HOMENAGEM AOS CEM ANOS DE CLARICE LISPECTOR

Clarice Lispector
Fonte: Wikipédia

A Escritora e a Dona de Casa

Everaldo Soares Júnior



De Clarice, não sei dizer tantas coisas sobre a sua vida. Mas as notícias de conversas, de documentos escritos sobre ela chegam ao meu conhecimento de qualquer maneira. Sei que a vida dela foi bastante singular e as biografias sobre ela poderiam me aproximar mais dos seus livros, que gosto tanto de ler.


Não sei que distância é essa que procuro, ficar lendo seus romances, seus contos, suas cartas e até suas entrevistas, tudo isso é mesmo uma fascinação. A vida ingênua de Macabéa, li e reli várias vezes, não me conformo com aquela cartomante, que poderia lhe ter oferecido um destino melhor. De Água Viva, o chamado meta-romance, reli vários parágrafos, ora apreciando sua criação literária, ora questionando construções conceituais que me levam à dimensão lacaniana do Real. O estranhamento não está presente somente no desafiante Paixão Segundo G H, perpassa em grande parte da sua obra, a tensão e a surpresa são inevitáveis.


Imaginar Clarice e seu mundo, às vezes me surpreende mesmo, penso nela como uma dona de casa nos seus afazeres. Com discrição e devagar, entro na sua casa furtivamente, sem me deixar perceber e a encontro com um vestido simples, de sandálias, sem lenço na cabeça, nem no pescoço, estendendo as roupas lavadas no varal. De volta para a sala, passa na cozinha, mexe a panela do feijão com uma colher de pau e experimenta o sal. Pega no balcão o que parece frango temperado e coloca no forno. Na mesa da sala, seus dois filhos e mais uma menina da vizinha, fazem os deveres de casa. Ela olha o que as crianças estão fazendo, diz algumas coisas, sem interromper os estudantes. Senta-se na poltrona junto ao sofá. Na mesinha do lado, pega a sua máquina de escrever e a coloca no colo, ajeita o papel, relê as poucas páginas amontoadas que já foram escritas, fica parada, pensando, rabisca com o lápis algumas anotações, que me parecem breves. Volta para a máquina e recomeça a escrever, tocando as teclas num ritmo cadenciado, acompanhado da atenção do seu olhar.


Puxa vida, queria saber o que ela está escrevendo, mas a distância não me permite. Agora, tenho que ir embora, vou sair do mesmo jeito que entrei, sem que ninguém me veja.  

Já no meu gabinete, paro de viajar com esses pensamentos invasivos. Na estante, pego o Legião Estrangeira, abro e o coloco no suporte, ligo a minha câmera de leitura e aterrisso nos escritos de Clarice.

João Pessoa, 10 de dezembro, Dia dos Direitos Humanos, 2020.