe é ele próprio e o general, o futuro inevitável de Felipe, como o passado já sabido do general e, por fim, o “eu”, emissor da mensagem.

Assim, a análise da segunda pessoa leva a duas linhas de enfoques na crítica de Aura:  no primeiro enfoque um tipo feitiço: o sujeito enunciativo seria a própria Consuelo e a novela seria, ela mesma, um ato de feitiçaria. Estão nessa linha de pensamento Santiago Rojas, Dublé e  Silva. No segundo enfoque, o sujeito enunciativo coincide com o protagonista da trama, com Felipe, e o romance é na realidade uma extensa auto-análise dele, um desdobramento de sua consciência. Destacam-se as pesquisas de Charleen Merced, Glória Durán e de Emilio Bejel e Elizabethann Beaudin.

Outra análise, no entanto, é possível, diz Camila Cardoso, em que o narrador não assume identidade, Consuelo ou Felipe, é o “eu” camuflado na segunda pessoa – nesse sentido  ele não deixaria de ser o “senhor” da trama: “manifestación textual del poder creador y profético del lenguaje narrativo”. A  narração em segunda pessoa funcionaria como uma espécie de desvelamento dos processos ficcionais da criação literária uma vez que a novela denunciaria sua própria construção textual.  Esse narrador revela-se enquanto organizador do relato, uma espécie de maestro que rege as mínimas ações que estão sendo construídas pelos personagens.

Além das três possibilidades apontadas para leitura de Aura, a autora chama a atenção para as flexões verbais na segunda pessoa que apontam, também, um outro sujeito, aquele para quem se escreve: o leitor. A primeira palavra, ou ordem, do narrador é “lees”, diz ela, uma frase que pode ser vista como uma ordem dirigida ao leitor que, assim,  assume desde o início da trama um papel de duplo do protagonista. Dessa maneira, o leitor de Aura desempenha um papel mais ativo que o de costume, ele parece poder viver, participar da aventura do outro, “estar na pele” do outro.  O personagem Felipe também passaria por um processo similar ao ler as histórias do general, parece transformar-se no próprio herói de sua leitura, como ele, apaixona-se por Aura que, também, duplica-seem Consuelo. A narração em segunda pessoa parece deflagrar um efeito em cadeia na obra: a duplicação.

As diversas possibilidades de leituras que Aura enseja só atestam a importância estética da obra, diz Camila Cardoso ao fechar o capítulo.

Para buscar um referencial teórico que explique como se organiza esses dois processos de duplicação, recorre-se ao artigo de Freud, O estranho, sobre a questão do duplo, que ele tomou como base o conto de um grande escritor fantástico do século XIX, E.T.A Hoffmann, O Homem de Areia. Freud enfoca o sentimento de “estranhamento” para compreender sua estrutura e suas causas. Ele tenta explorar a etimologia da palavra unheimlich, o estranho, o estrangeiro, chegando à seguinte definição: “categoria do assustador que remete ao que é conhecido de velho, e há muito familiar”. Assim, verifica-se relação estreita entre a sensação de estranhamento e a de familiaridade. Freud dirige a sua atenção para uma situação específica que causa estranhamento: as “dúvidas quanto a saber se um ser aparentemente animado está realmente vivo, ou do modo inverso, se um objeto sem vida não pode ser na verdade animado”. Esse tipo de estranhamento estava presente nas histórias fantásticas de Hoffmann, porque ele deixava o leitor sempre sem saber se uma determinada figura da história seria humana ou um autômato. Em “O homem de areia”, Freud diz que a atmosfera de estranheza do conto estaria mais relacionada com o medo de Natanael perder os olhos, medo que na clínica psicanalista remeteria à castração,  do que mesmo com a dúvida se Olímpia seria ou não dotada de anima, que seria um tipo de incerteza intelectual.  Entretanto, é do estranhamento causado pela dúvida de que se estaria realmente vivo que Freud passa a analisar o tema do duplo;

Assim, temos personagens que devem ser considerados idênticos porque aparecem semelhantes,  iguais. Essa relação é acentuada por processos mentais que saltam de um para o outro desses personagens -pelo que chamaríamos de telepatia -, de modo  que  um  possui conhecimento, sentimento e experiência em comum com o outro. Ou é marcada pelo fato de que o sujeito identifica-se com outra pessoa, de tal forma que fica em dúvida sobre quem é o seu eu (self), ou substitui seu  eu  (self) por um estranho. Em outras palavras, há o retorno constante a mesma coisa – a repetição  dos  mesmos  aspetos,  ou características, ou vicissitudes, dos mesmos  crimes,  ou  até  dos mesmos nomes, através das diversas gerações que se sucedem. (Freud, 1987, p. 252)

De volta a Aura, Camila Cardoso vê efeitos similares à sistemática do duplo de Hoffmann. Um deles, diz ela, refere-se à “incerteza intelectual”, por parte do leitor, que se pergunta se a personagem Aura é dotada de anima. Por outro lado, há um estranhamento, tanto no leitor como no protagonista, provocado pelos dois processos de duplicação. A primeira duplicação ocorre com as personagens femininas Consuelo e Aura que desde o início parecem partilhar os mesmos conhecimentos, comunicando-se sem palavras, e no final, ´sugerindo dividir o mesmo corpo ou ser o mesmo sujeito.O leitor, ao iniciar a leitura, identifica em separado as duas personagens, e no final, percebe a junção. No outro processo, na segunda acepção de Freud, ocorre o inverso, porque o “eu” de Felipe se identifica com o “eu” do general Llorente. No início ele parece hesitar acerca de sua identidade e no final parece substituí-la por um “eu” estranho, no caso o “eu” do general. Segundo Camila, há um sujeito que, de alguma maneira, é substituído por outro, graças a um lento processo de identificação. Nos dois processos de duplicação existem as semelhanças físicas como procedimento, e a estratégia marcada pelo uso do espelho, das fotos. O processo de duplicação em Aura/Consuelo parece obedecer a um movimento de dentro para fora, uma vez que Consuelo, desdobrando-se em Aura, aponta a seguir para a possibilidade de que a jovem retorne, pressupondo, desse modo, um novo desdobramento. Em Felipe/Llorente, o movimento de duplicação dá-se no sentido inverso, de fora para dentro: é o “eu” de Llorente que parece invadi-lo, provocando uma hesitação e um questionamento sobre quem é o seu “eu”; e apontando para uma possível substituição completa dele pelo “eu” do falecido general. Além disso, a dimensão da memória em Felipe traz consigo a sensação de familiaridade que, para Freud, sempre acompanha a sensação de estranhamento. Quando chegamos ao final da narrativa, tem-se apenas uma alusão ao retorno de Aura, assim como da substituição de Felipe por Llorente, o que levou Camila Cardoso dizer que Rosalba Campra, em seu artigo Fantástico y sintaxis narrativa, considera Aura inserida num conjunto de obras denominadas de Fantástico Atual, cuja principal característica é a não elucidação das indeterminações geradas ao longo da trama. O leitor termina a novela com as mesmas dúvidas que vão surgindo ao longo da narrativa: É sonho? Delírio? Realidade? Aura é Consuelo? Felipe é o general?

CONCLUSÃO – Em entrevista ao programa Roda Viva Carlos Fuentes diz que dar uma segunda oportunidade ao tempo é uma tarefa fundamental do romancista. E mais, que gosta dos desafios, dos saltos mortais, aliás, ele entende a literatura como um salto mortal sobre um vazio, para ver se chega no outro lado, mas com o risco de cair no precipício e se fazer em pedacinhos. Diz,  ainda, que o trabalho do escritor exige disciplina, que ele se acorda todos os dias às cinco da manhã, toma uma ducha fria, mesmo morando numa cidade com a temperatura fria como a de Londres, e após o café senta-se para trabalhar, normalmente, às seis horas, e escreve até o meio dia. Então ele sai para andar pelo Panteão de Breton, se diverte lendo as tumbas…

A nossa análise particular de Aura é de que nesta bela prosa poética, lírica, Carlos Fuentes cumpriu o papel que ele espera de um escritor: deu ao tempo uma segunda oportunidade, na representação simbólica do triângulo, que de fato é uma dupla, Felipe, Aura-Consuelo. Se adotada a tese da reencarnação, Felipe pôde voltar ao passado e ainda reacender o desejo arrebatador que sentia por Aura que, também, em uma segunda oportunidade, volta à juventude para viver momentos ardorosos com o seu amado, enquanto Consuelo revive através dela, Aura, o seu duplo, o amor paixão dedicado ao general que ela, com habilidade de “bruxa”, fusionou ao jovem historiador Felipe pela identificação assimilada nas escritas dele, e ele, LLorente, também teve a sua segunda chance ao reencarnar no jovem que ambicionava escrever um livro.

Outra leitura possível seria que Consuelo revive a sua história, escondida atrás de Felipe, usando um narrador na segunda pessoa do singular, a quem ela ordena faça isso e faça aquilo, faça aquilo outro, idéia retirada dos passeios que Carlos deu pelas tumbas do Panteão de Breton, além disso, como bom mexicano que ele sempre foi, da influência do seu conterrâneo Juan Rulfo.em Pedro Páramo.                                

                                                 Jaboatão dos Guararapes, 23 de março de 2009-

                                                        Lourdes Rodrigues


[1] Dissertação apresentada ao Instituto de Estudos da Linguagem, da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), para a obtenção do título  de Mestre em Teoria e História Literária. Área de concentração: Teoria e Crítica Literária.

A Nova Tradução de Ulysses, de James Joyce

A volta, em nova versão, de um monumento literário

O Estado de São Paulo

 Domingo, 28 de Abril de 2012 (www.estadao.com.br)

Antonio Gonçalves Filho

A nova tradução do romance Ulysses (1922), do irlandês James Joyce, que chega às livrarias no dia 14, consumiu dez anos de trabalho árduo do professor da Universidade Federal do Paraná, Caetano W. Galindo, curitibano de 39 anos que verteu para o português obras de outros autores importantes como Thomas Pynchon, Tom Stoppard e David Foster Wallace. É a terceira tradução brasileira do moderno épico de Joyce (1882-1941), passado num único dia, 16 de junho de 1904, em Dublin. A pioneira, de 1966, levou quase um ano para ser feita e foi assinada pelo filólogo Antonio Houaiss (1915-1999), permanecendo como a única disponível no mercado nacional até 2005. Nesse ano foi lançada a segunda tradução, de Bernardina da Silveira Pinheiro, que dedicou sete anos à tarefa (mais detalhes na página ao lado, em que estão reunidas as três versões brasileiras para o início do romance). Galindo fez a primeira versão de sua tradução antes de ler a de Bernardina Pinheiro. “E, no caso de Houaiss, percebi muito rápido que um processo de constante cotejo e revisão ia me deixar louco e travado”.

