Os nossos viageiros produzem resenhas com as suas impressões sobre a leitura de um conto ou de um romance. Enquanto leitores empíricos, eles fazem as suas próprias andanças pelo texto, o que as tornam extremamente interessantes.
Aqui temos duas delas, a de Graça Lins, Professora de Literatura, viageira atenta aos silêncios e simbolismos de uma escritora como Clarice Lispector em A Paixão, Segundo G,H; e, a de Fernando Gusmão, viageiro-escritor-poeta, muito atento ao concerto musical de A Arvore, metáfora usada pela escritora Maria Luísa Bombal.
A PAIXAO
“SEGUINDO” GH
Graça Lins
Ler ou
decifrar? Reler ou indignar-se? “Tresler”
ou esvaziar-se de toda Teoria da Literatura? Eram as frequentes indagações que
se faziam a cada leitura compartilhada de A
Paixão segundo GH, no grupo da Oficina Literária, cuja madrinha é a própria
Clarice Lispector.
Os olhos
atentos e impactados dos leitores, quase sempre, sem respostas. Quem busca
logicidade em Clarice se depara com o caos milimetricamente construído. Pensei
e calei.
A Literatura
e a Psicanálise dialogavam. A Linguística, também. E os leitores? Todos na
expectativa do banquete: uma barata de longos cílios e massa branca escorrendo
do ventre.
A cada
leitura, novos questionamentos: “De quem é essa mão a que GH se refere?” “Por que o uso de tantos travessões, sem
indicativo de fala de alguém como a norma gramatical preconiza?” “Seria uma
linha pontilhada, indicando um caminho
já percorrido?” “O livro termina com 6
travessões? Que estranho!”
Enquanto a
narrativa se desenrolava, os presentes mais se confundiam e os ausentes queriam,
mesmo, era participar do prazer gastronômico que Clarice anunciava e os
envolvia como uma tecelã, usando fios ficcionais que atavam à imaginação as imagens
que construíam e desconstruíam a cada
capítulo.
Para essa
tessitura, outros leitores foram convidados: Freud, Sartre, Lacan, Kierkgaard, Camus,
São Tomás de Aquino. Valei-nos! Até
passagens do Levítico.
As citações
bíblicas eram um bálsamo para o mal-estar da incompreensão. A interlocução, com
a figura de um possível leitor, lembrava o mesmo recurso estilístico
machadiano, mas nada acrescentava ou esclarecia.
“Segura
minha mão, porque sinto que estou indo. Estou de novo indo para a mais primária
vida divina…” (p.59)
“Ah, meu amor,
as coisas são muito delicadas. A gente pisa nelas com uma pata humana demais,
com sentimentos demais.” (p. 154)
“Dá-me a tua mão. Porque não sei mais do que estou
falando. Acho que inventei tudo, nada disso existiu! (p.96)
Terminado o
banquete, ainda de guardanapo alvíssimo nas mãos, decidi ler GH do final para o
começo, como se lê um mangá. Recolhendo os destroços do que ficou pelas páginas
rabiscadas. Parágrafos inteiros marcados de verde, pequenas notas de rodapé, a
fala dos colegas transcritas na lateral dos infindáveis capítulos. Comentários,
intervenções e emoções expressas ao longo do texto. Isto sim, um real banquete.
Desse mastigar
laborioso, retomei algumas metáforas que se repetiam e iluminavam a releitura:
a alusão ao Minarete ( torre alta de
uma mesquita, onde se anuncia as 5 chamadas do dia para a oração dos
mulçumanos). Bem assim era a obra. De uma estrutura ficcional realmente muito “alta”
Clarice nos falava. A barata, como o
mais inexpressivo dos seres e a mão,
que apenas é referida mas não realiza nenhuma ação protetora.
Assim, dessa
pós leitura, fui guardando os achados nas entrelinhas do texto que a própria
autora denomina de relato:
“Meu desejo agora seria o de interromper tudo isto e
inserir neste difícil relato…”(p. 80)
“De uma coisa eu sei: se chegar ao fim deste
relato…” (p. 162)
Um relato constituído
de indagações filosóficas, questionamentos sobre a estética, a religião e a
moral, sentimentos confusos e contraditórios sobre o amor, o medo, a
sexualidade, a insegurança, os problemas éticos, a fragilidade dos
relacionamentos humanos, compondo uma busca desenfreada por uma identidade que
se dizia desconhecida.
Ao final,
diante da singularidade e da qualidade literária da narrativa, senti-me no alto
de um minarete anunciando a outros
leitores as possíveis leituras de GH,
com sua carga de universalidade e inconfundível beleza estética.
–>
Análise do Conto “A Árvore”, de Maria Luisa Bombal
Fernando Gusmão
Encontro Brígida, 18 anos, protagonista do conto, em um
concerto de música clássica. Enquanto aguarda o início da apresentação,
cumprimenta uma conhecida, que traz notícias do seu ex-marido. Começa a primeira
peça do espetáculo; de Mozart.
Ela se deixa embalar pela música, nos percursos da infância e
da sua limitada juventude. Mozart, fiel ao seu estilo, começa leve e agradável,
falando com clareza, equilíbrio e transparência, mas, caminha para um foco intenso
e sensual. “¡Qué agradable es ser ignorante! ¡No saber exactamente quién fue
Mozart; desconocer sus orígenes, sus influencias, las particularidades de su
técnica! Dejarse solamente llevar por la mano, como ahora”.
Ao som da música, seus devaneios me dizem de sua história: infância
de bela menina, pai viúvo cheio de
filhas mais velhas, que negligenciou sua educação, sua formação, que se
conforma: “Es tan tonta como linda”. Ao contrário de suas irmãs, que iam sendo
pedidas em casamento uma a uma, Brígida não era pedida por ninguém. Isso faz
com que ela, muito jovem, case-se com Luis, bem mais velho, amigo do pai. Uma
sociedade patriarcal, decidindo o comportamento feminino apropriado, dificulta,
ainda mais, a capacidade de Brígida viver a própria vida. O casamento falha em
fornecer satisfação. Ela passa das restrições da casa do pai às limitações da
vida com o marido. Sua relação com Luis baseia-se em uma relação de companhia,
e não de amor. Luis, por sua vez, também se sente garroteado: “Eres como un
collar de pájaros”. O conceito de casamento como estagnação está subjacente
para o marido e para a mulher.
Mas, agora, Mozart entra num ritmo mais urgente e arrasta Brígida
pela mão, fecha a porta do passado com um acorde doce e firme e a traz de volta
para a sala de concertos, trajando preto, batendo palmas mecanicamente,
enquanto a chama de luzes artificiais cresce lentamente.
Após alguns minutos, se faz, outra vez, um silêncio de
expectativas, que começa a ser alumiado por uma nova harmonia. É Beethoven, que
principia a tratar suas notas de forma suave e lírica, quase religiosa,
autêntica.
“—No tienes corazón, no tienes corazón. —. Nunca estás
conmigo cuando estás a mi lado. ¿Por qué te has casado conmigo?
—Porque tienes ojos de venadito assustado.
— Nunca me has contado de qué color era exactamente tu pelo
cuando eras chico.
—Mañana te contaré. Tengo sueño, Brígida, estoy muy cansado.
Apaga la luz. —Estoy ocupado. No puedo acompañarte… Tengo mucho que hacer, no
alcanzo a llegar para el almuerzo… Un
compromiso. No. No sé. Más vale que no me esperes, Brígida.
—¡Si tuviera amigas! —suspiraba ella.
—Me gustaría ver nevar alguna vez, Luis.
—Este verano te llevaré a Europa y como allá es invierno
podrás ver nevar.”
Chega o verão. Seu primeiro verão de casada. Novas ocupações
não deixam que Luis cumpra sua promessa.
“—¿Qué te pasa? ¿En qué piensas, Brígida?”
—Tengo sueño…
—¿Todavía está enojada, Brígida?
… … …”
Brígida acha a arma que havia encontrado sem pensar: o
silêncio!
Na sala de concertos, a música de Beethoven é, como toda
música, um composto de sons e silêncios. Mas, pode, às vezes, ser colérica,
plena de espírito de luta, de força de vontade e de uma enorme coragem;
obstinada como o granito.
“—Bien sabes que te quiero, collar de pájaros
… … …
—Pero no puedo estar contigo a toda hora
… … …
—¿Quieres que salgamos esta noche?
… … …
—¿No quieres? Paciencia.
… … …
—Dime, ¿llamó Roberto desde Montevideo?
… … … .
—¡Qué lindo traje! ¿Es nuevo?
… … … .
—¿Es nuevo, Brígida? Contesta, contéstame!
… … …”
E então, para ela, o inesperado, o incrível, o absurdo: Luis
se levanta da cadeira, joga violentamente o guardanapo sobre a mesa e sai da
casa batendo as portas. Ela corre para o quarto de vestir.
“¡Ah, me voy, me voy esta misma noche! No volveré a pisar
nunca más esta casa… Y abría con furia los armarios de su cuarto de vestir,
tiraba desatinadamente la ropa al suelo”.
Algo, então, bate na janela: A árvore, um gomero, que, ao
sopro do vento e da chuva golpeava com suas ramas os vidros da janela. Punhados
de perolas que chovem a jorros sobre um teto de prata. Chopin!
A música de Chopin é intensamente pessoal, pela grande força
espiritual, pela extrema sensibilidade, com um acento romântico cheio de
melancolia e, em outras ocasiões, de uma pungente tristeza. Ao escutá-la
acredita-se ouvir o andar, mais que firme, pesado, de seres que afrontam
orgulhosos de valentia tudo o que a sorte possa trazer de injusto. É a mensagem
da esperança, do otimismo, do espírito combativo, mesmo que permeado de
dúvidas.
O que fazer no verão quando chove tanto? Ficar o dia inteiro
no quarto fingindo uma doença ou uma tristeza?
Uma tarde, Luis entra timidamente. Ela senta-se muito dura. Em
silêncio…
“—Brígida, ¿entonces es cierto? ¿Ya no me quieres? —En todo
caso, no creo que nos convenga separarnos, Brígida. Hay que pensarlo mucho.” E Luis foge do quarto.
Ela vai até a janela do quarto de vestir e encosta a testa no
vidro gelado. Lá está o gomero recebendo serenamente a chuva que o atingia,
calma e regular. O quarto, imobilizado na escuridão, em ordem e silencioso.
Tudo parece parar, eterno e muito nobre. Isso era a vida. E havia certa
grandeza em aceitá-la dessa maneira, medíocre, como algo definitivo, irremediável.
¡Siempre!
¡Nunca!…
E a chuva, secreta e igual, ainda continuava sussurrando em
Chopin.
E, noite após noite, ela dormia ao lado do marido, sofrendo
rajadas de dor. Mas, quando sua dor se condensava até machucá-la, como um
assovio, quando ela era assediada por um desejo imperioso demais de acordar
Luis para atingi-lo ou acariciá-lo, ia até o
quarto de vestir na ponta dos pés e abria a
janela. O quarto era imediatamente preenchido com ruídos discretos e presenças
tranquilas, de passos misteriosos, de vibração, de sutis cliques vegetais, do
doce gemido de um grilo escondido sob a casca do gomero afundado nas estrelas
de uma noite quente de verão. Não sabia por que lhe era tão fácil sofrer
naquele quarto. Era a melancolia e a pungente tristeza de Chopin engatando um
estudo atrás do outro, engatando una melancolia atrás da outra, imperturbável.
