Oníricas

Oníricas
*Teresa Sales

Jardim Botânico na casa de meu avô

 O lugar é Bezerros e a casa é a de meus avós, lugar de férias na infância. A casa era em frente à estação de trem. Não tinha jardim na frente, mas ao lado. A porta de entrada e as janelas davam direto para a calçada. No jardim do oitão tinha plantas, flores e um pé de jasmim que cheirava forte à tardinha. Entrava-se nele por um portão de ferro suficiente para passar um carro e que estava sempre aberto. Às vezes ali ficava apeado o cavalo de meu avô, quando trazia cedinho o leite da fazenda.

 No sonho, o espaço desse oitão, o da casa, é agora um jardim botânico. Árvores grandes, uma vegetação diversificada. Adentra-se nele pelo mesmo antigo portão de ferro trabalhado.

 É um dia de sol, mas dentro do jardim está tudo sombreado. Um sentimento de paraíso. Tem uma cadeira de madeira com recosto próxima ao portão, onde cabem duas pessoas. Para sentar nessa cadeira é preciso subir numa pequena escada a ela acoplada. Da altura dela pode-se ver todo o jardim, maior do que o da casa de meu avô, mas não muito grande. Uns dois mil metros quadrados, pouco mais que todo o terreno de minha casa de Aldeia.  A única construção do jardim botânico é esse banco.

 Nós dois estamos sentados no banco desse jardim, cada um lendo seu livro. Observamos que entra uma espécie de trator puxando uma caçamba, com um motorista e um ajudante ao seu lado. Eles têm a chave do portão. Entram sem dizer palavra e sem interromper nossa leitura. Dão a volta por todo o caminho de terra por entre a vegetação e saem. Vejo depois, caminhando na calçada de fora, uma mulher conhecida de hoje, indo para a casa de meus avós. Ela nos vê no banco, puxa conversa e insinua que estamos ali para namorar escondidos. Eu replico que estamos trabalhando. Ela entra na casa de meus avós e nós continuamos no banco, em silêncio e recolhimento, até eu me acordar.

 Encontro no bosque

Estou sentada no banco de um jardim cheio de gente, num dia frio e ensolarado. Dos brinquedos ao longe ouço crianças nas gangorras, nos balanços. A algazarra, cortada pelo vento batendo forte nas folhas das árvores, chega aos meus ouvidos suavemente, quase como o canto de passarinhos antes de dormir. O lugar parece o bosque do Morumbi, onde costumávamos levar os meninos quando pequenos.

O barulho das crianças se distancia como por encanto. Sinto-me sozinha no parque, que não é o do Morumbi, mas de uma cidade desconhecida. Aí você chega e se senta ao meu lado sem nada dizer. Eu não levanto a vista pra te olhar, mas sei que é você.

O dia está frio e nós não sentimos frio. Aos poucos, muito aos poucos, você vai levantando a minha saia e alisando minhas coxas pelo lado de dentro até chegar à fonte de meu prazer. Nesse momento, começo a ficar em dúvida se é você mesmo quem está comigo. Alguma força mágica não me permite olhar teu rosto.

Pronuncio teu nome, ainda sem te olhar, mas você não me responde. Agora sou eu quem começa a tocar tuas coxas por cima das calças jeans, que me impedem de sentir tua pele. Preciso saber se aquele homem é você. A chave, descubro, não é ver teu rosto, mas sentir teu corpo.

Deito no teu colo. O banco da praça está muito frio e, estranhamente, continuamos aquecidos. Pronuncio de novo teu nome, acrescentando, “Z , meu querido”. Começo a baixar o zíper de tua calça e ouço ao longe o fio de água cristalina que desce do alto do bosque.

20 de janeiro de 2014

*Teresa Sales – Socióloga, ensaísta, cronista, ficcionista.

Lançamento livro da Oficina

Lançamento Escrituras II - Traços da Oficina

Lançamento Escrituras II – Traços da Oficina

 Escrituras II – Traços da Oficina reúne textos dos escritores da Oficina de Criação Literária Clarice Lispector, os viageiros dos mares das palavras.

A Oficina foi criada em 2006, a partir de um grupo dedicado às leituras clariceanas, o que levou à nomeação de Clarice Lispector como estrela guia. Faz parte do Traço Freudiano Veredas Lacanianas Escola de Psicanálise, associação de psicanalistas, cuja finalidade é promover e desenvolver estudos sobre a Teoria Psicanalítica e as Veredas Literárias, desde a perspectiva freud-lacaniana.

A Psicanálise, em sua origem, relaciona-se com a arte em bases profundas e fundamentais. A Literatura, em particular, se tornou o pilar de sustentação das teorias psicanalíticas, desde que Freud foi buscar suporte em Shakespeare e Sófocles para as suas primeiras formulações sobre o inconsciente e o complexo de Édipo.

Sem dúvida, a Literatura é o grande olho-d’água, lugar de jorro ininterrupto dos muitos saberes. As palavras guardam mistérios. É preciso tecê-las, abrindo portas para os seus significantes. Cada palavra é uma viagem, por isso estamos sempre nos lançando ao mar e nos chamando de viageiros. No leme, o binômio: leitura/escrita. Sempre.