Primeiro tradutor da obra, Houaiss previu que seu trabalho teria desdobramentos. “Creio que o texto poderá ser melhorado por um futuro tradutor, porque Ulysses é dessas obras que fatalmente terão duas ou três traduções”, dizia, quando alguém criticava a sua. É mesmo difícil agradar a todos. Afinal, são 265 mil palavras reunidas em mais de 800 páginas escritas por um autor que, insatisfeito com os estilos literários de sua época, oferece em Ulysses pastiches de muitos deles. Não foi apenas um sarcástico ataque contra a literatura convencional que moveu Joyce. Seu objetivo, segundo o inglês Declan Kiberd, doutorado pela Universidade de Oxford e autor da introdução da nova edição nacional, era mostrar que “mesmo a mais refinada literatura não deixa de ser uma imitação paródica da experiência real da vida”. O romance não poupou nem mesmo a modernidade literária, provocando reações de vanguardistas como D.H. Lawrence e Virginia Woolf.

“Pode-se dizer que todo Ulysses, como releitura da Odisseia, é pastiche, mas é fundamental lembrar que o pastiche de Joyce nunca é simplesmente ridicularizador”, observa o tradutor. “Ele escrevia melhor quando estava rindo do estilo que empregava, fazendo com que a ‘paródia’ nunca fosse uma simples questão de negação”.

Antes de fazer uma elegia ou um pastiche do épico Odisseia, de Homero, com o qual estabelece uma relação analógica, Joyce abre sobretudo um caminho para o retorno à tradição oral, seu verdadeiro alvo, segundo Kiberd. Seu herói, Leopold Bloom, um pobre agente publicitário, seria o correspondente nada heroico do mítico Ulisses homerístico nessa história. Sua voluptuosa mulher, Molly Bloom, tomaria o papel de uma nada fiel Penélope. Já o jovem escritor Stephen Dedalus seria o correspondente moderno e laico do virtuoso Telêmaco, filho de Ulisses. Dedalus, o alter ego literário de Joyce, diz que Deus não passa de um grito no meio da rua e que a história é, no máximo, um terrível pesadelo. A atração quase incestuosa do andrógino Bloom por esse filho que não teve, representado por Dedalus, é expressa no penúltimo episódio de Ulysses, o preferido de Joyce – em que Leopold volta para casa acompanhado pelo jovem e os dois urinam no quintal, em meio a devaneios sobre os astros e a trajetória do xixi.

Molly, a mulher de Bloom, tem a “palavra final” no romance. E essa palavra é simplesmente um “sim”, analisado como uma resposta ao autoritário “eu quero” masculino por outro tradutor de Joyce, Sérgio Medeiros (leia na página ao lado). É de Molly o solilóquio do 18.º e último episódio de Ulysses. Nele, a técnica literária de Joyce conhecida como “stream of consciousness” (fluxo de consciência), introduzida no terceiro episódio – dedicado às reminiscências de Dedalus – é levada ao paroxismo. O leitor tenta acompanhar a corrente enlouquecida do monólogo interior de Molly, que suspeita da infidelidade do marido e sonha com possíveis novos parceiros (ela fantasia um encontro sexual com Dedalus, que conheceu quando criança), imaginando ainda um emprego melhor para o marido, capaz de garantir a ela roupas mais elegantes e um estilo de vida menos ordinário.

Uma história como essa, escrita entre 1914 e 1921 e inicialmente publicada em capítulos no jornal norte-americano The Little Review, estava mesmo destinada a provocar barulho. Acusado de obscenidade pela Sociedade para a Supressão do Vício, de Nova York, por causa de um episódio em que Leopold Bloom se masturba, o livro foi levado a julgamento, declarado obsceno e banido nos EUA, sendo apenas publicado em 1922, em Paris (e em 1934, na América). A edição francesa é considerada a oficial, embora com mais de 2 mil erros e ainda assim diferente daquela que o professor alemão de literatura Hans Walter Gabler apresentaria em 1984, supostamente baseada nos originais do autor – ela foi muito criticada como um patchwork de manuscritos, um tanto infiel a Joyce, por trocar nomes de personagens e desrespeitar a sintaxe do autor.

Certo é que Joyce não gostava muito de vírgulas e detestava hifens, como lembra o novo tradutor de Ulysses, Caetano Galindo, mas Gabler teria exagerado em sua edição crítica e sinóptica do romance. Essa recusa ao hífen, diz o brasileiro, “acaba gerando a criação de várias palavras aparentemente novas mas que são apenas uma representação gráfica de um composto conhecido ou mesmo uma junção de substantivo e adjetivo totalmente normal”. Galindo garante que não inventou palavras. “O que pode ser que eu tenha feito, assim como outros tradutores, foi forçar limites possíveis da língua portuguesa e da literatura brasileira, para criar novas combinações e novas fusões.” Assim, no terceiro episódio, o personagem Kevin Egan é descrito como alguém “senhamor” e “senterra”. No episódio 12, em que um narrador não nomeado tenta descrever o personagem “Cidadão”, o preconceituoso senhor sardento é chamado de “sardasmuitas”, “boquimensa” e “ventasgrandes”. Em tempo: o “Cidadão” é um antissemita a quem Bloom, descendente de judeus húngaros e convertido ao cristianismo (para casar com Molly), repreende num pub, lembrando que Cristo era da mesma etnia de seus antepassados.

Essa fixação de Joyce pelo aspecto físico dos personagens é estudada por Kiberd na introdução do livro. Ele alude particularmente à redução estereotípica que T.S. Eliot não conseguiu suportar no irlandês. Joyce suspeitava que a maioria das pessoas estaria mais para tipos do que para indivíduos. Isso não excluía seus contemporâneos companheiros de letras. “Houve um pouco de inveja entre os escritores experimentais e muita recusa ao lado irlandês-beberrão-tosco de Joyce, como se ele não fosse um membro daquela elite de que eles acreditavam fazer parte e, mais ainda, houve muita negação moral, pois Joyce era indecente, inadequado, grosso, e ainda insistia em misturar personagens e fatos reais no texto”, analisa Galindo.

A obsessão de Joyce em descrever detalhes físicos e escatológicos levou o irlandês a fazer de Ulysses, segundo o professor Declan Kiberd, o “épico do corpo”. Não foi outro irlandês, Oscar Wilde, o pioneiro a apresentar o “homem feminil” na literatura, anota Kiberd, mas Joyce, que, segundo ele, “mudou para sempre o modo como os escritores tratavam a sexualidade”.

Nem todos os leitores de Ulysses, escreve Kiberd, viram a androginia de Bloom pelo que era. Ela não seria sinônimo de bissexualidade (interpessoal), mas um fenômeno intrafísico, na medida em que, no caso de Leopold, a androginia representaria muito mais um estado da mente que do corpo. Buck Mulligan, o estudante de medicina que abre o livro, convidando Stephen Dedalus a subir ao altar de Deus (a torre onde Mulligan, no topo da escada, faz a barba), pensa o contrário. Desdenha de Bloom (por ciúmes), achando que ele teria uma atração homossexual pelo amigo Dedalus, quando este busca no garoto um camarada com o qual poderia estabelecer uma relação paternal, serena, impossível num casamento como o dele e Molly.

“Ela é a personagem feminina mais exuberante do século 20, construída a partir de um dos truques literários mais triunfantes da história do romance, quando ele decide compensar as 800 páginas androcêntricas do livro com um único episódio dedicado a Molly”, analisa Galindo. “Ele percebeu que a única maneira de fazer isso é com a total concentração e densidade que o monólogo direto poderia lhe dar.” Já Leopold, para o tradutor, “é simplesmente o personagem mais completo da literatura desde Hamlet, como disse Harold Bloom”. Para quem ainda considera Ulysses criptográfico, como o personagem de Shakespeare, uma última e boa notícia: a Companhia das Letras publica em breve um guia de leitura da obra-prima de Joyce.

(Texto encaminhado por César Garcia para postagem)

Um trabalho de dez anos

Caetano W. Galindo, terceiro tradutor de ‘Ulysses’ no Brasil, diz que teve que manter distância das traduções anteriores pois percebeu que um processo de constante revisão o iria deixar ‘louco e travado’

27 de abril de 2012 | 22h 00 – Estado de São Paulo – www.estadao.com.br

Antonio Gonçalves Filho

Lançado em 1922, em Paris, após ser acusado de obsceno e banido nos EUA, Ulysses, o épico moderno do irlandês James Joyce, ganha sua terceira tradução no Brasil, trabalho de dez anos do professor de literatura e tradutor Caetano W. Galindo. Evitando o cotejo com as traduções anteriores, do filólogo Antonio Houaiss (de 1966) e de Bernardina da Silveira Pinheiro (2005), Galindo diz que teve que manter distância delas porque percebeu muito rápido que um processo de constante revisão o iria deixar “louco e travado”. Sua tradução chega às livrarias pela Companhia das Letras no dia 14. A mesma editora vai lançar brevemente um guia de leitura do livro.

ENTREVISTA:

Caetano W. Galindo: ‘O que me levou a traduzir foi a necessidade de entender o livro’

E – Nas passagens mais experimentais de Ulysses, você diz que se deu o direito de inventar palavras. Não seria essa uma estratégia capaz de tornar o livro ainda mais caótico para leitores não familiarizados com a leitura de Joyce, considerando que você evitou notas explicativas?

C – Não lembro onde eu disse isso. Mas, veja bem. Inventar palavras não é uma opção, assim ex nihilo, e nem é uma coisa que o Joyce tenha feito, ao menos não no Ulysses. O que pode ser que eu tenha feito, assim como outros tradutores, é forçar os limites possíveis da língua portuguesa e da tradição literária brasileira para criar, a partir de possibilidades reconhecidas como tais pelos leitores, novas combinações e novas fusões, por exemplo. E, um, o livro não é nada caótico e, dois, o meu não terá ficado mais caótico!: trata-se de um livro com dificuldades, e a tradução terá dificuldades, trata-se de um livro que força o leitor nativo a ir a ao dicionário e a tradução fará o mesmo. Trata-se de um livro que, às vezes, força o leitor a compreender algo “novo” a partir dos recursos de formação da língua, e a tradução também.