Veio o outono. Haviam voltado a conversar. Voltara a ser sua
esposa, sem entusiasmo e sem raiva. Não o queria mais. Mas, não sofria mais.
Pelo contrário, uma sensação inesperada de plenitude, de placidez, tinha tomado
posse dela. Ninguém ou nada poderia machucá-la mais. A verdadeira felicidade
podia estar na convicção de que a felicidade havia sido irremediavelmente
perdida. “Entonces empezamos a movernos por la vida sin esperanzas ni miedos,
capaces de gozar por fin todos los pequeños goces, que son los más perdurables”.
Súbito, um rugido feroz, depois um clarão branco que a
empurra para trás, toda tremendo.
¿Es el entreacto? No. Es el gomero, ella lo sabe. Lo habían
abatido!
Haviam tirado sua privacidade, seu segredo; ela estava nua no
meio da rua, nua ao lado de um marido que lhe virava as costas para dormir, que
não lhe dera filhos. Ela não entendia como podia ter suportado o riso de Luis
por um ano, aquela falsa risada de um homem que treinou para rir porque é
necessário rir em certas ocasiões.
—Pero, Brígida, ¿por qué te vas?, —había preguntado Luis.
—¡El árbol, Luis, el árbol! Han derribado el gomero.
Faz-se silêncio. E a realidade, finalmente, se sobrepõe ao
mundo fantasioso de Brígida. Ela conclui que a árvore, como o marido, estão
ambos sujeitos a viver e a morrer. Entende que nem a árvore nem o marido podem
lhe fornecer uma existência estável. Nessa descoberta, ela rejeita sua condição
anterior de dependência e decide que assumirá inteiramente a própria vida:
“¡Mentira! Eran mentiras su resignación y su serenidad;
quería amor, sí, amor, y viajes y locuras, y amor, amor…”
De Maria Luisa Bombal fica para mim, principalmente, seu
estilo, que desenha um fundo de familiaridade trágica. O ritmo compassado de
sua escrita —e a nuance poética das figuras a cada instante evocadas— que anulam
qualquer pieguice melodramática e varrem, aos poucos, toda e qualquer hipótese
de dúvida entre anseio e sonho.
TEXTO, LEITOR E AUTOR EM “SEIS PASSEIOS PELO BOSQUE DA FICÇÃO”, DE UMBERTO ECO
Fernando Gusmão
Qualquer texto exige, sempre, duas outras categorias de entidades diretamente a ele vinculadas: o Autor e o Leitor. O Autor, entidade objetiva que registra a história e o Leitor, que vem, necessariamente, com o texto, porque, para “entender” uma mensagem verbal faz-se necessário “além da competência linguística, uma competência variadamente circunstancial, capacidade de pressupor, de reprimir idiossincrasias, etc.”.
Por outro lado, tal texto consiste, em última análise, de um adequado composto de locuções, declarações e informações. No entanto, qualquer texto está, sempre, completamente intercalado pelo não-dito, por aquilo que não se mostra na superfície, no plano da expressão. Dizendo de outra forma, conforme postulou Umberto Eco em 1988, o texto está repleto de buracos brancos, cheio de fissuras a serem preenchidas.
Até a algum tempo atrás admitia-se que o texto literário era a expressão das ideias de seu autor e que tocaria, tão-somente, ao Leitor a função passiva de interpretar o que o Autor aspirava dizer. Por isso, anteriormente, estudar a obra só tinha significado se se estudasse, também, a biografia de seu Autor.
Mas, como em uma história sempre há um leitor, e esse leitor é um elemento essencial, não só do procedimento de contar uma história, como, também, da própria história, o crítico francês Roland Barthes escreveu, em 1968, o ensaio “A morte do Autor”, introduzindo uma atitude pós-estruturalista de crítica ao papel centralizador do Autor.
Pode-se dizer que nesse ensaio Barthes ponderava que o Autor não era o único locus da autoridade criativa, mas que ele —o Autor— seria, no máximo, um “Scriptor” – palavra que ele empregou para esvaziar o sentido de poder existente nas palavras “autor” e “autoridade”. Conforme esse crítico, o Scriptor, que “nasce simultaneamente com a obra”, existia para produzir e não para explicar e estabelecer uma “perspectiva” e, com isso, determinar o significado do texto, da obra. Na nova visão de Barthes, o Leitor passa a deter um “privilégio que tinha sido considerado prerrogativa dos textos”, a saber, o de fundar um “ponto de vista”, definindo, assim, a acepção do texto. Ler um texto seria, pois, desconstruir qualquer ideia de origem e construir novos significados, permitidos pelos signos do texto, mas deslocados ad infinitum pelas multíplices condições de produção.
Importante ressaltar que Eco, em “Seis Passeios pelo Bosque da Ficção” —onde Bosque” é uma metáfora para o texto narrativo— diz que o Leitor tem inteira liberdade de escolha em relação ao livro que está lendo. E que essa liberdade é possível precisamente “porque os Leitores se dispõem a fazer suas escolhas no bosque da narrativa, acreditando que algumas delas serão mais razoáveis que outras”.
Para tanto, Eco vê o Leitor classificado em duas categorias: O Leitor-Empírico e o Leitor-Modelo.
O Leitor empírico é você, eu, todos nós, quando lemos um texto. O Leitor-Empírico é aquele que realiza uma leitura específica e pessoal de determinada obra. Os Leitores-Empíricos leem de múltiplas formas e não existe lei que decida como devem ler. Isso, porque, regra geral, aproveitam o texto como um continente de suas próprias paixões, externas ao texto ou instigadas pelo próprio texto.
Por sua vez, o Leitor-Modelo de uma história não é o Leitor-Empírico. É, sim, aquele que o texto pressupõe como seu leitor ideal. O Leitor-Modelo de Eco (1979), não só figura como interagente e colaborador do texto; “mas, muito mais — e, em certo sentido, menos —, ele brota do texto, sendo o suporte de sua estratégia de interpretação”. O Leitor-Modelo seria, dessa forma, capaz de movimentar-se interpretativamente conforme ele, o Autor, se movimentou gerativamente. Prever o próprio Leitor-Modelo, de acordo com Eco, não significa somente “esperar” que esse exista, mas, implica que se deve mover o texto no sentido de construí-lo. Eco exemplifica o Leitor-Modelo em Finnegans Wake, de James Joyce, dizendo que “esta obra projeta um leitor ideal que disponha de muito tempo, tenha perspicácia associativa com uma enciclopédia vasta, consiga fazer leituras cruzadas, domine a língua inglesa e possua um dicionário de pelo menos duas mil palavras desta língua”. Fácil entender que quando referida ao Leitor não postulado, a obra ou torna-se ilegível ou torna-se outro livro.
Vale acrescentar, ainda, que nós Leitores-Empíricos —eu, vocês— contamos com dois Autores:
Um, o Autor-Empírico, como sujeito da enunciação textual, que cria hipoteticamente um Leitor-Modelo e, ao fazê-lo, arquiteta seu texto com uma estratégia textual. Sendo mais claro, o Autor-Empírico é uma entidade objetiva que registra a história e resolve que Leitor-Modelo lhe toca estabelecer.
Outro autor, o Autor-Modelo, que age para nos dizer quais locuções colocadas no texto devem servir como estímulos para nossa imaginação e para nossas reações físicas. Ele, o Autor-Modelo, aparece como uma estratégia narrativa, um “conjunto de instruções, que nos são dadas passo a passo e que devemos seguir quando decidimos agir como o Leitor-Modelo”. No final, pode-se entender o Autor-Modelo também como um determinado estilo, claro e inconfundível.
Importante é que o leitor empírico pode atribuir diferentes sentidos à obra, sejam eles acenados pela enunciação, ou pela cultura, pelo “espírito do tempo”, ou pelo “horizonte de expectativas”, por motivações pessoais, etc, e que, dessa forma, não há limites para a interpretação, que se constitui, como via de consequência, em um processo aberto e cooperativo entre autor, texto e leitor.
Num só minuto há tempo Para decisões e revisões, a revogar noutro minuto. Pois já as conheço todas bem, conheço todas – Sei as noites, as tardes, as manhãs, Às colheres de café andei medindo a minha vida; Sei que em breve agonia se esvaem as vozes Abafadas na música de um quarto mais além. Como havia eu de ousar, assim? T. S. Eliot
pesquiso pesquiso… apenas a pesquisar
nada escrevo, ainda não terminou o prazo (?)
apenas a me encantar, arregalo os olhos
semelhante ao dia da leitura na Oficina LIterária,
não é inglês (?), americano de nascimento,
filho de imigrantes, emigrou de volta,
largou ao terminar em Harvard, o país natal,
as vésperas da primeira guerra,
em plena revolução industrial,
atravessou mares e pontes, olhou os mesmos objetos,
Torre de Londres, Museu Britânico… (como tantos turistas fazem todo dia,
como fiz, 30 anos após sua morte…)
às margens do Tâmisa, se encontrou, se naturalizou,
como mais conhecido poeta britânico se imortalizou!
(onde vi, li seu nome pela primeira vez?)
não lembro, mas em mim seu nome tem um lugar
aconchegante, um júbilo ao ouvir se pronunciar
T. S. Eliot
procuro de onde nos conhecemos,
onde se cruza nossa existência como viventes,
quando casou pela segunda vez, já na Inglaterra,
eu engatinhava, nos idos de 1957,
quando morreu, o Brasil já estava sob ditadura militar,
com certeza não me foi apresentado quando ainda vivo,
embora vivo vá continuar sempre a cada leitura,
no Tópico V. O que disse o Trovão, do Poema TheWaste Land, de 1922,
http://marocidental.blogspot.com.br/2012/01/waste-land-t-s-eliot-traduzido.html
todas as lembranças são do Agreste pernambucano, das Vertentes,
da Serra de Taquaritinga, do céu escuro em nuvens
que se batem em trovões e relâmpagos,
caem em granizos em final da tarde…
mas… chega de tergiversação, escreve escreve,
diz-me o vento sibilante, deixa de caraminholas, é julho!
Lourdes Rodrigues nos trouxe T. S. Eliot para o momento poético naquela quarta-feira, 23 de maio de 2017, a iniciar a Oficina. O poema escolhido foi:
A Canção de Amor de J. Alfred Prufrock
S’i credesse che mia risposta fosse
A persona che mai tornasse al mondo,
Ma però che già mai di questo fondo
Questa fiamma staria senza più scosse.
Non torno vivo alcun, s’i’odo il vero,
Sanza tema d’infamia ti rispondo.