                                            Lourdes Rodrigues

Crônicas para lembrar


imagesCAWV3K9A*Somos todos estrangeiros

**Ivan Lessa

Estrangeiro é o bairro em que moramos, estrangeira é a mulher que encoxamos no elevador, estrangeiros são nossos pais, nossos filhos. Nunca me senti em casa no Brasil, ninguém está em casa no Brasil: todo mundo foi até a esquina, todo mundo foi tomar um cafezinho. Achava que, de uma maneira ou de outra, eu estava embromando ou sendo embromado por alguém. Que viver não era nada daquilo, que eu não tinha nada com o peixe, que os verdadeiros brasileiros estavam misteriosamente ocupados com seus sofrimentos, ou então atarefados criando um Brasil melhor: gente andando rapidamente nas ruas da cidade, ou cavando uma terra dura e ingrata. Os brasileiros eram abstratos, distantes, mais calados do que comumente se supõe. Conheço algumas vozes brasileiras: gostaria de saber escrever na tonalidade do Jorge Veiga, ou do Moreira da Silva, misturada a uma retórica aborrecida e às avessas semelhante à de Ruy Barbosa — como o Hino à Bandeira acompanhado de caixinha de fósforos. Os sambinhas, claro, eram brasileiros, o pessoal que sentava ao meu lado no Maracanã era brasileiro, as piadas de papagaio eram brasileiras. Mas tudo era de mentirinha, beirando sempre o pitoresco ou se precipitando na tragédia policial ou no editorial dos jornais. A vida a sério, os seis quarteirões em que me locomovia, as seis pessoas com quem convivia não eram, digamos assim, bem brasileiros — assim como eu, tinham máquina fotográfica a tiracolo e camisas com palmeiras.

Em tudo que eu engolia ficava uma ponta de tradução atravessada em minha garganta: os filmes com legendas em português, as histórias em quadrinhos, os livros, as notícias; os foxes. Éramos uma versão pobre do que a vida deveria ser — e a vida vinha sempre em inglês, em francês, em alemão. Mesmo quando dizia “eu te amo”, ou “não me chateia”, eu me sentia vagamente ridículo, apropriador — feito um homem de série da televisão mal dublado: minha boca fechada e as palavras ainda saindo, um ventríloquo com descontrole psicomotor.

Reconheci, pelo paladar, pelos olhos, certos molhos, certas bossas tipicamente brasileiras (o problema é que eram típicos): feijoada, dendê, folha seca de Didi, Noel Rosa, escola de samba. Mas a essência, a parte que tratava de mim (nos meus seis quarteirões, na cidade no sul do país) e de minha relação com os severinos todos, essa parte era sempre tratada em outra língua; eu pertencia aos estrangeiros, foram eles que me disseram como vim a fazer parte ou como nunca fiz parte. Eu era, como todo brasileiro, um improvisador, um adaptador, um tradutor, conseqüentemente um traidor — porque eu olhava para a cara de meu semelhante e não sabia como poderíamos nos entender, o que ele tinha a me dizer, o que eu poderia lhe dizer, como juntos conseguiríamos nos salvar. No entanto, o tempo todo, eu era, eu sou, apenas mais um João, só que em russo.

Não consegui, como tanta gente de minha geração ou mais moça do que eu, me interessar pelo folclore caboclo. A própria palavra folclore já leva embutido um desaforo urbano. No entanto, achava que o setor, devidamente estudado por profissionais competentes, me seria útil, me forneceria, por exemplo, dados para escrever com justeza para um público moço que vive de cinema, disco e que sabe, curiosamente, que há uma tremenda safadeza, uma violência no ar. Não lia, portanto, O Negrinho do Pastoreio — o que já preparava o terreno até para eu deixar de ler Machado de Assis ou Dalton Trevisan. Comprava pocketbooks, que eram mais baratos, mais engraçados, e, de certa forma, sobre mim, a meu respeito. Preocupado comigo mesmo, com esse “meu respeito”, descobri-me sozinho no meio da avenida repetindo eu… eu… eu… como um pronome enguiçado que não consegue engatar a segunda e a terceira do singular. Perdi os joões, os josés, os severinos, vim para o original, o estrangeiro, dando início a uma certa paz, tranqüilidade, a noção de ordem: as legendas acabaram, sou finalmente, completamente, um estrangeiro. Posso agora conjugar-me no plural, dizer nós. Somos todos estrangeiros, sois todos estrangeiros, são todos estrangeiros. Não há nada a fazer a não ser descobrir esse estrangeiro que há na gente. Daí então a gente começa a falar brasileiro, coça o saco, conta como é que é. Daí então o papo, aquele papo, pode começar. Só que agora pra valer.

Londres, 7 de setembro, 1970

* Está nas 100 Melhores Crônicas Brasileiras.
**Ivan Lessa ou Ivan Pinheiro Themudo Lessa, escritor, jornalista,  filho do escritor Orígenes Lessa e da jornalista e cronista Elsie Lessa. Bisneto de Júlio César,autor de A Carne. Ivan publicou, Garotos da Fuzarca (contos), Ivan Vê o Mundo (crônicas), O Luar e a Rainha (crônicas). Ele morava em Londres desde os anos 70, morreu em junho de 2012.