E – Alguns escritores contemporâneos de Joyce, como D.H. Lawrence e Virginia Woolf, não aceitaram a linguagem inovadora do escritor. Ao que você atribui essa incompreensão de autores que foram igualmente renovadores da literatura de língua inglesa: a uma reação moral contra a ironia de Joyce e ao seu desmonte da tradição épica?

C – Houve um pouco de “inveja” entre os escritores “experimentais” britânicos que viram o sujeito lhes passar a perna num grau difícil de imaginar. Houve muita recusa ao lado irlandês-beberrão-tosco de Joyce, como se ele não fosse um membro daquela elite de que eles acreditavam fazer parte e, mais ainda, houve muita negação moral. Joyce era indecente, era inadequado, era grosso. E ele ainda insistia em misturar personagens e fatos reais no texto, dando a tudo um ar ainda mais “deselegante” na opinião da época e, claro, do nosso ponto de vista, muito mais moderno.

E – Na introdução do livro, Declan Kiberd define Ulysses como um épico do corpo com certa fixação na metempsicose. Após anos estudando e traduzindo o livro, como você o definiria?

C – São 10 anos!.. até eu me surpreendo. Como eu o definiria? O maior romance, a maior celebração do que é ser uma pessoa entre as pessoas.

E – A renovação literária de Ulysses liga-se a uma correspondência analógica com a linguagem musical, mais abstrata que a escrita. Como você lidou com a musicalidade das palavras na tradução?

C – Eu tenho formação de músico. E, mais do que isso, acho ainda que penso mais como músico do que como qualquer outra coisa. Essa “musicalidade” pra mim é sempre um elemento, e encontrar um autor que é tão obcecado por ela quanto Joyce é na verdade um prazer, uma oportunidade, uma chance de dar plena vazão a uma perversão particular minha. Como fazer isso? Respeitando as musicalidades específicas de cada idioma, sem violentar o inglês e o português, mas buscando sempre o efeito mais marcado, mais bonito, mais adequado… mesmo que isso por vezes te force a “criar” mais.

E – A imitação de antigos estilos literários faz de Ulysses um antecessor de paródias pós-modernas que zombam das boas construções literárias e das tramas bem construídas. Como você vê esse mecanismo de Joyce em relação a outros livros dele?

C – Pode-se dizer que todo o Ulysses, como releitura da Odisseia, é pastiche. Mas é fundamental lembrar que o pastiche de Joyce nunca é simplesmente ridicularizador. Ele, como já se disse, escrevia melhor quando estava rindo do estilo que empregava. Ele encarnava os seus alvos plenamente, fazendo com que a “paródia” nunca fosse uma simples questão de negação (como aliás talvez nunca seja mesmo). Ele fazia disso uma extensão da tarefa mais básica do romancista, incorporar vozes, tons, estilos, personalidades. O Ulysses é o apogeu desse processo. Em Um Retrato do Artista Quando Jovem, ele ainda não adotava a distância necessária para esse efeito, e em Finnegans Wake ele conseguiu atingir uma espécie de fusão final em que todos os efeitos e vozes se misturam em um todo inconfundível e, digamos, personalíssimo, exatamente como toda e qualquer voz pessoal, formada sempre de cacos de tudo que de “outro” se pode encontrar na vida.,

E – O começo de Ulysses é uma prova violenta para qualquer tradutor, revelando, de alguma maneira, como ele se aproxima de Joyce. Numa primeira leitura, você parece menos reverente que Antonio Houaiss ou Bernardina Pinheiro. O que o levou a traduzir Ulysses?

C – A reverência nunca seria uma postura produtiva. Nem para mim nem para os outros tradutores. Entender Joyce é entender isso. Ele não inspira reverência. Admiração, sim. Inveja, como já pôde gerar em outros escritores.. mas reverência implica um grau de solenidade que é acima de tudo anti-joyciano. O que me levou a traduzir foi a necessidade de entender o livro. Ele me intrigava, me seduzia, mas eu não achava que fosse capaz de entender dele tudo que queria ou podia entender numa mera leitura. Eu cobicei o livro. Quis que ele fosse meu.

E – Com relação às atitudes antibélicas e à aludida androginia de Leopold Bloom, destacadas por Declan, qual a sua posição a respeito? Ele diz que Joyce apresenta Bloom como o homem andrógino do futuro. Você concorda?

C – Bom.. o Joyce disse isso. Logo, difícil discordar. Sim, Joyce é antibélico. E o Ulysses. E Bloom declama todo um discurso antibelicista num momento em que, vale ressaltar, isso era tudo menos “chique” e “moderno”. E ele é definitivamente andrógino.

E – As traduções anteriores de Ulysses o ajudaram, de alguma forma, ou você preferiu manter distância delas?

C – Eu tive que manter distância. Primeiro, porque eu fiz a primeira versão da minha tradução antes de poder ler a da Bernardina. E, no caso do Houaiss, eu percebi muito rápido que um processo de constante cotejo e revisão ia me deixar louco e travado. Assim, decidi dar as costas e seguir contando apenas com o meu contato com Joyce.

E – Você é também tradutor de Pynchon. Como compara a sua ambição literária diante do legado de Joyce?

C – Ele é menos dedicado à reforma da “forma” romance. Mas a grande empresa joyciana, que era a busca de novas formas de representar com a maior profundidade e a maior abrangência a experiência humana no que ela tenha de mais vário e mais profundo, continua a dar frutos no mundo pynchoniano (como no mundo de David Foster Wallace, por exemplo). As soluções podem ser outras, podem estar em outros campos, outros procedimentos, mas eles são “irmãos” em algo mais central. Nesse aspecto humano, humanista profundo.

E – Gostaria que você definisse em poucas palavras como vê os personagens criados por Joyce, especialmente Leopold e Molly Bloom.

C – Molly Bloom é a personagem feminina mais exuberante do século 20, construída a partir de um dos truques literários mais triunfantes da história do romance. Quando ele decide compensar as 800 páginas androcêntricas do livro com um único episódio dedicado a ela, e percebe que a única maneira de fazer isso é com a total concentração e densidade que o monólogo direto podia lhe dar, ele fez o que de mais brilhante os gênios conseguem fazer: transformar um “problema”, uma “dificuldade”, num trunfo. Leopold Bloom é meu irmão. É teu irmão. Como disse Harold Bloom, ele é simplesmente o personagem mais completo da literatura desde Hamlet. E isso se dá inclusive por força bruta. Nós acompanhamos Bloom por horas a fio, com acesso a quase tudo que ele pensa, vê, lembra, diz ou sente. Nós sabemos dele tudo que ele sabe e, graças, por exemplo, às cenas de alucinações, que encenam recalques e perversões, sabemos até o que ele nem acha que sabe de si próprio…

 

Um difícil começo: a tradução de ‘Ulysse

27 de abril de 2012 – Estado de São Paulo

Sérgio Medeiros e Dirce Waltrick do Amarante

A frase inicial de Ulysses (1922) parece simples em inglês: “Stately, plump Buck Mulligan came from the stairhead, bearing a bowl of lather on wich a mirror and arazor lay crossed”. Sua tradução para o português, no entanto, revela, se considerarmos as três versões completas do romance existentes no Brasil, posições cruciais dos tradutores quanto à maneira de verter o romance de James Joyce.

Na pioneira tradução de Antônio Houaiss, publicada em 1966, o uso de duas palavras aparentemente pomposas, raras, conferem à abertura do romance uma solenidade que visa a acentuar talvez o caráter paródico da cena: “Sobranceiro, fornido, Buck Mulligan vinha do alto da escada, com um vaso de barbear, sobre o qual se cruzavam um espelho e uma navalha.”

Como se sabe, a ação de Ulysses começa às 8 horas do dia 16 de junho e termina no alvorecer do dia 17, um pouco antes das 4 horas da manhã. O vaso de barbear de Buck Mulligan representaria o cálice sagrado e o alto da escada, os degraus do altar. Dizem os estudiosos que a navalha indicaria a matança, o massacre, associando o “padre” ao açougueiro. Publicada em 2005, a tradução de Bernardina da Silveira Pinheiro opta por uma solução mais literal, que acentua de imediato o vínculo entre o sagrado e o profano: “Majestoso, o gorducho Buck Mulligan apareceu no topo da escada, trazendo na mão uma tigela com espuma sobre a qual repousavam, cruzados, um espelho e uma navalha de barba.” Essa segunda versão de Ulysses em português explicita o que Houaiss deixou implícito, a espuma no vaso de barbear, que Joyce, no entanto, menciona.

Isso não significa que a tradução em questão seja sempre mais “acertada” do que a outra. Na sequência do primeiro parágrafo, Bernardina propôs: “Um penhoar amarelo, desamarrado, flutuando suavemente atrás dele no ar fresco da manhã”. A tradução de “yellow dressinggown” é literal, mas é difícil visualizar o viril Buck Mulligan usando um penhoar. Houaiss optou por “um roupão amarelo”, que parece combinar mais com o personagem. Vejamos as soluções que Caetano Galindo, o terceiro tradutor de Ulysses, adotou na sua versão do referido parágrafo: “Solene, o roliço Buck Mulligan surgiu no alto da escada, portando uma vasilha de espuma em que cruzados repousavam espelho e navalha. Um roupão amarelo, com cíngulo solto, era delicadamente sustentado atrás dele pelo doce ar da manhã.”

Aparentemente, Galindo estaria mais próximo de Bernardina do que de Houaiss, mas evita usar “penhoar”, que em português cria um estranhamento talvez não previsto por Joyce. Contudo, sua versão tem características próprias, visíveis nesse trecho, que a distinguem da tradução de Bernardina. Joyce não gostava de vírgulas e as dispensava tanto quanto podia. A primeira frase de Galindo parece maisjoyceana do que a de Bernardini. Mas, na sequência, Galindo emprega uma palavra não usual, “cíngulo”, cordão que integra a vestimenta dos sacerdotes, termo “técnico”, não empregado pelos tradutores anteriores. Joyce usa a palavra “urgirdled”, que não é apenas “desamarrado”, mas refere-se a “girdle”, uma cinta sacerdotal, o cíngulo. Foi assim que Galindo entendeu o termo.