(Dante Alighieri, La Divina Commedia, Inferno)
Vamos lá, você e eu
quando a noite está espalhada contra o céu
tal paciente eterizado sobre a mesa
vamos nós, por tais semi-desertas alamedas
as quebras quietas
de inquieta noite insone na espeluncas de uma noite
bistrôs baratos com jornal no chão:
ruas que seguem tal tedioso argumento
de perigosa pretensão:
levá-lo a uma pergunta arrasadora…
ah, “qual seria?”, não insista,
vamos lá à nossa visita.
na saleta, as moças em deâmbulo
falam de michelangelo.
a névoa espessa roça as costas nas venezianas
fumaça espessa que o focinho roça nas venezianas
raspando a língua nas esquinas do anoitecer
demora sobre as poças sobre os ralos
derruba em suas costas cinzas lá das chaminés
desliza no terraço, faz-se reerguer
e vendo que era noite calma de um outubro
em volta enrosca a casa a adormecer.
e é certo, o tempo vai chegar
para o fumo espesso errante pela rua,
que esfrega as costas nas venezianas;
o tempo vai chegar e vai chegar
de preparar a cara a ver as caras conhecidas suas;
vai chegar o tempo de criar e de matar
e o tempo dos trabalhos e os dias e as mãos
que erguem e jogam a dúvida em seu prato;
tempo pra você e para mim,
e tempo pra mais cem indecisões,
e mais cem visões e revisões,
antes da hora de tomar chá com torrada.
na saleta, as moças em deâmbulo
falam de michelangelo.
e é certo, o tempo vai chegar
em que se possa perguntar, “eu ousaria?”
tempo para voltar e descer a escadaria,
e a mancha calva no meio da cabeça já se via –
(vão dizer: “como o cabelo dele vai rareando!)
meu fraque e o colarinho bem alto abotoando,
minha gravata honesta e rica, com uma só prega fechando
(vão dizer: mas como as pernas e os braços dele tão afinando!”)
ousaria
o universo perturbar?
num minuto há muito tempo
em que o minuto as decisões e revisões pode abortar.
pois eu já as conheci a todas elas, todas elas –
conheço as noites, tardes e manhãs, até,
eu medi a minha vida em colherinhas de café
conheço as vozes abafadas se apagando
em meio à música de um quarto distante.
como é que eu ia adivinhar?
e eu conheci os olhos todos, todos eles –
os olhos que lhe pregam numa frase formulada,
e quando eu, formulado, num alfinete a estrebuchar,
quando eu estou pregado e me espalhando na parede,
como é que eu ia começar a
cuspir bitucas dos dias e vias?
como é que eu ia adivinhar?
pois eu já conheci os braços todos, todos eles –
braceletados braços, brancos e desnudos
(à meia luz, porém, cobertos com ruiva penugem!)
será o perfume de um vestido
que me faz assim perdido?
braços jogados sobre as mesas, ou nos xales enrolados.
então como é que eu ia adivinhar?
como eu podia começar?
***
e eu direi que andei ruelas pelo anoitecer
que vi a fumaça fugindo dos cachimbos
de uns homens solitários de pijama nas janelas?
eu devia era ter sido um par de diras garras
pairando pelos leitos de quietos oceanos.
***
e o entardecer, o anoitecer, dorme em tanta paz!
por longos dedos acariciado
dormindo… cansado… ou finge dor,
espichado aqui no chão, do meu lado e do seu,
devia eu, depois do licorzinho nesse cálice,
ter força de forçar o instante até seu ápice?
embora eu tenha feito reza, cena e até quaresma,
embora eu tenha visto minha cabeça (já meio careca) trazida na bandeja,
não sou profeta – e aqui deixo pro azar;
eu vi o meu momento de grandeza tremular,
e eu vi o Lacaio eterno com o meu terno e um riso abafar,
e, resumindo, eu tive medo.
e valeria a pena, ao fim de tudo,
das xícaras, do chá e das geleias,
em meio às porcelanas e íntimas trocas de ideias,
teria, ao fim, valido alguma pena
ter encerrado num sorriso nossa cena,
e espremer o universo numa bola
rolá-lo a uma pergunta arrasadora,
dizer “eu sou lázaro, vindo dos mortos
retorno para lhes dizer tudo, direi tudo” –
se então, ajeitando o travesseiro em sua cabeça
alguém dissesse: “não é nada disso tudo;
não é isso, eu juro.”
e valeria a pena, ao fim de tudo,
e valeria alguma pena
depois do pôr-do-sol e das soleiras e das ruas respingadas,
depois dos livros e dos chás, depois das saias que se arrastam pelo chão –
e disso e muito mais então? –
é impossível dizer tudo o que eu quero!
mas como se a lanterna mágica lançasse seus padrões num anteparo:
valeria alguma pena
se alguém, ajeitando o travesseiro ou enrolando um xale,
ao virar-se pra janela, enfim dissesse:
“não foi isso, eu juro,
fui incompreendida em tudo.”
***
não! não sou príncipe hamlet, nem era para ser
sou um nobre figurante, que vai só servir
pra inchar a comitiva, uma cena ou mais abrir,
aconselhar o príncipe, decerto, papel simples,
deferente, feliz por ser de auxílio,
sagaz, meticuloso e precavido;
cheio de frases feitas, mas meio perdido;
às vezes, até, quase ridículo –
às vezes, quase, o Tolo.
envelheço… envelheço…
vou dobrar as barras da minha calça eu mesmo.
ousarei comer um pêssego? reparto meu cabelo pra trás?
vou por calças de flanela branca e sair pra andar na praia.
ouvi o canto das sereias, e cantavam entre si.
não acho que elas vão cantar pra mim.
e as vi cortando as ondas para o mar
partindo as cãs das ondas para trás
quando o vento sopra as alvinegras águas.
passeamos nos palácios do oceano
co’ondinas coroadas de algas rubras
té que com humanas vozes despertando,
morramos afogados.
Para nossa melhor compreensão, lemos também no original, a buscar nas suas palavras a essência dos versos, a querer compreender o âmago do poema, a alma do poeta:
The Love Song of J. Alfred Prufrock
S’i credesse che mia risposta fosse
A persona che mai tornasse al mondo,
Questa fiamma staria senza più scosse.
Ma però che già mai di questo fondo
Non torno vivo alcun, s’i’odo il vero,
Sanza tema d’infamia ti rispondo.
(Dante Alighieri, La Divina Commedia, Inferno)
Let us go then, you and I,
When the evening is spread out against the sky
Like a patient etherized upon a table;
Let us go, through certain half-deserted streets,
The muttering retreats
Of restless nights in one-night cheap hotels
And sawdust restaurants with oyster-shells:
Streets that follow like a tedious argument
Of insidious intent
To lead you to an overwhelming question. . .
Oh, do not ask, “What is it?”
Let us go and make our visit.
In the room the women come and go
Talking of Michelangelo.
The yellow fog that rubs its back upon the window-panes
The yellow smoke that rubs its muzzle on the window-
panes
Licked its tongue into the corners of the evening
Lingered upon the pools that stand in drains,
Let fall upon its back the soot that falls from chimneys,
Slipped by the terrace, made a sudden leap,
And seeing that it was a soft October night
Curled once about the house, and fell asleep.
And indeed there will be time
For the yellow smoke that slides along the street,
Rubbing its back upon the window-panes;
There will be time, there will be time
To prepare a face to meet the faces that you meet;
There will be time to murder and create,
And time for all the works and days of hands
That lift and drop a question on your plate;
Time for you and time for me,
And time yet for a hundred indecisions
And for a hundred visions and revisions
Before the taking of a toast and tea.
In the room the women come and go
Talking of Michelangelo.
And indeed there will be time
To wonder, “Do I dare?” and, “Do I dare?”
Time to turn back and descend the stair,
With a bald spot in the middle of my hair –
[They will say: “How his hair is growing thin!”]
My morning coat, my collar mounting firmly to the chin,
My necktie rich and modest, but asserted by a simple pin–
[They will say: “But how his arms and legs are thin!”]
Do I dare
Disturb the universe?
In a minute there is time
For decisions and revisions which a minute will reverse.
For I have known them all already, known them all;
Have known the evenings, mornings, afternoons,
I have measured out my life with coffee spoons;
I know the voices dying with a dying fall
Beneath the music from a farther room.
So how should I presume?
And I have known the eyes already, known them all –
The eyes that fix you in a formulated phrase,
And when I am formulated, sprawling on a pin,
When I am pinned and wriggling on the wall,
Then how should I begin
To spit out all the butt-ends of my days and ways?
And how should I presume?
And I have known the arms already, known them all –
Arms that are braceleted and white and bare
[But in the lamplight, downed with light brown hair!]
Is it perfume from a dress
That makes me so digress?
Arms that lie along a table, or wrap about a shawl.
And should I then presume?
And how should I begin?
Shall I say, I have gone at dusk through narrow streets
And watched the smoke that rises from the pipes
Of lonely men in shirt-sleeves, leaning out of windows? . .
I should have been a pair of ragged claws
Scuttling across the floors of silent seas.
And the afternoon, the evening, sleeps so peacefully!
Smoothed by long fingers,
Asleep . . . tired . . . or it malingers,
Stretched on the floor, here beside you and me.
Should I, after tea and cakes and ices,
Have the strength to force the moment to its crisis?
But though I have wept and fasted, wept and prayed,
Though I have seen my head (grown slightly bald)
brought in upon a platter,
I am no prophet–and here’s no great matter;
I have seen the moment of my greatness flicker,
And I have seen the eternal Footman hold my coat, and
snicker,
And in short, I was afraid.
And would it have been worth it, after all,
After the cups, the marmalade, the tea,
Among the porcelain, among some talk of you and me,
Would it have been worth while,
To have bitten off the matter with a smile,
To have squeezed the universe into a ball
To roll it toward some overwhelming question,
To say: “I am Lazarus, come from the dead,
Come back to tell you all, I shall tell you all”
If one, settling a pillow by her head,
Should say, “That is not what I meant at all.
That is not it, at all.”
And would it have been worth it, after all,
Would it have been worth while,
After the sunsets and the dooryards and the sprinkled
streets,
After the novels, after the teacups, after the skirts that
trail along the floor –
And this, and so much more? –
It is impossible to say just what I mean!
But as if a magic lantern threw the nerves in patterns on
a screen:
Would it have been worth while
If one, settling a pillow or throwing off a shawl,
And turning toward the window, should say:
“That is not it at all,
That is not what I meant, at all.”
No! I am not Prince Hamlet, nor was meant to be;
Am an attendant lord, one that will do
To swell a progress, start a scene or two
Advise the prince; no doubt, an easy tool,
Deferential, glad to be of use,
Politic, cautious, and meticulous;
Full of high sentence, but a bit obtuse;
At times, indeed, almost ridiculous –
Almost, at times, the Fool.
I grow old . . . I grow old . . .
I shall wear the bottoms of my trousers rolled.
Shall I part my hair behind? Do I dare to eat a peach?
I shall wear white flannel trousers, and walk upon the
beach.
I have heard the mermaids singing, each to each.
I do not think they will sing to me.
I have seen them riding seaward on the waves
Combing the white hair of the waves blown back
When the wind blows the water white and black.
We have lingered in the chambers of the sea
By sea-girls wreathed with seaweed red and brown
Till human voices wake us, and we drown.
Em dos relatos sobre T. S. Eliot encontramos a seguinte análise:
O poema é considerado um dos mais belos poemas produzidos na literatura inglesa do século XX, “A Canção de Amor de J. Alfred Prufrock”, com as suas imagens floridas em uma densa agonia destilada em versos livres, a traduzir um angustiante estado da alma, complexa, com palavras sopradas como uma canção simbolista, rumando ao vazio.
T. S. Eliot escreveu o poema em 1912, numa época de marasmo que se seguiu aos novos costumes trazidos pela Revolução Industrial, e o período de conturbações que culminaria com o início da Primeira Guerra Mundial. “A Canção de Amor de J. Alfred Prufrock” só seria publicado pela primeira vez em 1915, na revista “Poetry”, e lançado no livro “Prufrock e Outras Observações”, em 1917, que trazia uma recolha de poemas do autor. Uma vez publicado, o poema deu uma outra visão à poesia inglesa que se espalhou pelo mundo.