Lemos no Ulysses Annotated, de Don Gifford, que o termo “ungirdled” sugere a violação do voto de castidade por parte do sacerdote. Esse aspecto da paródia joyceana é realçada na nova tradução do romance pelo emprego, em português, de “cíngulo”. Assim, quando confrontamos as três versões do parágrafo inicial de Ulysses, podemos identificar claramente, em germe, os caminhos que cada tradutor adotará ao longo do trabalho, hercúleo, de verter na íntegra a complexa obra-prima de Joyce, que ao mesmo tempo é legível e ilegível, séria e cômica, épica e dramática, unificando talvez os contrários, daí o seu sabor especial, o seu fascínio.

 

Os primeiros parágrafos de ‘Ulysses’, segundo os três tradutores brasileiros

27 de abril de 2012  – Estado de São Paulo

ANTÔNIO HOUAISS

Sobranceiro, fornido, Buck Mulligan vinha do alto da escada, com um vaso de barbear, sobre o qual se cruzavam um espelho e uma navalha. Seu roupão amarelo, desatado, se enfunava por trás à doce brisa da manhã. Elevou o vaso e entoou:

– Introibo ad altare Dei.

Parando, perscrutou a escura escada espiral e chamou asperamente:

– Suba, Kinch. Suba, jesuíta execrável.

Prosseguiu solenemente e galgou a plataforma de tiro. Encarando-os, abençoou grave três vezes a torre, o campo circunjacente e as montanhas no despertar.”

Lançada em 1966, a tradução do filólogo carioca Antônio Houaiss (1915-1999) foi feita por encomenda do editor Ênio Silveira, da Civilização Brasileira, entre novembro de 1964 e outubro de 1965 – ou seja, em menos de um ano. Chegou à 17ª edição em dezembro último (960 págs., R$ 80).

BERNARDINA DA SILVEIRA PINHEIRO

“Majestoso, o gorducho Buck Mulligan apareceu no topo da escada, trazendo na mão uma tigela com espuma sobre a qual repousavam, cruzados, um espelho e uma navalha de barba. Um penhoar amarelo, desamarrado, flutuando suavemente atrás dele no ar fresco da manhã. Ele ergueu a tigela e entoou:

– Introibo ad altare Dei.

Parado, ele perscrutou a escada sombria de caracol e gritou asperamente:

– Suba, Kinch! Suba, seu temível jesuíta!

Solenemente ele avançou para a plataforma de tiro. Olhou à volta e seriamente abençoou três vezes a torre, o terreno à volta e as montanhas que despertavam.”

A professora carioca Bernardina da Silveira Pinheiro dedicou sete anos à tradução do romance, editada em 2005 pela Objetiva. A obra literária de Joyce – especialmente o épico de Bloom – a levou a pesquisas de pós-doutorado na Irlanda e na Inglaterra. Sua versão ganhou nova edição, da Alfaguara, em 2008 (912 págs., R$ 92,90).

CAETANO W. GALINDO

“Solene, o roliço Buck Mulligan surgiu no alto da escada, portando uma vasilha de espuma em que cruzados repousavam espelho e navalha. Um roupão amarelo, com cíngulo solto, era delicadamente sustentado atrás dele pelo doce ar da manhã. Elevou a vasilha e entoou:

– Introibo ad altare Dei.

Detido, examinou o escuro recurvo da escada e invocou ríspido:

– Sobe, Kinch. Sobe, seu jesuíta medonho.

Altivo, ele se adiantou e subiu na plataforma de tiro redonda. Olhou à volta e abençoou sério e por três vezes a torre, o campo em torno e as montanhas que acordavam.”

O curitibano Caetano Waldrigues Galindo se ocupou da tradução de Ulysses por dez anos. A origem do trabalho foi sua tese de doutorado. A edição que sai agora com o selo Penguin Companhia (1.112 págs., R$ 47) chegou a ter alguns trechos lidos em público, nas festas do Bloomsday.

 

A sra. Molly e o seu inesgotável ‘sim’

27 de abril de 2012

SÉRGIO MEDEIROS

Segundo Edmund Wilson, à medida que avançamos pelo Ulysses, vemos o cenário realista deformar-se e desfazer-se, e ficamos atônitos diante de vozes que não parecem pertencer nem às personagens nem ao autor. Esse intrincado pulular de narradores (o romance tem vários, independentes entre si, como apontou Richard Ellmann, biógrafo de Joyce) confere a Ulysses uma multiplicidade que só acentua algo que lhe é intrínseco: sua heterogeneidade.

De fato, do começo ao fim o texto é lúdico e imprevisto, transgredindo a “tirania” de uma só voz ou um só estilo. Na obra de Joyce nenhum episódio (não convém usar a palavra capítulo, não empregada pelo autor) é igual a outro. Essa sucessão de estilos díspares é um procedimento inédito na história do romance moderno. Depois de Joyce, o procedimento se popularizou entre os autores mais “ousados”, e continua sendo usado no século 21, elevado (ou rebaixado) à condição de linguagem “pós-moderna”.

T.S. Eliot, um ano após a publicação de Ulysses, afirmou que o romance terminara com Gustave Flaubert e Henry James. Insatisfeito com essa forma narrativa, que parecia esgotada, o irlandês James Joyce teria buscado um novo método de composição, um método no qual o paralelo entre a modernidade e a antiguidade teria grande importância. Sabe-se, porém, que Joyce extrapolou o “método mítico”, indo muito além da estrutura homérica que pretendia seguir, a qual visava, segundo Eliot, a “dar Forma e significado ao imenso panorama de futilidade e anarquia que é a história contemporânea”.

O episódio 18, denominado Penélope, se desenrola na cama que Leopold Bloom e Marion, ou Molly, sua mulher, compartilham em Dublin, pouco antes do amanhecer. Eles têm uma filha adolescente, chamada Milly. O episódio corresponde à cena da Odisseia em que Penélope é informada ao despertar que Odisseus (Ulisses) retornou e derrotou os estrangeiros que almejavam ocupar o lugar dele no leito do casal. Sentenças sem pontuação constituem o longo monólogo da sra. Marion Bloom, talvez um dos textos mais sumarentos, mais repletos de líquidos vitais de toda a literatura.

Molly é uma mulher de 30 e poucos anos, preocupada com a barriga, que lhe parece estar ficando um pouco grande. Suas formas são generosas, e ela se tranquiliza afirmando que as magrinhas não estão mais na moda.

Talvez a palavra mais célebre pronunciada por Molly na madrugada do dia 17 de junho, ao nascer do sol, seja “Yes”. É a primeira palavra que ela diz, e também a última, mas, neste caso, as noções de começo e fim se confundem e se anulam. Curiosamente, numa primeira versão desse monólogo, que circulou antes da publicação do livro, não havia o “Yes” final, o qual Jacques Derrida denominou de inesgotável “sim” da fala feminina. O fecho original dizia: “e sim eu disse sim eu quero”. Porém, o tradutor francês, Jacques Benoist-Méchin, em conversa com Joyce, considerou o “I Will” difícil de passar para o seu idioma e acrescentou um “oui” final. Joyce, depois de discutir com ele acrescentou definitivamente um “Yes” ao seu próprio texto. Molly, desde então, abandonou o autoritário “eu quero” e nos endereça o “sim”.

SÉRGIO MEDEIROS É TRADUTOR E POETA, AUTOR DE VEGETAL SEX (UNO PRESS/UNIVERSITY OF NEW ORLEANS PRESS) E TOTENS (ILUMINURAS, NO PRELO). COORGANZIOU E COTRADUZIU DE SANTOS E SÁBIOS (ILUMINURAS), DE JAMES JOYCE

A RODA DA ESCRITURA

PSICANÁLISE, ARTE E LITERATURA

Lourdes Rodrigues

Com este texto pretendo trazer alguns elementos para discutir a relação da arte, mais especificamente da literatura, com a psicanálise.Usei como meu fio condutor o livro de Philippe Willemart, OS PROCESSOS DE CRIAÇÃO – NA ESCRITURA, NA ARTE E NA PSICANÁLISE. Autor de formação literária e psicanalítica, professor titular em literatura francesa na USP, coordenador científico do Laboratório do Manuscrito Literário (LML) e do Núcleo de Apoio à Pesquisa em Critica Genética (NAPCG), ambos na USP, publicou várias obras aqui e no exterior, além daquela que estou trazendo, cito ainda Escritura e Linhas Fantasmáticas, Além da Psicanálise: a Literatura e as Artes e De l’ínconscient en litterature, entre outras.

Philippe Willemart diz que o advento da psicanálise trouxe muitos questionamentos para as categorias literárias. A primeira e grande questão sempre levantada é: quem escreve a obra, o escritor ou o autor? E ele cita Jacques Derrida que declarava não haver sujeito da escritura se entendemos por isso “qualquer solidão soberana do escritor”. Mais esclarecedor Willemart complementa: o sujeito da escritura é um sistema de relações entre as camadas: do bloco mágico (analisado por Freud), do psíquico, da sociedade, do mundo.

De acordo com a sua concepção, quem começa a escritura não é quem entrega o manuscrito ao editor. Nesse percurso duas instâncias logo se distinguem, a do escritor e a do autor que se opõem no tempo e na escritura. Além delas, mais outras três participam da roda da escritura: a do scriptor, a do narrador e a do primeiro leitor. Todas elas identificadas segundo o verbo definidor da ação do sujeito no processo da escrita.

A roda da escritura apresenta as seguintes instâncias:

– O escritor observa – primeira etapa da formação das idéias. Mais do que observar ele sente, afirma Willemart, A qualidade do artista se define mais por seu sentir do que por seu raciocínio.

– O scriptor inscreve – Na etapa seguinte, uma idéia simples ou uma representação na língua do escritor, vinda da observação, se transforma em imagem de si mesma, isto é, entra na linguagem, torna-se idéia complexa e é inscrita pelo scriptor que traça uma marca no papel, a partir da qual o narrador escreve e conta. (…) a partir desta primeira inscrição, o mundo se torna apenas representação, não tendo mais relação com a realidade, as idéias não representam mais as coisas, elas se representam entre si…

– O narrador conta – centralizando o foco narrativo e cedendo ou não a palavra ao personagem. O narrador está mais ligado ao imaginário lacaniano.

– O primeiro leitor relê e rasura – suspende o que o scriptor, a serviço da linguagem, e o narrador, pressionado pela tradição e pelos terceiros, propõem, agindo antes da intervenção do autor.

– O autor confirma – recusa ou aceita, rasura ou prescreve a proposta do narrador, suspensa pelo primeiro leitor, decidindo a escritura final. O autor começa a surgir com a primeira rasura e quanto mais o texto é rasurado mais se distancia do escritor e dá lugar à lenta formação do autor. Assim, o autor é fruto da escritura e não o seu pai.

Essas são as cinco instâncias da escritura e elas agem, cada uma por sua vez, em uma roda constante, construindo a obra literária.

Para Willemart, a instância do autor ao rascunhar e destruir o que surge livremente à cabeça do escritor entra em um processo de negação ou de denegação das origens… Apesar disso, diz ele, a rasura não se define somente como a negação do passado e da filiação, mas como a porta de entrada do futuro e da criação. Nabokov diz que a obra de arte é invariavelmente a criação de um mundo novo, de modo que a primeira coisa que devemos fazer é estudar esse mundo novo tão de perto quanto possível, abordando-o como um objecto inteiramente novo, sem nenhuma relação óbvia com os mundos que já conhecemos.

A dimensão dessa labuta, rasurar, escrever, rasurar, escrever de novo, rasurar … em Flaubert, principalmente na elaboração de Madame Bovary, foi de um sofrimento indizível, ainda que ele o dissesse muitas vezes, é como se exigisse dele um irrevogável adeus à vida, um circuito sisifeano, diz Roland Barthes. Flaubert deixou 4500 fólios rasurados na elaboração daquele romance que contém apenas 470 fólios na última versão. Aqui Philippe Willemart pergunta o que poderia ser a rasura no gabinete do analista. Ele diz serem as pontuações do analista que obrigam o analisando a bifurcar, se deixar levar por outras palavras ou expressões, por outros rumos para contar sua história e se dizer de outro modo. Em outras palavras, o analista ocuparia na roda da escritura (análise) o papel do primeiro leitor.

A rejeição de palavras, parágrafos, até de capítulos, para Philippe Willemart sugere a formação do sujeito freudiano que, por um processo inconsciente de rejeição e de aceitação, se libera ou aceita qualidades ou maneiras de viver e de pensar provenientes de familiares.

Sem dúvida, a escrita desvela as cercanias do escritor, a tradição, a vida, os fantasmas, o pensamento, a ideologia, os preconceitos e, principalmente, a luta agonista para romper com tudo isso, romper com o passado, romper com o seu tempo, transcendendo-o pela criação de um novo estilo poético que lhe dará nova identidade, uma identidade móvel, porque ele, sujeito atravessado pela linguagem, vai querer seguir adiante, em busca de outros escritos inéditos, sempre, sempre conduzido por esse gozo, por esse grão. Este grão ou pedaço do real, para Willemart, citando Lacan, poderia ser identificado ao Outro, que conduz o jogo, levando o escritor a se dizer, a se dessubjetivar ou a se perder. E Ele conclui o pensamento dizendo: Como o inconsciente aparece e desaparece, dá um sentido a um significante e some, até reaparecer em outro momento do discurso, dançando de lapso em lapso, de sonho em sonho ou, mais intensamente, no discurso associativo no divã, assim a escritura literária se constitui no decorrer das idas e vindas da mente do escritor ao manuscrito, por sua mão.

DUAS DAS QUESTÕES LEVANTADAS PELO AUTOR RELACIONANDO ARTE E PSICANÁLISE

1 – Escrever, pintar, esculpir ou inventar uma obra substitui uma análise?

Philippe Willemart começa dizendo que essa questão merece uma resposta ampla, mas que o seu resumo poderia ser o seguinte: enquanto a análise possibilita que o analisando abra seu mundo desconhecido, a prática da arte abre o artista para o “novo” no mundo, incluindo ou não a sua trajetória pessoal. E arremata:

A arte não substitui a análise, nem a análise a arte, mas ambas usam uma linguagem específica, centrada no sujeito através do imaginário, para tentar arrancar um pedaço do real e simbolizá-lo. (Aqui ele coloca uma nota dizendo que Lacan distingue o sujeito analisado do sujeito submetido às pulsões no Seminário, Livro XIV, A lógica do Fantasma, mas não refere o artista).

Sérgio Scotti diz que Lacan ao comentar Hamlet afirma que a obra de arte, no caso a arte escrita, não é uma transposição ou sublimação da realidade. A arte não é paralela à ordem simbólica que estrutura a realidade humana: ela é transversa, pois tem a natureza de um corte. E o que aparece, o que se constitui nesse corte é o sujeito. E é nesse corte que o Real do sujeito se manifesta.

2 – Se todo artista pode ser psicótico, perverso ou neurótico, o que o distingue do não artista?

A resposta de Phillipe Willemart é que o primeiro enfrenta o real, enquanto o segundo sofre ou padece do real.

E então ele apresenta dois exemplos que ilustram sua proposição. A primeira delas foi extraída da dissertação de mestrado – examinada por ele – de Cristiane Brito Uma escritura em Processo: Joaquim Aguiar; e a segunda, retirada de Lacan.

a) A dissertação de mestrado

A terapeuta (Cristiane) analisa os escritos de um psicótico, Joaquim Aguiar, que escreve sob a inspiração direta de Deus. Ela constatou a repetição do conteúdo em versões aparentemente diferentes. Nas entrevistas com o paciente ela lhe mostrou que poderia melhorar seus textos. Para sua surpresa, ele aceitou a sugestão e escreveu várias versões e publicou seu texto.

ANÁLISE

Para o autor, a terapeuta simplesmente sugeriu uma instância a mais que não existia entre o escritor (Joaquim) e o seu inspirador (Deus): a instância do primeiro leitor, a que lê, rasura, retoma e acrescenta.

O paciente conseguiu, após várias entrevistas, produzir uma obra não repetitiva. Isso aconteceu não porque ele encontrou na entrevistadora-terapeuta um scriptor, o instrumento da escritura, nem um narrador, aquela voz que conduz a narrativa, nem um autor, aquele que conclui e não volta mais atrás, mas a instância que manda o escritor reler sua página e reunir os trechos em um certa lógica, a de primeiro leitor.

Insatisfeito com a escrita, o primeiro leitor retoma a função de scriptor com coragem e re-escreve. A nova instância aliviou o paciente do peso do real, representado pela figura de Deus, e lhe permitiu enfrentá-lo.

Normalmente, o que leva a ação do primeiro, segundo ou terceiro leitor é o desejo de responder a uma demanda que pode ser formulada por vários interlocutores e à qual o escritor-leitor tenta e quer adequar-se. Desde uma visão estética, ética, códigos de escritura, movimento literário até requisitos do editor, agente literário, marchand.

Nesse caso, o que mobilizou a terapeuta foi o seu descontentamento com a escrita de Joaquim, ela queria mais, queria uma escrita melhor.

Philippe Willemart em sua análise diz que a terapeuta operando na transferência, se colocou na rota do desejo do paciente, ocupou o lugar do grande Outro e enxertou nele a instância faltante. Ela conseguiu em primeiro lugar descolar Joaquim de sua escritura ou de sua primeira campanha de redação, que ele considerava definitiva, separou o pequeno “a” do grande A que está sempre por trás, mas que nele estava aglutinado ou indiferenciado por força da disposição psíquica ou pela psicose. Nessa etapa, Joaquim deixou de ser psicógrafo ou transmissor da vontade de outro – Deus, deus ou uma entidade supranatural –, distanciou-se de Schreber ou de outros iluminados e não ficou mais inspirado por uma musa, como pretendiam os românticos.

Continuando a análise, Willemart afirma que o passo seguinte dado por Cristiane, ou talvez mesmo acontecido simultaneamente, consistiu em introduzir a dimensão do tempo no trabalho artístico dele, insistir no processo de escritura ou na necessidade de trabalho na confecção de uma obra de arte e permitiu um jogo muito mais ágil e prolongado entre as quatro instâncias citadas anteriormente; os mecanismos da escritura podiam rodar. Cravando a instância de primeiro leitor ou a dimensão temporal que se opõe à dimensão divina ela tornou o trabalho dele im-perfeito ou perfectível, o que é a marca do homem. Ou ainda, aceitando que escrever supõe uma ação se desenvolvendo ou se fazendo, o que os lingüistas chamam “aspecto do verbo”, Joaquim passou de uma identificação com uma divindade para uma identificação com o homem, assumindo a autoria de seus trabalhos ou a “responsabilidade de seu próprio fazer”. Agente consciente desse movimento, Cristiane ativou a dimensão inconsciente desse desejo de resposta às exigências do grande Outro.

Aqui Willemart procura esclarecer que o sujeito do inconsciente que liga o texto inscrito na mente é “teleguiado pelo desejo, não do grande Outro, mas para o grande Outro, como se buscasse um rumo, uma resposta, uma barreira à morte. É mais um ingrediente importante e coerente com a dimensão temporal: a obra de arte, ao mesmo tempo em que precisa da finitude decorrente da flecha do tempo, se quer obstáculo à morte, ou melhor, véu impedindo sua visão. Introduzindo o processo no trabalho de Joaquim Aguiar, a terapeuta inseriu quase automaticamente a morte e a finitude, “desdivinizou” ou laicizou sua postura.

O autor conclui afirmando que o trabalho de Cristiane permitiu a ele entender que conceitos inventados para interpretar e entender o movimento da escritura nos manuscritos – conceitos de scriptor, narrador, etc – são instrumentos muito importantes para entender não só o tratamento de pessoas como Joaquim, mas o modo como funciona a mente. Cristiane, no papel de primeira leitora, revelou-se capaz de analisar os escritos de Joaquim, ao reunir as diferentes formas discursivas e considerá-las palimpsesto, “cada texto agindo como uma rasura sobre o outro”.

b) – Exemplo retirado de Lacan

O autor se refere a um artigo de Lacan, publicado em 1933 na revista surrealista Le Minotaure, em que ele reflete sobre a criação artística. Nesse artigo, O Problema do Estilo e a Concepção Psiquiátrica das Formas Paranóicas da Experiência, que depois foi anexado à sua tese, por ocasião da publicação, Lacan argumenta que, no artista paranóico, “o valor de realidade não é de jeito nenhum diminuído pela gênese que os exclui da comunidade mental da razão”. E dá como exemplo Rousseau, autor de Contrato Social e outras obras importantes (Emílio, Discurso sobre as Desigualdades, entre elas) diagnosticado “como paranóico típico, mas que deve a sua experiência propriamente mórbida à fascinação que exerceu sobre seu século, por meio de sua pessoa e de seu estilo”. Lacan conclui que é possível conceber a experiência vivida paranóica e concepção do mundo que ela gera, como uma “sintaxe original, que contribui para afirmar, pelos laços de compreensão que lhe são próprios, a comunidade humana. O conhecimento dessa sintaxe nos parece uma introdução indispensável à compreensão dos valores simbólicos da arte, e especialmente aos problemas do estilo”.