O poema não deixa de ser uma canção de amor, bela e inquietante, que sopra sobre uma hesitação perene, os sentimentos parecem petrificados pela existência, oscilando entre o desejo e a estabilidade do tédio. As máscaras de Prufrock revelam-lhes os sentimentos e também o próprio T.S. Eliot.
A tradução do poema aqui apresentada é do português João Almeida Flor, que a designou como “uma ordem de construção musical”. Na transposição para a língua portuguesa, os versos ficaram maiores do que os do poema original. O tradutor preferiu estar atento aos ritmos sonoros e à musicalidade do poema.
O volume ‘Poesia’, das obras completas, tem tradução, introdução e notas do poeta Ivan Junqueira, carioca nascido em 1934, crítico literário e ensaísta, presidente da Academia Brasileira de Letras. Em páginas espelhadas, o livro apresenta os poemas de T.S. Eliot em inglês e português, em um dos trabalhos de tradução feitos no Brasil, fruto da dedicação de Ivan Junqueira a Eliot.
Nesse relato, acrescento o poema traduzido por Ivan Junqueira, para que possamos exercitar leitura comparativa de dois tradutores, dentre outros.
A canção de amor de J. Alfred Prufrock
S’io credesse che mia risposta fosse
A persona che mai tornasse al mondo,
Questa fiamma staria senza piu scosse.
Ma perciocche giammai di questo fondo
Non torno vivo alcun, s’i’odo il vero,
Senza tema d’infamia ti rispondo.
Dante Alighieri. Ladivina Commédia
Inferno, XXVII, 61-66 (N. do T.)
Sigamos então, tu e eu,
Enquanto o poente no céu se estende
Como um paciente anestesiado sobre a mesa;
Sigamos por certas ruas quase ermas,
Através dos sussurrantes refúgios
De noites indormidas em hotéis baratos,
Ao lado de botequins onde a serragem
Às conchas das ostras se entrelaça:
Ruas que se alongam como um tedioso argumento
Cujo insidioso intento
É atrair-te a uma angustiante questão . . .
Oh, não perguntes: “Qual?”
Sigamos a cumprir nossa visita.
No saguão as mulheres vêm e vão
A falar de Miguel Ângelo.
A fulva neblina que roça na vidraça suas espáduas,
A fumaça amarela que na vidraça seu focinho esfrega
E cuja língua resvala nas esquinas do crepúsculo,
Pousou sobre as poças aninhadas na sarjeta,
Deixou cair sobre seu dorso a fuligem das chaminés,
Deslizou furtiva no terraço, um repentino salto alçou,
E ao perceber que era uma tenra noite de outubro,
Enrodilhou-se ao redor da casa e adormeceu.
E na verdade tempo haver á
Para que ao longo das ruas flua a parda fumaça,
Roçando suas espáduas na vidraça;
Tempo haverá, tempo haverá
Para moldar um rosto com que enfrentar
Os rostos que encontrares;
Tempo para matar e criar,
E tempo para todos os trabalhos e os dias em que mãos
Sobre teu prato erguem, mas depois deixam cair uma questão;
Tempo para ti e tempo para mim,
E tempo ainda para uma centena de indecisões,
E uma centena de visões e revisões,
Antes do chá com torradas.
No saguão as mulheres vêm e vão
A falar de Miguel Ângelo.
E na verdade tempo haverá
Para dar rédeas à imaginação. “Ousarei” E . . “Ousarei?”
Tempo para voltar e descer os degraus,
Com uma calva entreaberta em meus cabelos
(Dirão eles: “Como andam ralos seus cabelos!”)
– Meu fraque, meu colarinho a empinar-me com firmeza o
queixo,
Minha soberba e modesta gravata, mas que um singelo alfinete
apruma
(Dirão eles: “Mas como estão finos seus braços e pernas! “)
– Ousarei
Perturbar o universo?
Em um minuto apenas há tempo
Para decisões e revisões que um minuto revoga.
Pois já conheci a todos, a todos conheci
– Sei dos crepúsculos, das manhãs, das tardes,
Medi minha vida em colherinhas de café;
Percebo vozes que fenecem com uma agonia de outono
Sob a música de um quarto longínquo.
Como então me atreveria?
E já conheci os olhos, a todos conheci
– Os olhos que te fixam na fórmula de uma frase;
Mas se a fórmulas me confino, gingando sobre um alfinete,
Ou se alfinetado me sinto a colear rente à parede,
Como então começaria eu a cuspir
Todo o bagaço de meus dias e caminhos?
E como iria atrever-me?
E já conheci também os braços, a todos conheci
– Alvos e desnudos braços ou de braceletes anelados
(Mas à luz de uma lâmpada, lânguidos se quedam
Com sua leve penugem castanha!)
Será o perfume de um vestido
Que me faz divagar tanto?
Braços que sobre a mesa repousam, ou num xale se enredam.
E ainda assim me atreveria?
E como o iniciaria?
…….
Diria eu que muito caminhei sob a penumbra das vielas
E vi a fumaça a desprender-se dos cachimbos
De homens solitários em mangas de camisa, à janela
debruçados?
Eu teria sido um par de espedaçadas garras
A esgueirar-me pelo fundo de silentes mares.
…….
E a tarde e o crepúsculo tão .docemente adormecem!
Por longos dedos acariciados,
Entorpecidos . . . exangues . . . ou a fingir-se de enfermos,
Lá no fundo estirados, aqui, ao nosso lado.
Após o chá, os biscoitos, os sorvetes,
Teria eu forças para enervar o instante e induzi-lo à sua crise?
Embora já tenha chorado e jejuado, chorado e rezado,
Embora já tenha visto minha cabeça (a calva mais cavada)
servida numa travessa,
Não sou profeta – mas isso pouco importa;
Percebi quando titubeou minha grandeza,
E vi o eterno Lacaio a reprimir o riso, tendo nas mãos meu
sobretudo.
Enfim, tive medo.
E valeria a pena, afinal,
Após as chávenas, a geléia, o chá,
Entre porcelanas e algumas palavras que disseste,
Teria valido a pena
Cortar o assunto com um sorriso,
Comprimir todo o universo numa bola
E arremessá-la ao vértice de uma suprema indagação,
Dizer: “Sou Lázaro, venho de entre os mortos,
Retorno para tudo vos contar, tudo vos contarei.”
– Se alguém, ao colocar sob a cabeça um travesseiro,
Dissesse: “Não é absolutamente isso o que quis dizer
Não é nada disso, em absoluto.”
E valeria a pena, afinal,
Teria valido a pena,
Após os poentes, as ruas e os quintais polvilhados de rocio,
Após as novelas, as chávenas de chá, após
O arrastar das saias no assoalho
– Tudo isso, e tanto mais ainda? –
Impossível exprimir exatamente o que penso!
Mas se uma lanterna mágica projetasse
Na tela os nervos em retalhos . . .
Teria valido a pena,
Se alguém, ao colocar um travesseiro ou ao tirar seu xale às
pressas,
E ao voltar em direção à janela, dissesse:
“Não é absolutamente isso,
Não é isso o que quis dizer, em absoluto.”
Não! Não sou o Príncipe Hamlet, nem pretendi sê-lo.
Sou um lorde assistente, o que tudo fará
Por ver surgir algum progresso, iniciar uma ou duas cenas,
Aconselhar o príncipe; enfim, um instrumento de fácil
manuseio,
Respeitoso, contente de ser útil,
Político, prudente e meticuloso;
Cheio de máximas e aforismos, mas algo obtuso;
As vezes, de fato, quase ridículo
Quase o Idiota, às vezes.
Envelheci . . . envelheci . . .
Andarei com os fundilhos das calças amarrotados.
Repartirei ao meio meus cabelos? Ousarei comer um
pêssego?
Vestirei brancas calças de flanela, e pelas praias andarei.
Ouvi cantar as sereias, umas para as outras.
Não creio que um dia elas cantem para mim.
Vi-as cavalgando rumo ao largo,
A pentear as brancas crinas das ondas que refluem
Quando o vento um claro-escuro abre nas águas.
Tardamos nas câmaras do mar
Junto às ondinas com sua grinalda de algas rubras e castanhas
Até sermos acordados por vozes humanas. E nos afogarmos.
Particularmente, preferí a tradução de Ivan Junqueira. A sensação que me passa o poema, considerando o contexto da época, a idade do poeta, 24 anos, já terminado os estudos em Harvard, é que o poeta fala de si mesmo e seus sonhos de emigrar, voltar à Inglaterra e lá morar, ali plantava e germinavam as sementes do seu futuro, com todos os questionamentos e revisões que uma decisão dessas traz a qualquer pessoa. A sua ousadia o fez merecedor dos louros como poeta, até mesmo um prêmio Nobel!
Em relação à biografia de T. S. Eliot, encontramos diversos relatos:
Thomas Stearns Eliot nasceu em St. Louis, Estados Unidos, a 26 de setembro de 1888. Mudou-se para a Inglaterra aos 25 anos, em 1914.Em 1927, aos 39 anos, tornou-se cidadão britânico, e como tal, tornou-se um dos maiores representantes do modernismo britânico, sendo um dos seus principais poeta e dramaturgo.
A poesia de T. S. Eliot revela uma originalidade profunda e singular, repleta de muitas influências, entre elas a dos simbolistas franceses. Ao ler o livro “The Symbolist Movement in Literature”, de Arthur Symons, revelou-se-lhe uma grande influência, que culminaria com a poesia de Laforgue. Os estudos de filosofia auxiliaram o escritor a ter uma sensível concepção metafísica, ligando assim as palavras e idéias a objetos singulares, traduzindo-as em linguagem falada.
T. S. Eliot rompeu com a tradição poética do século XIX. Os temas da sua obra eram o vazio, a penitência, a redenção, a futilidade da existência, a angústia, a incerteza do tédio e a morte.
O escritor recebeu o prêmio Nobel de literatura em 1948.
Era um homem angustiado com o tédio, um denso propagador da desolação vincada pelas palavras livres, límpidas em seus símbolos.
Morreu em Londres, em janeiro de 1965.
Uma biografia com mais detalhes podemos encontrar nos links abaixo:
Os Eliot… – Veja mais em https://educacao.uol.com.br/biografias/t-s-eliot.htm?cmpid=copiaecola . Em inglês, https://www.poetryfoundation.org/poets/t-s-eliot
Seguiu-se ao momento poético, não menos surpreendente, à leitura de um conto escrito pelo viageiro Sarmento, atual, denso e ao mesmo tempo muito divertido, com duas versões (a) e (b), que nos dois primeiros parágrafos se igualavam, após o que seguiam caminhos diversos e dois finais, que para culminar, ficavam em aberto!
Se o mar parecia agitado, então se formaram torvelinhos…
A questionar e comentar o conto de Osvaldo Sarmento, todos viramos críticos, ensaístas além de leitores apaixonados que somos, o calor do tema nos tomando na leitura/discussão. Sarmento, com sabedoria e bom humor, entremeou em seu conto temas da atualidade: questões de gênero, nominação politicamente correta, movimentos sociais e feminista, casamento, encontros e desencontros, nova sexualidade. Foi prazerosa a leitura e muito rica a discussão.