O que significa dizer que nem a psicose, nem a neurose, nem a perversão são indispensáveis ao artista, mas se esses aspectos da psique se manifestam no ser humano com sensibilidade artística, não impedem a arte de surgir. Em outras palavras, diz Willemart, o verdadeiro artista, mesmo psicótico, consegue se fazer instrumento do desejo do Outro. E cita frase de Lacan em O Seminário, Livro 23, O Sinthoma: “Ser louco não é, portanto, um privilégio”. E Willemart acrescenta: Ser artista é ser suficientemente sensível ao real, ou melhor, padecer suficientemente do real para, como reação, imaginarizar o simbólico vigente e reconstituí-lo com o pedaço de real, arrancado do real.

 

Aspectos do Romance, Edward Forster, Parte III : AS PESSOAS

 

Na Parte III de Aspectos do Romance, Edward Forster aborda tópico importante desse tipo de narrativa: as personagens. No texto, entretanto, ele parece ter esquecido a geometria euclidiana, especialmente no que se refere ao famoso princípio de que a menor distância entre dois pontos é uma reta, usando de volteios entediantes ao argumentar sobre o tema. Tal atitude deixou-nos algumas vezes perdidos, carecendo de retorno ao porto da partida, única e confortável certeza em meio a essa viagem.

 Já no início do ensaio/palestra ele altera o nome personagem para pessoas sob o argumento de que a experiência com animal não teve êxito, em vista do desconhecimento até aquele momento de sua psicologia. Talvez ele devesse ter relido (com certeza leu algum dia) os pensamentos de Confúcio, pelo menos o primeiro dos seus mandamentos que diz A vida é realmente simples. Nós é que insistimos em torná-la complicada. Ora, personagem é sinônimo de pessoa, e mesmo quando é objeto, animal ou vegetal, seus sentimentos, suas reações são sempre antropomorfizados.

 Apesar disso, o texto não perde em qualidade, valendo a pena mergulhar no labirinto e seguir as pistas de Ariadne para não perder o caminho de volta.

 Forster diz que a pergunta que vai acompanhar o leitor agora não será mais o que vai acontecer depois, tão presente na história que se conta, conforme visto no capítulo anterior. Ela será substituída por a quem aconteceu o fato que está sendo narrado, exigindo do leitor além de curiosidade, muita imaginação e inteligência.

 No processo de criação de personagens ele vê um facilitador para o romancista que é a afinidade pré-existente entre eles, derivado do fato de ambos pertencerem ao humano, diferentemente do que ocorre em outras formas de arte. Pintor, escultor e poeta dispensam tal ligação porque eles não precisam representar seres humanos, não é uma condição imposta pela sua arte, a menos que o desejem. O músico mesmo que ele quisesse jamais poderia fazê-lo. Contrariamente aos seus colegas, o romancista arranja uma porção de massas verbais, descrevendo grosso modo a si mesmo (grosso modo, as sutilezas virão mais tarde), dá-lhes nomes e sexos, determina-lhes gestos plausíveis e as faz falar por meio de aspas e talvez comportarem-se consistentemente. Essas massas verbais são suas personagens.  

 Prosseguindo, o autor diz que o processo de criação dos personagens não é frio, podendo acontecer em delirante excitação. E sempre resultará da visão que o criador tem das pessoas e dele próprio, modificada por outros aspectos do seu trabalho, ponto objeto de investigação futura, segundo ele, pois no momento lhe interessa ocupar-se da relação dos personagens com a vida real.

 E para adentrar no processo de criação ele começa por perguntar qual a diferença entre as pessoas num romance e as pessoas como o romancista ou como vocês, ou como eu, ou como a Rainha Vitória?Respondendo ele próprio que existe diferença obrigatória. Se o personagem é igual à Rainha Vitória, por exemplo, ele é a rainha e o romance ou o que se referir a esse personagem tornar-se-á Memória, porque ele se baseia em fatos, enquanto o romance não tem tal compromisso, ele se baseia em fatos mais ou menos reais às vezes. Para o historiador interessam as ações dos homens, e mesmo o caráter desses homens é deduzido dos seus feitos. A vida oculta é, por definição, velada e, quando se mostra através de sinais exteriores, não é mais oculta, já entra no domínio da ação. Ao romancista cabe revelar essa vida oculta, contar-nos mais sobre a Rainha Vitória do que se poderia saber e, desse modo, compor uma personagem que não é a rainha Vitória da História.

 Forster cita crítico francês que afirmou ter o ser humano dois lados, um apropriado à história e outro à ficção: Tudo que é observável num homem, quer dizer, suas ações e a parte de sua existência espiritual que pode ser deduzida das suas ações – cai no domínio da história. A parte romanesca que inclui as paixões genuínas, os sonhos, sentimentos de alegria, tristeza pertencem à ficção.

Para distinguir o real da ficção ele recorre aos chamados fatos principais na vida humana: nascimento, alimentação, sono, amor e morte. Começa por priorizar nascimento e morte, e diz tais fatos são conhecidos apenas através de informações, pois ninguém lembra como nasceu, menos ainda quando morreu, movemo-nos entre duas obscuridades, diz ele. Ao romancista, entretanto, tudo é permitido, pois ele conhece a vida oculta. Quanto tempo depois do nascimento ele tomará suas personagens? Até que ponto, na direção do túmulo, ele as acompanhará? E o que dirá, ou fará sentir, sobre essas duas experiências esquisitas?

 Longa e labiríntica caminhada ele faz pelos fatos principais da vida humana. A alimentação é um elo entre o sabido e o esquecido, diz ele, muito parecido com o nascimento, alem de restaurar as forças tem um lado estético, pode ter gosto bom ou ruim, e o que acontecerá nos livros essa mercadoria de duas faces?, pergunta.  O sono, em média, ocupa um terço do tempo de qualquer pessoa, e nos leva a um mundo pouco conhecido, e nos parece, ao deixá-lo, ter sido em parte esquecimento, em parte uma caricatura deste mundo e, em parte ainda, uma revelação. Sem querer discutir a natureza do sono ou dos sonhos, Forster diz que a História não se ocupa com esse terço e a ficção, pergunta ele, tomará uma atitude semelhante? Enfim, chega ao amor. Aqui ele faz uma longa digressão sobre o tema, concluindo que os seres humanos no estado de amor tentam receber e dar alguma coisa, e este duplo objetivo torna o amor mais complicado que o alimento e o sono. Quanto tempo ocupa o amor na vida das pessoas? Ele pode imiscuir-se no sono, na alimentação, mas Forster diz duvidar que um homem tenha comunhão emocional com qualquer objeto amado mais que duas horas por dia.

 De igual constituição, o romancista nasce, alimenta-se, dorme, ama, e ainda, toma a caneta em sua mão, penetra no estado de anormalidade que convém chamar inspiração, e tenta criar personagens. Em que medida os personagens criados pelos romancistas diferem dele, diferem dos seres que habitam a terra? Forster elenca uma série de divergências, começando pelo nascimento. Quando um bebê aparece num romance, tem o ar de quem foi enviado pelo correio: é entregue. Uma das personagens mais velhas é quem vai apanhá-lo e apresentá-lo ao leitor, depois do que ele desaparece até que possa participar da ação. A morte tem um tratamento que dá a impressão de que o romancista acha esse tema congenial, pois permite a ele encerrar com elegância um livro, afirma Forster. O alimento aparece apenas socialmente, reunindo personagens que o saboreiam, mas não o digerem. O sono também é tratado de forma perfunctória, sem qualquer indício de esquecimento ou do verdadeiro mundo dos sonhos. Estes são ora lógicos, ora mosaicos compostos por pequenos fragmentos positivos do passado e do futuro. Aqui se percebe a influência do pensamento freudiano, resultado da publicação na Inglaterra de A Interpretação dos Sonhos, pela Hogarth Press de Virgínia e Leonard Woolf.

 O amor ocupa espaço enorme nos romances. Para começar ele diz que o romancista quando deixa de desenhar os seus personagens e começa a criá-los, o amor em qualquer de seus aspectos ou em todos, torna-se importante em sua mente e, sem querer, faz suas personagens exageradamente sensíveis a ele – exageradamente, no sentido de que, na vida, não os preocuparia tanto. Segundo Forester, os personagens são reflexos do estado de espírito do romancista no processo de composição, e a predominância do amor é em parte por conta disso. Outra razão, é que o amor, como a morte, é congenial (essencial) para um romancista, pois ele também permite terminar o livro de modo adequado.  O autor pode fazê-lo durar para sempre, e seus leitores facilmente aceitarão isso, porque uma das ilusões ligadas ao amor é que ele será permanente: digo será em lugar de tem sido. (…)Qualquer emoção forte traz consigo a ilusão de permanência, e os romancistas agarram-se a isso.Em geral, terminam seus livros com casamento, ao que não nos opomos, pois emprestamos a eles nossos sonhos.

 Enfim, para concluir o seu pensamento, ele admite que o homo fictus seja mais indefinível do que o seu primo homo sapiens, por não ser possível universalizar, vez que é produto de centenas de mentes distintas de romancistas que utilizam em seu processo criativo os mais divergentes métodos de construção. Mesmo assim, ele se arrisca a dizer que ele (homo fictus) nasce, é capaz de morrer, requer pouco alimento ou sono, está incansavelmente ocupado com relações humanas e – o mais importante – podemos saber mais sobre ele do que sobre qualquer um de nossos semelhantes, porque seu criador e narrador é um só.

 Daí em diante ele passa a analisar um personagem de Daniel Defoe, Moll Flanders, porque ela enche o livro que leva o seu nome, ou ainda, permanece só como uma árvore num parque, de modo que podemos vê-la sob cada um de seus aspectos, e não somos incomodados pela vegetação que a cerca. Ele chama de vegetação aos outros personagens que atuam com ela, os vários maridos/amantes que ela teve e nenhum deles foi capaz de lhe roubar a cena. Segundo Forster, Defoe fez uma tentativa de enredo tendo o irmão-marido dela como centro, mas ele é muito simplório; e um outro marido, o legal, desaparece da cena sem deixar vestígio. Nada importa senão a heroína. (…) E tendo dito que ela parece absolutamente real sob todos os pontos de vista, devemos nos perguntar se a reconheceríamos caso a encontrássemos na vida cotidiana. (…) Poderemos, então, dar a resposta habitual encontrada em todos os manuais de literatura e que sempre deveria ser dada em exames, a resposta estética, no sentido de que um romance é uma obra de arte, com suas próprias leis, que não são as da vida diária, e que uma personagem dum romance é real quando vive de acordo com tais leis. (…) São reais não por serem como nós (embora possam sê-lo), mas porque são convincentes.

 Após dissertar sobre a questão de os personagens serem tirados da vida real ou não, o autor passa a analisar as dificuldades dos escritores para a caracterização. Dois expedientes são apontados por Forster como facilitadores dessa tarefa: o uso de diferentes tipos de personagens; e o ponto de vista.

 No primeiro, relativo ao uso de diferentes tipos, ele divide as personagens em planas  e redondas. A tradutora Maria Helena Martins, em nota de rodapé, diz que essa classificação das personagens em planas e redondas foi a maior contribuição de Forster para a literatura. As planas, chamadas de humorous no século XVII, às vezes tipos, às vezes caricaturas. Em sua forma mais pura são construídas ao redor de uma única idéia ou qualidade; quando há mais de um fator, atingimos o início da curva em direção às redondas. Entre as vantagens de se usar personagens planas estão a de elas poderem ser reconhecidas de imediato pelo olho emocional do leitor  e a de serem facilmente lembradas por ele. Permanecem inalteradas em sua mente pelo fato de não terem sido transformadas pelas circunstâncias, movendo-se através delas. (…) Nós todos queremos livros que perdurem, que sejam refúgios e que seus habitantes sejam sempre os mesmos, e as personagens planas tendem a justificar-se por causa disso.

 Os críticos, entretanto, nem sempre concordam com tal, ponto de vista, diz o autor. E cita crítico inglês que fez ácidos comentários sobre a obra de D,H.Lawrence, por ele não conceber as complexidades da mente humana comum; seleciona, para fins literários, duas ou três facetas de um homem ou de uma mulher,; em geral, os mais espetaculares e, por isso mesmo, proveitosos ingredientes de sua personalidade, desprezando todos os outros.  Nenhum ser humano é simples, diz Forster, mas o romance que tem alguma complexidade requer personagens planas e redondas,  e o resultado de seu entrechoque assemelha-se à vida com mais exatidão.(…) …devemos admitir que as pessoas planas não são, em si, realizações tão notáveis quanto as redondas e que também são melhores quando cômicas. Uma personagem plana séria ou trágica tende a tornar-se enfadonha. (…) Só as pessoas redondas podem atuar tragicamente por qualquer espaço de tempo e inspirar-nos qualquer sentimento, exceto o de humour e adequação. (…) O teste para uma personagem redonda está nela ser capaz de surpreender de modo convincente. Se ela nunca surpreende, é plana. Se não convence, é plana pretendendo ser redonda. (…) Todas as personagens de Dostoievski são redondas, diz ele.

 O outro expediente utilizado pelo escritor e mencionado por Forster refere-se ao ponto de vista a partir do qual a história é contada.  De acordo com Percy Lubbock, toda a intricada questão do método, no ofício da ficção, é governada pela questão do ponto de vista – a posição do narrador em relação à história. Em seu livro The Craft of Fiction, editado no Brasil com o título de A técnica da ficção,  ele diz que o romancista pode descrever as personagens do ponto de  vista exterior, seja como um espectador parcial ou imparcial ou assumir a onisciência e descrevê-las do ponto de vista interior ou ainda colocar-se no lugar de uma delas e fingir estar no escuro, em relação aos motivos das outras ou mesmo assumir atitudes intermediárias. Forster diz que os seus seguidores certamente vão conseguir estabelecer um fundamento certo para a estética da ficção, mas ele concorda apenas que toda questão de método é resolvida pela habilidade do escritor em fazer o leitor aceitar o que ele diz e não pelo uso de fórmulas. Lubbock, segundo ele, admite e admira tal poder no escritor, mas coloca-o nas bordas do problema e não no centro como o próprio Forster o coloca. E ele cita como exemplo Dickens, em Bleak House , que habilmente usa no primeiro capítulo narrador onisciente, no segundo, narrador parcialmente onisciente, no capítulo seguinte a personagem tem o comando, comando que o criador poderá tomar a qualquer momento das suas mãos, e seguir ele mesmo tomando notas, numa lógica absolutamente fragmentária, pouco importando as mudanças de pontos de vista. Para Forster, os leitores não fazem qualquer objeção a essa mistura de pontos de vista, que isto incomoda mais aos críticos literários do que a eles. Outro exemplo de variação de ponto de vista citado é o do romance Os Moedeiros Falsos  de André Gide – escritor obsessivo com a técnica, cuja lógica é fragmentária. Ora o narrador é onisciente, fica por trás e explica tudo, ora ele é parcialmente onisciente, ora é dramático e deixa a história ser contada pelos personagens. A diferença entre as duas narrativas reside em que as variações de pontos de vista em Dickens são instintivas, e em Gide são sofisticadas, com o autor denunciando o tempo inteiro o seu interesse pelo método. Por esta razão ele considera que a obra de Gide, embora  esteja entre as mais interessantes obras modernas, ela não se inclui entre as vitais, razão porque ele não pode aplaudi-la irrestritamente. Ele ainda cita Guerra e Paz  como exemplo de obra vital que nos transporta através da Rússia onisciente, semi-onisciente, dramatizada aqui ou acolá, como inspira o momento – e no final nos o aceitamos completamente. Mr.Lubbock não, é verdade: grande como considera o livro, considerá-lo-ia ainda maior se possuísse um ponto de vista; ele sente que Tolstoi não deu tudo o que poderia dar.

 Para Forster, as regras do jogo da escrita não são assim. O romancista pode mudar o seu ponto de vista, desde que obtenha o resultado esperado. E ele estabelece um paralelo disso com a própria vida; Somos mais estúpidos em algumas ocasiões que noutras; podemos penetrar na mente das pessoas às vezes, mas não sempre, porque o nosso próprio intelecto cansa; e esta descontinuidade empresta, no decorrer do tempo, variedade e colorido às nossas experiências.

 

Edward M Forster é um personagem redondo, com certeza, ele nos surpreende a cada página. Convida-nos para uma viagem difícil, árida,  maçante às vezes, mas ao final dela sentimos um prazer imenso, pelas muitas descobertas que nos propicia. Às vezes ficamos mareados com os seus volteios, mas logo passa e já ficamos prontos para seguir viagem outra vez com ele.

 

                          Jaboatão dos Guararapes, 07 de abril de 2009

                                                   Lourdes Rodrigues

 

RESENHA DE A HISTÓRIA, PARTE II DO LIVRO ASPECTOS DO ROMANCE DE EDWARD MORGAN FORSTER

 

 Aspectos do Romance é um estudo sobre o romance. O autor garante não ter a pretensão de ser “científico”, por isso o título de “Aspectos”, mas de permitir ao leitor olhar de diferentes maneiras o romance e dar ao próprio romancista a oportunidade de ver o seu trabalho. A linguagem coloquial adotada resulta de a origem ter sido as conferências que ele realizou na Universidade de Cambridge ao suceder T.S.Eliot.

Edward Morgan Forster, mais conhecido por E. M. Forster, (1879 a 1970), inglês de família tradicional, orfão de pai aos dois anos de idade, foi educado pela mãe, com quem manteve ligação extremamente forte. Virgínia Woolf critica em seu diário o fato de ele, homem já maduro, refugiar-se com a mãe em Weybridge, uma velha, niquenta & severa, numa casa velha, a uma milha da estação.

Ele frequentou o King´s College, em Cambridge, onde conheceu as pessoas que formaram o o grupo artístico e literário Bloomsbury, cujos participantes eram chamados de Apóstolos, passando a fazer parte dele. O grupo ficou conhecido, também, como a máfia da intelectualidade, por usar rituais secretos. Após a morte da mãe, ele foi eleito membro honorário do King’s College, onde viveu até ao fim dos seus dias.

Escreveu vários livros, entre ensaios, contos e romances: Where Angels Fear to Tread, The Longest  Journey, Um quarto à vista,  Howard´s End e Passagem para a India, estes dois últimos objeto de belos filmes, Maurice e Artic Summer (incompleto). Publicou ainda três livros de contos: The celestial omnibus and other stories, The eternal moment and other stories, mais tarde reunidos num só volume, e postumamente The life to come and other stories. Dos 14 contos ali reunidos, apenas dois foram publicados antes da sua morte, pois assim como Maurice, a maioria dos contos explorava temas homossexuais.

Estudioso de Teoria Literária, seu livro Aspectos do Romance, razão desta resenha, foi publicado em 1927 e ficou célebre pela sua classificação das personagens em esféricas ou planas, tornando-se a sua obra teórica mais conhecida.

O primeiro aspecto considerado no livro é A História, aspecto fundamental de todo romance, segundo o autor. Para defender a sua tese ele faz uso de metáfora sonora ao estruturar os seus argumentos com base no tom de voz em que o leitor respondia a pergunta: O que é que um romance faz. Na verdade, por trás do tom de voz ele situava o leitor no seu contexto social, econômico e cultural, usando substantivos e adjetivos que não deixavam dúvidas sobre o sujeito da fala, nem sobre a sua relação de simpatia ou antipatia por ele. Assim, o leitor-motorista, cidadão comum, de recursos econômicos e culturais limitados, contava com o respeito e a admiração do autor ao responder, de forma plácida, que não sabia bem… que aquela era uma pergunta engraçada…, mas que ele supunha que o romance contava uma história. Por outro lado, o leitor-golfista, cidadão amealhado, arrogante e agressivo na resposta: Ora, conta uma história, é claro, pois assim era o seu desejo, dele e da mulher, diga-se de passagem, sendo tal desejo soberano, nada mais podendo lhe interessar, embora dispusesse de recursos social e econômico para maior refinamento cultural, e ainda exibindo profundo desprezo pelas artes, Você pode ficar com a sua arte, a sua literatura, a sua música, desde que me dê uma boa história, desnecessário seria dizer o quanto o autor o achava detestável e ao mesmo tempo temia tal leitor, pois para ele, E.M.Forster, a arte valia à pena pela arte. E, por fim, o tipo leitor-beletrista, em que ele mesmo se inclui, que cheio de desânimo e pesar responde: Oh, sim, meu caro, sim, o romance conta uma história, pois ele bem que gostaria de que assim não fosse, que o romance pudesse ser algo diferente, como por exemplo, melodia, percepção da verdade, e não esta baixa forma atávica.