Seguem os dois primeiros parágrafos (o final/os finais, estão em revisão e posteriormente serão relidos, para nova prazerosa tarde na Oficina):
O DILEMA DE PUREZA (b)
Osvaldo Sarmento
A movimentação pré-carnavalesca seguia animada, intensa, mas um tanto repetitiva. Os meios de comunicação da cidade não poupavam espaço para as obviedades de sempre: os dias, a ordem e o roteiro do desfile das agremiações, a quantidade de casas no centro da fuzarca ainda disponível para aluguel, as verbas da prefeitura para o evento e assim por diante. Foi então que se soube da grande novidade e seu aparente desfecho. Acontecera que o “Nem um Direito a Menos”, proclamado como o mais radical dos movimentos feministas, havia encaminhado, semanas atrás, à diretoria do bloco “O Garanhão e a Piranha da Meia Noite”, mais conhecido por Garapira, uma demanda enérgica, e ao mesmo tempo discreta, a ponto de passar despercebida inicialmente pelos jornalistas. Exigia que fosse mudado imediatamente o nome do bloco. A justificativa apoiava-se na palavra “piranha” que, segundo o ponto de vista da presidente do movimento, buscava desmerecer e estigmatizar as profissionais do sexo, indo, por consequência, de encontro a uma de suas bandeiras. Outra reivindicação menos contundente era quanto à ordem dos gêneros: “Por que sempre “o garanhão e a piranha”, ao invés de “a piranha e o garanhão”? Já era tempo de as mulheres – até pela sua importância na história da humanidade – serem citadas em primeiro lugar. Ontem o pedido havia sido negado, sem maiores justificativas e, segundo a presidente, em tom de galhofa.
Longe dali, no outro lado da cidade, Pureza reflete mais uma vez sobre seu casamento de apenas dois anos. Os quatro primeiro meses foram ótimos. A maioria das posições do Kama Sutra foram praticadas, algumas exigiam uma condição atlética além dos limites do casal. Aprendeu todas as “modernidades” do sexo. Depois, a rotina. Há pouco, ouvira falar de coisas como o tal do “swing”, do ménage à trois, à quatre ou même à cinq, que poderiam apimentar e até recuperar uma relação desgastada. Achou que não havia abertura suficiente para conversar sobre isso com o agora circunspecto marido. O fato é que a paixão se fora e, para piorar a situação, não conseguia encontrar qualquer fiapo que lhe prendesse ao marido. Nem um filho, nem nada.
Escarafunchando baús encontrei fragmentos de viagens pelos mares das palavras que, embora amarfanhados, permaneciam registros vivos, pulsantes, de grandes momentos vividos.
Uma delas foi a de 15 de abril quando Paulo Tadeu, viageiro de longas datas, nos levou a poeta portuguesa Florbela Espanca com o poema Tarde no Mar.
Tarde no Mar Florbela Espanca
A tarde é de oiro rútilo: esbraseia
O horizonte: um cacto purpurino.
E a vaga esbelta que palpita e ondeia,
Com uma frágil graça de menino,
Poisa o manto de arminho na areia
E lá vai, e lá segue ao seu destino!
E o sol, nas casas brancas que incendeia.
Desenha mãos sangrentas de assassino!
Que linda tarde aberta sobre o mar!
Vai deitando do céu molhos de rosas
Que Apolo se entretém a desfolhar…
E, sobre mim, em gestos palpitantes,
As tuas mãos morenas, milagrosas,
São as asas do sol, agonizantes…
Este vídeo fala de Florbela Espanca, da sua importância para o mundo literário, dos problemas emocionais que culminaram com o seu suicídio ao 36 anos de idade, apenas.
Em seguida, como era uma semana para nós cristãos de muito siso e pouco riso, dirigimos o leme para o Uruguai e ali escolhemos um roteiro mais denso. Começamos com o conto O Outro Eu, de Mario Benedetii, que numa narrativa breve, eu diria até brevíssima, extremamente interessante, trouxe mais uma vez, à Oficina, a questão do duplo, tão intensamente analisada quando lemos Wilson, Wilson, de Edgar Alan Poe.
O Outro Eu
(A morte e outras surpresas, 1968)
Mário Benedetti
Tratava-se de um rapaz comum: usava calças da moda, lia gibis, fazia barulho enquanto comia, cutucava o nariz com o dedo, roncava durante a soneca, se chamava Armando Corrente em tudo menos em uma coisa: tinha um Outro Eu.
O Outro Eu usava certa poesia no olhar, se apaixonava pelas atrizes, mentia cautelosamente, se emocionava com o entardecer. O rapaz se preocupava muito com seu Outro Eu e o fazia se sentir incomodado diante de seus amigos. Já o Outro Eu era melancólico e, por causa disso, Armando não podia ser tão vulgar quanto desejava.
Uma tarde Armando chegou cansado do trabalho, tirou os sapatos, moveu lentamente os dedos dos pés e ligou o rádio. Estava tocando Mozart, mas o rapaz dormiu. Quando acordou, o Outro Eu chorava desconsoladamente. Em um primeiro momento, o rapaz não soube o que fazer, mas depois se refez e conscientemente insultou o Outro Eu. Este não disse nada, mas na manhã seguinte já havia se matado.
No começo, a morte do Outro Eu foi um duro golpe para o pobre Armando, mas depois ele pensou que agora sim poderia ser inteiramente vulgar. Esse pensamento o reconfortou.
Levava apenas cinco dias de luto quando saiu pelas ruas com o propósito de exibir sua nova e completa vulgaridade. De longe viu que seus amigos se aproximavam. Isso o encheu de felicidade e o fez imediatamente explodir em risadas. Entretanto, quando passaram próximo dele, seus amigos não notaram sua presença. Para piorar, o rapaz pôde escutar que comentavam: “Pobre Armando. E pensar que parecia tão forte e saudável”.
O rapaz não teve outro remédio que parar de rir e, ao mesmo tempo, sentiu na altura do peito uma aflição que se parecia muito a nostalgia. Mas ele não pôde sentir uma autêntica melancolia, porque toda a melancolia tinha sido levada pelo Outro Eu.
A viagem seguinte foi pelo quarto de Sútulin, na Rússia, que ao aplicar o conteúdo de uma bisnaguinha escura, fininha, em seu quarto, começou a vê-lo crescer, crescer, de forma incontrolável. Trata-se de um conto de Sigismund Krzyanowski, que permaneceu quase toda a sua vida sem ser reconhecido, cuja narrativa bem se enquadra no fantástico maravilhoso hiperbólico, segundo Todorov, em que o exagero das dimensões daquele quarto vão criando tensão, asfixiando o leitor, apesar de consciente de sua irrealidade. Fantástico! Alguns vídeos e filmes foram feitos baseados nesse conto. Aqui está um deles, excelente.
*João Gratuliano como primeiro oficial ad hoc no comando da nau por motivo de doença da capitã.
Todo ditado popular tem sua sabedoria, e quando os gatos saem, os ratos fazem a festa não foge à regra. Sem a capitã, nosso quebra gelo foi um pouco mais prolongado. A tripulação esteve um pouco reduzida, mas quando já estavam Salete, Anita, Adelaide, Sarmento, Everaldo Júnior, Paulo, eu e as irmãs Cajazeiras, digo, Portela, nosso viageiro Everaldo Júnior falou de um texto escrito por Freud sobre a transitoriedade, que surgiu de um passeio do mestre da psicanálise com dois amigos (que os historiadores dizem ter sido Rilke e Lou Andreas Salomé) por uns campos sorridentes.
.Eis o texto:
8. SOBRE A TRANSITORIEDADE (1916 [1915])
VERGÄNGLICHKEIT
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:1916 Em Das Land Goethes 1914-1916. Stuttgart: Deutsche Verlagsanstalt. Pág. 37-8.1926 Almlanach 1927, 39-42.
1928 G.S., 11, 291-4.1946 G.W., 10, 358-61.
(b) TRADUÇÃO INGLESA:‘On Transience’1942 Int. J. Psycho-Anal., 23 (2), 84-5. (Trad. de James Strachey.)1950 C.P., 5, 79-82. (Mesmo tradutor.)
A presente tradução inglesa é uma reimpressão ligeiramente alterada da que foi publicada em 1950.
Este ensaio foi escrito em novembro de 1915, a convite da Berliner Goetherbund (Sociedade Goethe de Berlim) para um volume comemorativo lançado no ano seguinte sob o título de Das Land Goethes (O País de Goethe). Esse volume, produzido com esmero, enfeixava grande número de contribuições de autores e artistas conhecidos, passados e atuais, como von Bülow, von Brentano, Ricardo Huch, Hauptmann e Liebermann. O original alemão (exceto o quadro que apresenta dos sentimetnos de Freud sobre a guerra, que estava então em seu segundo ano) constitui excelente prova de seus poderes literários. É interessante notar que o ensaio abrange um enunciado da teoria do luto contido em ‘Luto e Melancolia’ (1971e), que Freud escrevera alguns meses antes, mas que só foi publicado dois anos depois.
SOBRE A TRANSITORIEDADE
Não faz muito tempo empreendi, num dia de verão, uma caminhada através de campos sorridentes na companhia de um amigo taciturno e de um poeta jovem mas já famoso. O poeta admirava a beleza do cenário à nossa volta, mas não extraía disso qualquer alegria. Perturbava-o o pensamento de que toda aquela beleza estava fadada à extinção, de que desapareceria quando sobreviesse o inverno, como toda a beleza humana e toda a beleza e esplendor que os homens criaram ou poderão criar. Tudo aquilo que, em outra circunstância, ele teria amado e admirado, pareceu-lhe despojado de seu valor por estar fadado à transitoriedade.
A propensão de tudo que é belo e perfeito à decadência, pode, como sabemos, dar margem a dois impulsos diferentes na mente. Um leva ao penoso desalento sentido pelo jovem poeta, ao passo que o outro conduz à rebelião contra o fato consumado. Não! É impossível que toda essa beleza da Natureza e da Arte, do mundo de nossas sensações e do mundo externo, realmente venha a se desfazer em nada. Seria por demais insensato, por demais pretensioso acreditar nisso. De uma maneira ou de outra essa beleza deve ser capaz de persistir e de escapar a todos os poderes de destruição.
Mas essa exigência de imortalidade, por ser tão obviamente um produto dos nossos desejos, não pode reivindicar seu direito à realidade; o que é penoso pode, não obstante, ser verdadeiro. Não vi como discutir a transitoriedade de todas as coisas, nem pude insistir numa exceção em favor do que é belo e perfeito. Não deixei, porém, de discutir o ponto de vista pessimista do poeta de que a transitoriedade do que é belo implica uma perda de seu valor.
Pelo contrário, implica um aumento! O valor da transitoriedade é o valor da escassez no tempo. A limitação da possibilidade de uma fruição eleva o valor dessa fruição. Era incompreensível, declarei, que o pensamento sobre a transitoriedade da beleza interferisse na alegria que dela derivamos. Quanto à beleza da Natureza, cada vez que é destruída pelo inverno, retorna no ano seguinte, do modo que, em relação à duração de nossas vidas, ela pode de fato ser considerada eterna. A beleza da forma e da face humana desaparece para sempre no decorrer de nossas próprias vidas; sua evanescência, porém, apenas lhes empresta renovado encanto. Um flor que dura apenas uma noite nem por isso nos parece menos bela. Tampouco posso compreender melhor por que a beleza e a perfeição de uma obra de arte ou de uma realização intelectual deveriam perder seu valor devido à sua limitação temporal. Realmente, talvez chegue o dia em que os quadros e estátuas que hoje admiramos venham a ficar reduzidos a pó, ou que nos possa suceder uma raça de homens que venha a não mais compreender as obras de nossos poetas e pensadores, ou talvez até mesmo sobrevenha uma era geológica na qual cesse toda vida animada sobre a Terra; visto, contudo, que o valor de toda essa beleza e perfeição é determinado somente por sua significação para nossa própria vida emocional, não precisa sobreviver a nós, independendo, portanto, da duração absoluta.