Pouco importa o lugar que o sujeito ocupa na sociedade, enquanto leitor desejante há um máximo divisor comum que une a todos ao ler um romance: a  história que ele conta. Mas é do lugar de leitor-beletrista, daquele que lamenta que assim seja, que ele vai mostrar o que realmente significa a história no romance.

Por que lamenta o beletrista? Afinal, a unanimidade deveria ser suficiente para acalmá-lo. Não, não, não, diz ele, se forem retirados da história todos os seus refinamentos pouco resta para admirar. O que mantêm a história viva desde o homem de Neanderthal, quando ela era contada ao redor de uma fogueira, é o desejo dos ouvintes de saber o que vai acontecer depois, tal qual o esposo de Sherezade nas Mil e uma noites, e outras tantas audiências de seu tempo – do autor – para quem a curiosidade primitiva ainda prevalece sobre qualquer julgamento literário. Assim, ele resume que a história tem apenas um mérito: fazer a audiência desejar saber o que acontece depois. E, inversamente, pode ter uma única falta: fazer com que o auditório não queira saber o que acontece depois.

Apesar disso ele reconhece que a história tem muito a ensinar. E começa por apresentar a sua conexão com a vida cotidiana, usando o sentido de tempo e o senso de valoração sempre presentes nela: … a vida cotidiana, qualquer que seja, é praticamente composta de duas vidas – a vida no tempo e a vida dos valores; e nossa conduta revela uma dupla fidelidade: “ Eu a vi só por cinco minutos, mas valeu a pena”. Igualmente, o papel da história é narrar a vida no tempo, enquanto que o romance como um todo –se ele é um bom romance – tem o papel de agregar-lhe valores, a partir de alguns recursos ficcionais, prestando, assim, dupla fidelidade. E reforçando o seu argumento ele diz que no romance a fidelidade ao tempo é imperativa, mais do que na vida cotidiana, quando as pessoas chegam a negar que o tempo existe, que até podem esquecer que o relógio está tique-taqueando, e agirem segundo tal pensamento. Um romancista não pode fazer assim, ele jamais poderá ignorar o tempo dentro da textura do seu romance. O escritor pode usar de muitos artifícios para tentar esconder o tempo, assim como Proust, Emily Brontë e Sterne o fizeram, mas nenhum deles contradiz a tese do autor de que : a base de um romance é uma história, e a história é uma narrativa de acontecimento dispostos em sequência no tempo.

Ainda no desenvolvimento da sua tese ele passa a analisar as obras de alguns escritores. Começa com Sir Walter Scott, escritor inglês ( 17711832), criador do genuíno romance histórico. Antes dele alguns autores haviam procurado essa modalidade literária, mas o público e a crítica não compreenderam a intenção.A análise crítica do autor é bastante severa: Não sabe construir: não possui nem despreendimento artístico, nem paixão. Apesar disso, ele reconhece a fama do escritor e a atribui a dois fatores. O primeiro deles, a razões sentimentais, porque ouviram na juventude a sua leitura em voz alta, associando-a com lembranças de momentos felizes. E o segundo, porque ele sabia contar uma história.Tinha o primitivo poder de conservar o leitor em “suspense e brincar com a sua curiosidade.O texto analisado é O Antiquário que ele esmiuça, apresentando diversas falhas, mas acaba por concluir que é um livro em que a vida no tempo é celebrada instintivamente pelo romancista.

Em seguida, ele faz breve comentário sobre The Old Wives´Tale, de Arnold Bennett, publicado em 1908 com grande sucesso, considerado uma obra prima. Neste romance o tempo é o verdadeiro herói,.o processo de envelhecimento dos seus personagens é surpreendente, até o cão da casa velho e reumático arrasta-se para ver se resta alguma coisa no prato. E ele reconhece que é um livro muito forte, sincero e triste, mas contesta a sua grandeza, grandeza que ele vai encontrar em Guerra e Paz de Tolstoi. Segundo  Forster, ali não só o tempo, mas o espaço, também, foi contemplado, podendo até ser dito que o espaço é que é o senhor do romance, espaço da imensa área da Rússia, das suas florestas, das suas pontes e rios congelados, dos jardins, estradas e campos.

E para concluir a sua argumentação ele diz que a história, além de dizer uma coisa depois da outra, acrescenta algo por causa de sua conexão com uma voz. Assim, como repositório de uma voz, ela pede para ser lida em voz alta, não pela cadência ou melodia, para estas o olho é suficiente, por mais incrível que pareça,  mas dada a sua primitividade, antes mesmo da descoberta da leitura, a “voz” que fala, a voz do narrador da tribo, agachado no meio da caverna atrai o que há de primitivo em nós, exigindo que nos transforme de leitores em ouvintes.

Por todos os argumentos apresentados é que ele insiste para que os ouvintes de sua conferência não respondam com a inocência do leitor-motorista quando lhe perguntarem o que um romance faz, porque eles não têm esse direito, e eu acrescento, não têm mais a inocência daquele leitor; também não respondam tal e qual o leitor-golfista, porque a eles não cabem o perfil porque têm muito mais sabedoria; digam assim como ele, e não tenham dúvida de que estarão certos, embora um pouco tristes, pesarosos: sim – oh, meu caro, sim -, o romance conta uma história.

Edward M. Forster, com certeza, não é um ensaísta-conferencista plácido, para usar o seu adjetivo. A medida que lemos o seu texto surpreendemo-nos com o tom contundente, margeante da grosseria, algumas vezes. De qualquer forma, a geração dos anos vinte foi uma geração vanguardista que se caracterizou pela quebra de padrões no fazer literário: James Joyce no ápice da pirâmide, Virgínia Woolf uma das suas mais brilhantes seguidoras. Além disso, pertencer ou ter pertencido ao Bloomsbury, grupo intelectual inglês de grande expressão, já lhe dava a licença poética necessária para se expressar como bem quisesse, até para fazer citações pessoais do tipo: Poderia ter sido um escritor mais famoso se tivesse escrito e publicado mais, mas o sexo não permitiu esta última. (Wikipédia). Afinal, o máximo divisor comum é eles serem todos herdeiros de Flaubert na busca por um escrever absoluto, sem amarras, medidas ou fronteiras:

   O que me parece belo, o que eu gostaria de fazer, é um livro sobre nada, um livro sem amarra exterior, que se sustentaria pela força interna do seu estilo, como a terra, sem estar sustentada, se mantém no ar, um livro que não teria quase tema, ou pelo menos em que o tema fosse quase invisível, se é que pode haver. As obras mais belas são as qu têm menos matéria; mais a expressão se aproxima do pensamento, mais a palavra cola em cima e desaparece, maior é a beleza.

Assim, não poderia deixar de ser triste a resposta do leitor-escritor-beletrista: Sim, o romance conta uma história.

                                                                 Jaboatão dos Guararapes, 08 de março de 2009          

                                                                                               Lourdes Rodrigues 

 

O QUE FAZ DE ALGUÉM UM LEITOR?

 

O QUE FAZ DE ALGUÉM UM LEITOR?

 

A leitura não passa de um substituto do pensamento próprio. Trata-se de um modo de deixar que seus pensamentos sejam conduzidos em andadeiras por outra pessoa. (…)

 Assim, uma pessoa só deve ler quando fonte de seus pensamentos próprios seca, o que ocorre com bastante freqüência mesmo entre as melhores cabeças. Por outro lado, renegar os pensamentos próprios, originais, para tomar um livro nas mãos é um pecado contra o Espírito Santo.(…)

 Ler significa pensar com uma cabeça alheia, em vez de pensar com a própria.

 A verdade meramente aprendida fica colada em nós como um membro artificial, um dente postiço, um nariz de cera, ou no máximo como um enxerto, uma plástica de nariz feita com a carne de outros. Mas a verdade conquistada por meio do próprio pensamento é como o membro natural, pois só ela pertence realmente a nós. 

Arthur Schopenhauer     (A Arte de Escrever) 

Pergunto-me o que move o leitor à leitura não será a secreta esperança ou simples possibilidade de vir a descobrir, dentro do livro, mais do que a história contada, a pessoa invisível, mas omnipresente, que é o autor. O romance é uma máscara que oculta e ao mesmo tempo revela os traços do romancista. Se a pessoa que o romancista é não interessa, o romance não pode interessar. O leitor não lê o romance, lê o romancista.

                                       José Saramago (Cadernos de Lanzarote, V.II)    

 

                                        

 

 

 

O QUE LEVA ALGUÉM SER ESCRITOR

O QUE LEVA ALGUÉM SER ESCRITOR?

 

 Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende as suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever? (…) Sou mesmo forçado a escrever?Se for afirmativa, se puder contestar àquela pergunta severa por um forte e simples sou, então construa a sua vida de acordo com esta necessidade. Sua vida, até em sua hora mais indiferente e anódina, deverá tornar-se o sinal e o testemunho de tal pressão.

                                               Rainer Maria Rilke (Cartas a um Jovem Poeta)

 

 O escritor de histórias, manifestas ou disfarçadas, é um exemplo de mistificador: conta histórias para que lhas aceitem como críveis e duradouras, apesar de saber que elas não são mais do que umas quantas palavras suspensas naquilo a que eu chamaria o instável equilíbrio do fingimento, palavras frágeis, permanentemente assustadas pela atração de um não-sentido que as empurra para o caos, para fora dos códigos convencionados, cuja chave a cada momento ameaça perder-se.

José Saramago (Cadernos de Lanzarote II)

 

Afinal digo a frase, mas permaneço tomado de um grande terror, porque vejo que tudo em mim está pronto para um trabalho poético,  que esse trabalho seria para mim, uma solução divina, uma entrada real na vida, enquanto no escritório devo, em nome de uma lamentável papelada, arrancar um pedaço de sua carne ao corpo capaz de tal felicidade.

                                                                               Franz Kafka

 

Por que escrevo? — Poderia ser, entre outras coisas, por dever: por exemplo, para servir a uma Causa, uma finalidade social, moral, instruir, edificar, militar ou distrair (…) Ora, tanto quanto me permite minha lucidez, sei que escrevo para contentar um desejo (no sentido forte): o Desejo de Escrever

                                                                 Roland Barthes (A Preparação do Romance, V II)