Essas considerações me pareceram incontestáveis, mas observei que não causara impressão quer no poeta quer em meu amigo. Meu fracasso levou-me a inferir que algum fator emocional poderoso se achava em ação, perturbando-lhes o discernimento, e acreditei, depois, ter descoberto o que era. O que lhes estragou a fruição da beleza deve ter sido uma revolta em suas mentes contra o luto. A idéia de que toda essa beleza era transitória comunicou a esses dois espíritos sensíveis uma antecipação de luto pela morte dessa mesma beleza; e, como a mente instintivamente recua de algo que é penoso, sentiram que em sua fruição de beleza interferiam pensamentos sobre sua transitoriedade.
O luto pela perda de algo que amamos ou admiramos se afigura tão natural ao leigo, que ele o considera evidente por si mesmo. Para os psicólogos, porém, o luto constitui um grande enigma, um daqueles fenômenos que por si sós não podem ser explicados, mas a partir dos quais podem ser rastreadas outras obscuridades. Possuímos, segundo parece, certa dose de capacidade para o amor – que denominamos de libido – que nas etapas iniciais do desenvolvimento é dirigido no sentido de nosso próprio ego. Depois, embora ainda numa época muito inicial, essa libido é desviada do ego para objetos, que são assim, num certo sentido, levados para nosso ego. Se os objetos forem destruídos ou se ficarem perdidos para nós, nossa capacidade para o amor (nossa libido) será mais uma vez liberada e poderá então ou substituí-los por outros objetos ou retornar temporariamente ao ego. Mas permanece um mistério para nós o motivo pelo qual esse desligamento da libido de seus objetos deve constituir um processo tão penoso, até agora não fomos capazes de formular qualquer hipótese para explicá-lo. Vemos apenas que a libido se apega a seus objetos e não renuncia àqueles que se perderam, mesmo quando um substituto se acha bem à mão. Assim é o luto.
Minha palestra com o poeta ocorreu no verão antes da guerra. Um ano depois, irrompeu o conflito que lhe subtraiu o mundo de suas belezas. Não só destruiu a beleza dos campos que atravessava e as obras de arte que encontrava em seu caminho, como também destroçou nosso orgulho pelas realizações de nossa civilização, nossa admiração por numerosos filósofos e artistas, e nossas esperanças quanto a um triunfo final sobre as divergências entre as nações e as raças. Maculou a elevada imparcialidade da nossa ciência, revelou nossos instintos em toda a sua nudez e soltou de dentro de nós os maus espíritos que julgávamos terem sido domados para sempre, por séculos de ininterrupta educação pelas mais nobres mentes. Amesquinhou mais uma vez nosso país e tornou o resto do mundo bastante remoto. Roubou-nos do muito que amáramos e mostrou-nos quão efêmeras eram inúmeras coisas que consideráramos imutáveis.
Não pode surpreender-nos o fato de que nossa libido, assim privada de tantos dos seus objetos, se tenha apegado com intensidade ainda maior ao que nos sobrou, que o amor pela nossa pátria, nossa afeição pelos que se acham mais próximos de nós e nosso orgulho pelo que nos é comum, subitamente se tenham tornado mais vigorosos. Contudo, será que aqueles outros bens, que agora perdemos, realmente deixaram de ter qualquer valor para nós por se revelarem tão perecíveis e tão sem resistência? Isso parece ser o caso de muitos de nós; só que, na minha opinião, mais uma vez, erradamente. Creio que aqueles que pensam assim, de e parecem prontos a aceitar uma renúncia permanente porque o que era precioso revelou não ser duradouro, encontram-se simplesmente num estado de luto pelo que se perdeu. O luto, como sabemos, por mais doloroso que possa ser, chega a um fim espontâneo. Quando renunciou a tudo que foi perdido, então consumiu-se a si próprio, e nossa libido fica mais uma vez livre (enquanto ainda formos jovens e ativos) para substituir os objetos perdidos por novos igualmente, ou ainda mais, preciosos. É de esperar que isso também seja verdade em relação às perdas causadas pela presente guerra. Quando o luto tiver terminado, verificar-se-á que o alto conceito em que tínhamos as riquezas da civilização nada perdeu com a descoberta de sua fragilidade. Reconstruiremos tudo o que a guerra destruiu, e talvez em terreno mais firme e de forma mais duradoura do que antes.
Em seguida surgiu um debate sobre a mulher. Sobre o seu papel e as dificuldades numa sociedade ocidental machista. Tínhamos uma artigo para ler sobre o conto Hoje de Madrugada de Raduan Nassar, segundo Anita, um dos contos mais impactantes que ela já leu ultimamente. E segundo Adelaide, “Um sopapo escrito e narrado por um homem que percebe os meandros da alma feminina e do que magoa e sabe como narrá-lo. (…) Erótico implícito.”
Como nem todos haviam lido o conto, não vou denunciar quem fui que não leu, então resolvemos relê-lo. E seguiram-se os comentários sobre o conto e de como cada um tinha sido impactado por ele. Com isso não havia mais tempo para ler o artigo e deixamos para o próximo encontro. Não sei se foi só isso, mas sei que foi assim.
Segue o Conto de Raduan Nassar lido:
Hoje de Madrugada
Raduan Nassar
O que registro agora aconteceu hoje de madrugada quando a porta do meu quarto de trabalho se abriu mansamente, sem que eu notasse. Ergui um instante os olhos da mesa e encontrei os olhos perdidos da minha mulher. Descalça, entrava aqui feito ladrão. Adivinhei logo seu corpo obsceno debaixo da camisola, assim como a tensão escondida na moleza daqueles seus braços, enérgicos em outros tempos. Assim que entrou, ficou espremida ali ao canto; me olhando. Ela não dizia nada, eu não dizia nada. Senti num momento que minha mulher mal sustentava a cabeça sob o peso de coisas tão misturadas, ela pensando inclusive que .me atrapalhava nessa hora absurda em que raramente trabalho, eu que não trabalhava. Cheguei a pensar que dessa vez ela fosse desabar, mas continuei sem dizer nada, mesmo sabendo que qualquer palavra desprezível poderia quem sabe tranquilizá-la. De olhos sempre baixos, passei a rabiscar ao verso de uma folha usada, e continuamos os dois quietos: ela acuada ali no canto, os olhos em cima de mim; eu aqui na mesa, meus olhas em cima do papel que eu rabiscava. De permeio, um e outro estalido na madeira do assoalho.
Não me mexi na cadeira quando percebi que minha mulher abandonava o seu canto, não ergui os olhos quando vi sua mão apanhar o bloco de rascunho que tenho entre meus papéis. Foi uma caligrafia rápida e nervosa; foi una frase curta que ela escreveu, me empurrando o bloco todo, sem destacar a folha, para o foco dos meus olhos: “vim em busca de amor” estava escrito, e em cada letra era fácil de ouvir o grito de socorro. Não disse nada, não fiz um movimento, continuei com os olhos pregados na mesa. ?Mas logo pude ver sua mão pegar de novo o bloco e quase em seguida me devolvê-lo aos olhos: “responda” ela tinha escrito mais embaixo numa letra desesperada, era um gemido. Fiquei um tempo sem me mexer, mesmo sabendo que ela sofria, que pedia em súplica, que mendigava afeto. Tentei arrumar (foi um esforço) sua imagem remota, iluminada; provocadoramente altiva, e que agora expunha a nuca a um golpe de misericórdia. E ali, do outro lado da mesa, minha mulher apertava as mãos, e esperava. Interrompi o rabisco e escrevi sem pressa: “não tenho afeto para dar”, não cuidando sequer de lhe empurrar o bloco de volta, mas nem foi preciso, sua mão, com a avidez de um bico, se lançou sobre o grão amargo que eu, num desperdício, deixei escapar entre meus dedos. Mantive os olhos baixos, enquanto ela deitava o bloco na mesa com calma e zelo surpreendentes, era assim talvez que ela pensava refazer-se do seu ímpeto.
Não demorou, minha mulher deu a volta na mesa e logo senti sua sombra atrás da cadeira, e suas unhas no dorso do meu pescoço, me roçando as orelhas de passagem, raspando o meu couro, seus dedos trêmulos me entrando pelos cabelos desde a nuca. Sem me virar, subi o braço, fechei minha mão ao alto, retirando sua mão dali como se retirasse um objeto corrompido, mas de repente frio, perdido entre meus cabelos. Desci lentamente nossas mãos até onde chegava o comprimento do seu braço, e foi nessa altura que eu, num gesto claro, abandonei sua mão no ar. A sombra atrás de mim se deslocou, o pano da camisola esboçou um voo largo, foi num só lance para a janela, tinha até verdade naquela ponta de teatralidade. Mas as venezianas estavam fechadas, ela não tinha o que ver, nem mesmo através das frinchas, a madrugada lá fora ainda ressonava. Espreitei um instante: minha mulher estava de costas, a mão suspensa na boca, mordia os dedos.
Quando ela veio da janela, ficando de novo à minha frente, do outro lado da mesa, não me surpreendi com o laço desfeito do decote, nem com os seios flácidos tristemente expostos, e nem com o traço de demência lhe pervertendo a cara. Retomei o rabisco enquanto ela espalmava as mãos na superfície, e, debaixo da mesa, onde eu tinha os pés descalços na travessa, tampouco me surpreendi com a artimanha do seu pé, tocando com as pontas dos dedos a sola do meu, sondando clandestino minha pele no subsolo. Mais seguro, próspero, devasso, seu pé logo se perdeu sob o pano do meu pijama, se esfregando na densidade dos meus pelos, subindo afoito, me lambendo a perna feito uma chama. Fiz a tentativa com vagar, seu pé de início se atracou voluntarioso na barra, e brigava, resistia, mas sem pressa me desembaracei dele, recolhendo meus próprios pés que cruzei sob a cadeira. Voltei a erguer os olhos, sua postura, ainda que eloquente, era de pedra: a cabeça jogada em arremesso para trás, os cabelos escorridos sem tocar as costas, os olhos cerrados; dois frisos úmidos e brilhantes contornando o arco das pálpebras; a boca escancarada, e eu não minto quando digo que não eram os lábios descorados, mas seus dentes é que tremiam.
Numa arrancada súbita, ela se deslocou quase solene em direção à porta; logo freando porém o passo. E parou. Fazemos muitas paradas na vida, mas supondo-se que aquela não fosse uma parada qualquer, não seria fácil descobrir o que teria interrompido o seu andar. Pode ser simplesmente que ela se remetesse então a uma tarefa trivial a ser cumprida quando o dia clareasse. Ou pode ser também que ela não entendesse a progressiva escuridão que se instalava para sempre em sua memória. Não importa que fosse por esse ou aquele motivo, só sei que, passado o instante de suposta reflexão minha mulher, os ombros caídos, deixou o quarto feito sonâmbula.
O texto acima foi extraído dos “Cadernos de Literatura Brasileira”, Instituto Moreira Salles – Rio de Janeiro, exemplar número 2 de setembro de 1996, pág. 56.
João Gratuliano é contista, ensaísta, poeta, crítico literário.
O viageiro Sarmento, no Momento Poético, relembrou um passado que não passou e que continua muito vivo ainda em nossas lembranças, com a poesia Operário em Construção, de Vinicius de Moraes. Certamente este poema, parafraseando o próprio poeta, será imortal enquanto dure, enquanto dure a exploração do homem pelo próprio homem, eu acrescentaria.
O operário de construção, semelhante a um pássaro sem asas, subia com as casas que lhe brotavam das mãos. Estávamos vivendo um Brasil ditatorial cruel que não permitia –aos operários/povo- reconhecer o valor do seu trabalho. Vinicius mostra esse desconhecimento ao dizer: Como podia o operário compreender porque um tijolo valia mais que um pão? Como também desconhecia que o operário faz a coisa e a coisa faz o operário. Os ditadores não conseguiram impedir que pelas mãos desse humilde operário nascesse um mundo novo, adquirindo a dimensão da poesia que ia aos poucos sendo derramada nos corações dos outros operários. E o operário disse NÃO! Um não que custou a ele e seus companheiros bárbaros tratamentos, pau de arara, choque elétrico, morte, sem direito à família de velar o seu defunto, restando a esperança de que novos tempos viriam. Muitas águas passaram por debaixo da ponte, mas a violência não conseguiu que o operário deixasse de enxergar, de agigantar-se, vendo em tudo que fazia o que de fato acontecia: o lucro do patrão. Neste poema, Vinicius descreve o processo de tomada de consciência do operário, partindo do pressuposto marxista de alienação.
O OPERÁRIO EM CONSTRUÇÃO
(Rio de Janeiro,1959)
Vinicius de Moraes
E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo:
– Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu.
E Jesus, respondendo, disse-lhe:
– Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.
Lucas, cap. V, vs. 5-8.
Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.
De fato, como podia
Um operário em construção
Compreender por que um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia…
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento
Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse, eventualmente
Um operário em construção.
Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
– Garrafa, prato, facão –
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.
Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.
Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
– Exercer a profissão –
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.
E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.
E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Que sempre dizia sim
Começou a dizer não.
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:
Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uísque do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.
E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução.
Como era de se esperar
As bocas da delação
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão.
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação
– “Convençam-no” do contrário –
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isso sorria.
Dia seguinte, o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu, por destinado
Sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!
Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras se seguiram
Muitas outras seguirão.
Porém, por imprescindível
Ao edifício em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.
Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário.
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
– Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.
Disse, e fitou o operário
Que olhava e que refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
O operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!
– Loucura! – gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
– Mentira! – disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.
E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão.
Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção.
Nem precisa ser muito ligado em literatura para gostar do diplomata, jornalista, compositor (dos bons), poeta Marcus Vinicius de Mello Moraes, ou Vinicius de Moraes, como era mais conhecido, ou simplesmente poetinha, como o chamava Tom Jobim. Era como poeta e compositor, através de sonetos e de canções, que ele gostava de ser reconhecido. Carioca da gema, sessenta e seis anos vividos intensamente, casou nove vezes, era um boêmio curtindo a vida carioca com cigarro e uísque.
É difícil elencar a obra deste gênio brasileiro, por isso escolhemos citar trechos de algumas delas para ilustrar a poesis do branco mais preto do Brasil
Soneto da fidelidade
De tudo ao meu amor serei atento
Que ele seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure
Samba da benção
È melhor ser alegre que ser triste
A alegria é a melhor coisa que existe
Mas pra se fazer um samba com beleza
é preciso um bocado de tristeza
Se não, não se faz um samba não
A vida é arte do encontro
Embora exista tantos desencontros pela vida
Cantos de Ossanha
Não vou eu não sou ninguém de ir
Em conversas de esquecer a tristeza
De um amor que passou
Não eu sou vou se for pra ver
Uma estrela aparecer
Na manhã de um novo amor
Rosa de Hiroschima
A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa, sem nada
Onde anda você
E por falar em saudade
Onde anda você
Onde andam seus olhos que a gente não vê
Minha namorada
Mais se em vez minha namorada
Você quer ser minha amada
Minha amada, mais amada pra valer
Aquela amada pelo amor predestinada
Sem a qual a vida é nada
Sem a qual se quer morrer
Garota do Ipanema
Vejam que coisa mais linda
Mais cheia de graça
é ela menina
que vem e que passa
no doce balanço
A caminho do mar
Samba em preludio
Eu sem você não tenho nem porque
Porque sem você
Não sei nem chorar
Sou chama sem luz
Jardim sem luar
Sarmento continuou alimentando o grupo sedento de poesia, dessa feita com os poemas de Geir Campos, Tarefa e Alba, seguindo a mesma trilha de poesia de denúncia social, poesia comprometida politico e socialmente.
Tarefa
Morder o fruto amargo e não cuspir
mas avisar aos outros quanto é amargo,
cumprir o trato injusto e não falhar
mas avisar aos outros quanto é injusto,
sofrer o esquema falso e não ceder
mas avisar aos outros quanto é falso;
dizer também que são coisas mutáveis…
E quando em muitos a noção pulsar
— do amargo e injusto e falso por mudar —
então confiar à gente exausta o plano
de um mundo novo e muito mais humano.
(1957)
**Alba
Não faz mal que amanheça devagar,
as flores não têm pressa nem os frutos:
sabem que a vagareza dos minutos
adoça mais o outono por chegar.
Portanto não faz mal que devagar
o dia vença a noite em seus redutos
de leste – o que nos cabe é ter enxutos
os olhos e a intenção de madrugar.
(1957)
O poeta Geir Canpos é capixaba, membro do partido comunista, engajado nas lutas políticas e sociais., formado em Teatro e Doutor em Comunicação Social. Talvez por suas posições políticas foi pouco difundido pela mídia. Poeta, livreiro, tradutor, faz parte dos poetas da chamada geração 45, destacava-se pelo rigor literário e estético.. Foi um dos fundadores da editora Hipocampo, junto com o poeta Thiago de Melo, para difundir suas obras de forma artesanal. Marcou presença também como um dos organizadores dos Cadernos do Povo Brasileiro, Violão de Rua, publicados pelo Centro Popular de Cultura da UNE.
. “A poesia de Geir Campos tem circulação, ousadia e canto. Ninguém pode equivocar-se: aproximando o ouvido, sentimo-la como um rumor de cristal errante, sentido e som da poesia verdadeira.” (Pablo Neruda)
**Alba significado: Claridade que precede ao nascer do dia
Seguindo com a Oficina, outro pilar dos trabalhos foi iniciado com a leitura dos contos escritos pelos seus participantes, os viageiros pelos mares das palavras. Três contos estavam previstos para serem lidos, sendo seus autores eu, Salete e Eleta. A Oficina procura estimular a criatividade e o exercício da lapidação das palavras, para que os viageiros se tornem artesãos da escrita. trabalhando técnicas de ensaio, contos, novelas ou outras, sobre temas acordados entre seus pares. Neste dia o tema foi o do triangulo amoroso, com o constrangimento da duplicação, em que uma história estaria sendo contada e outra estava ocorrendo ao mesmo tempo, tão ou mais importante do que a primeira. A ideia do constrangimento decorre da concepção Oulipiana de limitar a escrita a alguma condição anterior.
Iniciando a leitura dos contos por mim, Luzia, com o conto Corações na Bananeira, que gerou um debate profundo sobre a construção do tema, entendimento dos personagens, linguagem poética, ortografia, gramatica, ineditismo.O tempo da oficina esgotou-se sem as demais leituras programadas e sem a conclusão da análise do meu conto. Por conta disso, algumas sugestões foram apontadas para maximizar o tempo para as análises das narrativas, entre elas, a da leitura antecipada, cada participante traria a sua análise para que melhor fosse aproveitado esse importante momento literário.
Registro de nosso encontro em 15 de fevereiro de 2017 por Juan Rulfo, digo, Gratuliano.
Vim a oficina porque me disseram que aqui vivia uma musa, uma tal de literatura. Minha amiga me disse.
Aquele era o tempo do verão, quando o ar de fevereiro sopra quente, envenenado pelo odor apodrecido dos esgotos do Recife. No portão Lu me recebeu com seu cordial boa tarde. Estou aqui esperando dona Lurdinha, para ajudar com as sacolas. Ela vem sempre tão carregada. A porta está aberta. Pode entrar.
Agora eu estava aqui, nesta sala ainda sem os risos. Ouvia meus passos caírem sobre a cerâmica que empedrava o chão. Meus passos ocos, repetindo seu som no eco das paredes tingidas pelo cartazes de seminários do Traço.
Naquela hora, fui andando para o meu lugar. Olhei as cadeiras vazias; apenas quatro estavam ocupadas: Everaldo, Eleta, Cacilda e Salete. Uma bolsa feminina indicava que mais alguém estaria por ali e não tardou para que Anita aparecesse com sua elegância habitual.
Lourdes telefonou nos autorizando a começar a leitura das poesias. Como era mesmo o nome daquele fulano que Eleta nos apresentou? Walt Whitman! Sim, esse senhor um tanto barbudo, que bem poderia ser Pedro Páramo…
Walt Whitman (Huntington, 31 de maio de 1819 – Camden, 26 de março de 1892) foi um poeta, ensaísta e jornalista norte-americano, considerado por muitos como o “pai do verso livre”. Paulo Leminski o considerava o grande poeta da Revolução americana, como Maiakovsky seria o grande poeta da Revolução russa.
Eleta fez uma bela introdução sobre o escritor. E lemos dois poemas curtos:
A um Estranho
Estranho que passa! você não sabe com quanta saudade eu lhe olho,
Você deve ser aquele a quem procuro, ou aquela a quem procuro, (isso me vem, como em um sonho,)
Vivi com certeza uma vida alegre com você em algum lugar,
Tudo é relembrado neste relance, fluído, afeiçoado, casto, maduro,
Você cresceu comigo, foi um menino comigo, ou uma menina comigo,
Eu comi com você e dormi com você – seu corpo se tornou não apenas seu, nem deixou o meu corpo somente meu,
Você me deu o prazer de seus olhos, rosto, carne, enquanto passamos – você tomou de minha barba, peito, mãos, em retorno,
Eu não devo falar com você – devo pensar em você quando sentar-me sozinho, ou acordar sozinho à noite,
Eu devo esperar – não duvido que lhe reencontrarei,
Eu devo garantir que não irei lhe perder.
To a Stranger
Passing stranger! you do not know how longingly I look upon you,
You must be he I was seeking, or she I was seeking, (it comes to me, as of a dream,)
I have somewhere surely lived a life of joy with you,
All is recall’d as we flit by each other, fluid, affectionate, chaste, matured,
You grew up with me, were a boy with me, or a girl with me,
I ate with you, and slept with you—your body has become not yours only, nor left my body mine only,
You give me the pleasure of your eyes, face, flesh, as we pass—you take of my beard, breast, hands, in return,
I am not to speak to you—I am to think of you when I sit alone, or wake at night alone,
I am to wait—I do not doubt I am to meet you again,
I am to see to it that I do not lose you.
A Você
Estranho! se, ao passar, você me encontrar e desejar falar comigo, por que não falar comigo?
E por que eu não falaria com você?
To You
Stranger! if you, passing, meet me, and desire to speak to me, why should you not speak to me?
And why should I not speak to you?
Chegaram nesse meio tempo, Saló, Lourdes e Luzia carregando a tal bagagem que Lu estava esperado para ajudar.
Dando continuidade ao Momento Poetico, Anita lembrou que o Riso, tema dos nossos trabalhos este ano, também faz poesia e leu o Poema Matuto, Eu e Maria:
POEMA MATUTO
*DO LIVRO ‘CANTIGAS QUE VÊM DA TERRA”
EU E MARIA
Nasci no sítio Belém
Lá nasci e me criei
E desde novo eu jurei
De num casar com ninguém
Por arte num sei de quem
Com Maria me encrontei
Quebrei tudo que jurei
Passei dois mês namorano
Passei três me ajeitano
Com quatro mês me casei
Me casei com muita fé
Mas pro pintura do diacho
Lá perto morava um macho
Inludidô de muié
Um tal de Joca Romeu
E esse um dia apareceu
No rancho que nós vivia
Com um jeitão muito estranho
Um oiá desse tamanho
Reparando pra Maria
Depois de um mês de casado
Eu notei que tinha um sócio
Ela inventou um negócio
De nós drumir apartado
Inventava um bucho inchado
Dô de cabeça e de ouvido
Um tal de corpo doído
Umas fireira no pé…
Essas manha de muié
Que quer dexá o marido
Eu só vivia dizeno:
Talvez nunca me acostume
Eu morrendo de ciúme
E os amô dela cresceno
Sempre aquelas coisa, eu veno
Ela toda diferente
Ele metido a valente
E pra terminar a novela
Tratou de vim buscá ela
Na outra noite da frente
Inda vi eles sainno
Ele perguntou por mim
Ela arrespondeu assim:
O bestaião tá drumino
Eu aquelas coisa ouvino
Fui me levantei também
Ela dizia: Ele vem
Mas num vá temê acocho
Que aquele meu véi é frôxo
Nunca brigou com ninguém
Isso era de madrugada
Quaje amanheceno o dia
Quando eu oiei, eles ia
Já descambando a chapada
Larguei os pés na estrada
Pra ver se ela me atendia
Gritava: Vem cá, Maria
Vorta pronde tu morava!
Mas quato mais eu gritava
Mais a danada corria
Mas sabe o que aconteceu
Com a vida de nós dois?
Com uns dez anos depois
Maria me apareceu
Deixou o Joca Romeu
Voltou toda diferente
Com oito fios na frente
Uns com tosse, outros com gogo
E eu tenho comido é fogo
Pra sustentar tanta gente
*Lançado em 2002 por Geraldo Amâncio e Wanderley Pereira
Após os poemas contamos algumas piadas, rimos muito, mas a coordenadora colocou ordem na casa. Fizemos uma rápida reprogramação da agenda e deixamos a leitura de As Preciosos Ridículas para o próximo encontro.
Lemos um conto de humor, O homem que nem é dental, de João Gratuliano (estranho falar de si mesmo na terceira pessoa) e depois lemos Ele? de Guy de Maupassant. Júnior fez ótimas pontuações sobre a doença que afligiu Guy.
Salete comentou sobre a sessão de leitura do livro de Anita e comentou que pelo prefácio havia descoberto um João Gratuliano menos irônico e mais romântico. E me desafiou a mostrar esse lado. Então eu aproveitei que a audiência estava pequena. Everaldo e Saló já tinham vazado, e li um do meu vasto repertório de três ou quatro poemas meu.
Assim nos despedimos no clima habitual de alegria entre os leitores e escritores de boa vontade. Fomos em paz e que Clarice nos acompanhe.
Embarcamos para a primeira Oficina de 2017 do cais da nossa maruja Adelaide Câmara, onde fomos recebidos com muitas guirlandas.Destaque para as coxinhas e lolitas que Paula nos preparou. Quase todos viageiros estavam presentes, exceções muito sentidas de Paulo, que se recuperava de uma gripe, e de Gratuliano que viajou para dar conta de afazeres inadiáveis com a sua fazenda.
Começamos com a Saudação Poética da nossa anfitriã, Adelaide, que leu o poema de Cecília Meireles, Canção. É um belo poema que fala de um sonho posto num navio que o proprio sonhador usa a mãos para fazer naufragar, disposto a chorar todo choro que for preciso para que o navio chegue ao fundo do mar e então “tudo estará perfeito: praia lisa, águas ordenadas,/meus olhos secos como pedras/
e as minhas duas mãos quebradas”. Muito triste.Tão belo quanto triste, eu diria
CANÇÃO
Cecília Meireles
Pus o meu sonho num navio
E o navio em cima do mar;
-depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar.
Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre dos meus dedos
colore as areias desertas.
O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio…
Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.
Depois tudo estará perfeito:
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.
Adelaide leu ainda um texto muito interessante de Augusto Abelaira, Requiem pelo ponto de Exclamação. Ele começa falando da particularidade da língua portuguesa ao dispor da palavra saudade, perguntando se os outros povos ignoravam o sentimento saudade e se quem não sabe nominar pode dispor do sentimento. E por aí segue… Leitura agradável, humor fino. O texto vai para a nossa biblioteca para quem se interessar pela leitura.
Iniciamos o humor daquela tarde com François Rabelais, mais precisamente com a leitura dos capítulos III a VII de Gargântua e Pantagruel . Realismo fantástico, absoluto. Gargântua após onze meses no ventre da mãe resolve nascer justo no dia em que ela se empanturrou de dobradinha (tripas de bois engordaddos no estábulo, segundo o autor), apesar dos protestos do marido, comendo dezesseis tonéis, uma pipa e seis alqueires. Ó bela matéria fecal que devia se formar dentro dela! Não deu outra, depois do excesso gastronômico ela começou a sentir dor, a se lamentar e a gritar, aparecendo parteiras de todos os lados que ao a apalparem encontraram aparas de pele, fétidas, que eram os fundos que se lhe escapavam. Diante dessa situação, a parteira velha experiente deu um restringente tão forte que todas as peles ficaram tão apertadas e cerradas que pelas zonas baixas não passavam mais nada. A passagem encontrada pela criança para sair foi pelos cotilédonos da matriz, seguindo pela veia cava, trepando pelo diagragma até acima dos ombros, onde a dita veia se divide em duas, tomou caminho à esquerda e saiu pela orelha sinistra.E ao nascer, não chorou como as outras crianças, mas exclamou em voz bem alta: “Beber, beber, beber!”
Escatologia e realismo fantástico neste obra excelente do escritor francês, que tornou-se um clássico da literatura, inovando o fazer literário do humor. O dialógo dos bêbados é perfeito.São vários homens falando ao mesmo tempo, as conversas mais desencontradas e hilárias que se possa imaginar. Muito bom. A nossa colega Roberta Aymar, na ocasião, fez uma fala com uma sintese de Rabelais, muito interessante.A nosso pedido, ela está elaborando uma biografia do autor para dividir com os marujos e neste blog.
Após Rabelais, lemos um resumo que eu fiz do primeiro capítulo de Henry Bergson sobre O Riso, autor citado em todos os estudos sobre o humor. Filosófo e diplomata francês, ele ficou conhecido por vários trabalhos publicados, entre eles, O Riso, Ensaios sobre os dados imediatos da consciência, Matéria e Memória, A evolução criadora e As duas fontes da moral e da Religião. O Riso foi publicado em 1899. Ele teve vários seguidores, entre os quais, Gilles Deleuze.
Bergson iniciao ensaio o perguntando o que é o riso? O que há de fato na essência do risível? O que há de comum entre uma careta de palhaço, um jogo de palavras, um qüiproquó de vaudeville, uma cena de comédia fina? Então, ele cita três observações fundamentais para entender a questão.
A primeira delas é que a comicidade é do humano. A natureza, os objetos não apresentam comicidade sem a ação do homem, sem a expressão humana.Eles em si não são risíveis.Rimos de um chapéu; mas então não estamos gracejando com o pedaço de feltro ou de palha, mas com a forma que os homens lhe deram, com o capricho humano que lhe serviu de molde.
Os filósofos definiram o homem como um animal que sabe rir. Bergson diz que eles deveriam também ter definido o homem como um animal que faz rir, pois, se algum outro animal ou objeto inanimado consegue fazer rir, é devido a uma semelhança com o homem, à marca que o homem lhe imprime ou ao uso que o homem lhe dá.
Outro ponto ressaltado por Bergson é a insensibilidade que acompanha o riso. Para êle o cômico só produzirá comoção se cair sobre uma superfície d’alma serena e tranquila.A indiferença é o seu meio natural. O maior inimigo do riso, diz Bergson, é a emoção, o que não significa que não se possa rir de quem temos piedade ou afeição. Para que o riso possa acontecer será necessário colocar em suspensão, mesmo que por apenas alguns instantes, qualquer piedade ou sentimento de afeição.
Numa sociedade de puras inteligências provavelmente não mais se choraria, mas talvez ainda se risse; ao passo que almas invariavelmente sensíveis, harmonizadas em uníssono com a vida, nas quais qualquer acontecimento se prolongasse em ressonância sentimental, não conheceriam nem compreenderiam o riso.
Que o leitor tente, por um momento, interessar-se por tudo o que é dito e tudo o que é feito, agindo, em imaginação, com os que agem, sentindo com os que sentem, dando enfim à simpatia a mais irrestrita expressão: como num passe de mágica os objetos mais leves lhe parecerão ganhar peso, e uma coloração grave incidirá sobre todas as coisas. Que o leitor agora se afaste, assistindo à vida como espectador indiferente: muitos dramas se transformarão em comédia. Basta taparmos os ouvidos ao som da música, num salão de baile, para que os dançarinos logo nos pareçam ridículos.
(…) Portanto, para produzir efeito pleno, a comicidade exige enfim algo como uma anestesia momentânea do coração. Ela se dirige à inteligência pura.
Outro aspecto levantado por Bergson é que nosso riso é sempre o riso de um grupo. O riso precisa de eco: Não saborearíamos a comicidade se nos sentíssemos isolados. Ele cita exemplo das pessoas que em viagem ou à mesa de hospedarias ouvem histórias que parecem muito cômicas para os que estão ali, pois os fazem rir o tempo todo e com muito gosto, mas que eles não conseguem alcançar a razão para tanto riso. E ele citou o exemplo do homem que não chorava num sermão em que todos choravam profusamente e quando lhe perguntaram porque não chorava ele respondeu: “Não sou desta paróquia.” Ele diz que isso é ainda mais verdadeiro quando se refere ao riso, porque Por mais franco que o suponham, o riso esconde uma segunda intenção de entendimento, eu diria quase de cumplicidade, com outros ridentes, reais ou imaginários.
Enfim, Bergson diz, para compreender o riso é preciso colocá-lo em seu meio natural, que é a sociedade; é preciso, sobretudo, determinar sua função útil, que é uma função social. O riso deve ter uma significação social.
Foi uma bela tarde em que não faltaram as anedotas, as tirinhas e charges, e ainda as gostosas coxinhas e lolitas feitas por Paula, muito bem registrados por Adriana Câmara.
o tempo não para, sem pressa, sem demora, é preciso gastar o tempo, precioso, eu preciso, vejo-o passar, minutos, segundos, colho os instantes, a observar, germinar de uma castanha, alegria serena ao olhar, delicadeza envoltura, em folhas se abrirá, ainda não hoje, amanhã, o coração, desabrocha broto, amor, acolhe a chuva, ilumina-se ao sol, raízes crescem sob o chão, flores brancas rosadas, miúdas, desprendem seu perfume ao vento, surpresas de cachos, profusos frutos, suculenta carne, castanha, cajueiro.
*Salete Oliveira é engenheira química, poetisa, contista.