Viagem pelos arredores de A Terra Inútil

Relatos de viagem, 23 de maio/2017

*Salete Oliveira

 

Num só minuto há tempo
Para decisões e revisões, a revogar noutro minuto.
Pois já as conheço todas bem, conheço todas –
Sei as noites, as tardes, as manhãs,
Às colheres de café andei medindo a minha vida;
Sei que em breve agonia se esvaem as vozes
Abafadas na música de um quarto mais além.
Como havia eu de ousar, assim?
T. S. Eliot

pesquiso pesquiso… apenas a pesquisar
nada escrevo, ainda não terminou o prazo (?)
apenas a me encantar, arregalo os olhos
semelhante ao dia da leitura na Oficina LIterária,
não é inglês (?), americano de nascimento,
filho de imigrantes, emigrou de volta,
largou ao terminar em Harvard, o país natal,
as vésperas da primeira guerra,
em plena revolução industrial,
atravessou mares e pontes, olhou os mesmos objetos,
Torre de Londres, Museu Britânico… (como tantos turistas fazem todo dia,
como fiz, 30 anos após sua morte…)

às margens do Tâmisa, se encontrou, se naturalizou,
como mais conhecido poeta britânico se imortalizou!

(onde vi, li seu nome pela primeira vez?)
não lembro, mas em mim seu nome tem um lugar
aconchegante, um júbilo ao ouvir se pronunciar
T. S. Eliot

procuro de onde nos conhecemos,
onde se cruza nossa existência como viventes,
quando casou pela segunda vez, já na Inglaterra,
eu engatinhava, nos idos de 1957,
quando morreu, o Brasil já estava sob ditadura militar,
com certeza não me foi apresentado quando ainda vivo,
embora vivo vá continuar sempre a cada leitura,

no Tópico V. O que disse o Trovão, do Poema The Waste Land, de 1922,
http://marocidental.blogspot.com.br/2012/01/waste-land-t-s-eliot-traduzido.html
todas as lembranças são do Agreste pernambucano, das Vertentes,
da Serra de Taquaritinga, do céu escuro em nuvens
que se batem em trovões e relâmpagos,
caem em granizos em final da tarde…

mas… chega de tergiversação, escreve escreve,
diz-me o vento sibilante, deixa de caraminholas, é julho!

Lourdes Rodrigues nos trouxe T. S. Eliot para o momento poético naquela quarta-feira, 23 de maio de 2017, a iniciar a Oficina. O poema escolhido foi:

 

A Canção de Amor de J. Alfred Prufrock

S’i credesse che mia risposta fosse
A persona che mai tornasse al mondo,
Ma però che già mai di questo fondo
Questa fiamma staria senza più scosse.
Non torno vivo alcun, s’i’odo il vero,
Sanza tema d’infamia ti rispondo.

(Dante Alighieri, La Divina Commedia, Inferno)

Vamos lá, você e eu
quando a noite está espalhada contra o céu
tal paciente eterizado sobre a mesa
vamos nós, por tais semi-desertas alamedas
as quebras quietas
de inquieta noite insone na espeluncas de uma noite
bistrôs baratos com jornal no chão:
ruas que seguem tal tedioso argumento
de perigosa pretensão:
levá-lo a uma pergunta arrasadora…
ah, “qual seria?”, não insista,
vamos lá à nossa visita.

na saleta, as moças em deâmbulo
falam de michelangelo.

a névoa espessa roça as costas nas venezianas
fumaça espessa que o focinho roça nas venezianas
raspando a língua nas esquinas do anoitecer
demora sobre as poças sobre os ralos
derruba em suas costas cinzas lá das chaminés
desliza no terraço, faz-se reerguer
e vendo que era noite calma de um outubro
em volta enrosca a casa a adormecer.

e é certo, o tempo vai chegar
para o fumo espesso errante pela rua,
que esfrega as costas nas venezianas;
o tempo vai chegar e vai chegar
de preparar a cara a ver as caras conhecidas suas;
vai chegar o tempo de criar e de matar
e o tempo dos trabalhos e os dias e as mãos
que erguem e jogam a dúvida em seu prato;
tempo pra você e para mim,
e tempo pra mais cem indecisões,
e mais cem visões e revisões,
antes da hora de tomar chá com torrada.

na saleta, as moças em deâmbulo
falam de michelangelo.

e é certo, o tempo vai chegar
em que se possa perguntar, “eu ousaria?”
tempo para voltar e descer a escadaria,
e a mancha calva no meio da cabeça já se via –
(vão dizer: “como o cabelo dele vai rareando!)
meu fraque e o colarinho bem alto abotoando,
minha gravata honesta e rica, com uma só prega fechando
(vão dizer: mas como as pernas e os braços dele tão afinando!”)
ousaria
o universo perturbar?
num minuto há muito tempo
em que o minuto as decisões e revisões pode abortar.

pois eu já as conheci a todas elas, todas elas –
conheço as noites, tardes e manhãs, até,
eu medi a minha vida em colherinhas de café
conheço as vozes abafadas se apagando
em meio à música de um quarto distante.
como é que eu ia adivinhar?

e eu conheci os olhos todos, todos eles –
os olhos que lhe pregam numa frase formulada,
e quando eu, formulado, num alfinete a estrebuchar,
quando eu estou pregado e me espalhando na parede,
como é que eu ia começar a
cuspir bitucas dos dias e vias?
como é que eu ia adivinhar?
pois eu já conheci os braços todos, todos eles –
braceletados braços, brancos e desnudos
(à meia luz, porém, cobertos com ruiva penugem!)
será o perfume de um vestido
que me faz assim perdido?
braços jogados sobre as mesas, ou nos xales enrolados.
então como é que eu ia adivinhar?
como eu podia começar?
***
e eu direi que andei ruelas pelo anoitecer
que vi a fumaça fugindo dos cachimbos
de uns homens solitários de pijama nas janelas?
eu devia era ter sido um par de diras garras
pairando pelos leitos de quietos oceanos.
***
e o entardecer, o anoitecer, dorme em tanta paz!
por longos dedos acariciado
dormindo… cansado… ou finge dor,
espichado aqui no chão, do meu lado e do seu,
devia eu, depois do licorzinho nesse cálice,
ter força de forçar o instante até seu ápice?
embora eu tenha feito reza, cena e até quaresma,
embora eu tenha visto minha cabeça (já meio careca) trazida na bandeja,
não sou profeta – e aqui deixo pro azar;
eu vi o meu momento de grandeza tremular,
e eu vi o Lacaio eterno com o meu terno e um riso abafar,
e, resumindo, eu tive medo.

e valeria a pena, ao fim de tudo,
das xícaras, do chá e das geleias,
em meio às porcelanas e íntimas trocas de ideias,
teria, ao fim, valido alguma pena
ter encerrado num sorriso nossa cena,
e espremer o universo numa bola
rolá-lo a uma pergunta arrasadora,
dizer “eu sou lázaro, vindo dos mortos
retorno para lhes dizer tudo, direi tudo” –
se então, ajeitando o travesseiro em sua cabeça
alguém dissesse: “não é nada disso tudo;
não é isso, eu juro.”

e valeria a pena, ao fim de tudo,
e valeria alguma pena
depois do pôr-do-sol e das soleiras e das ruas respingadas,
depois dos livros e dos chás, depois das saias que se arrastam pelo chão –
e disso e muito mais então? –
é impossível dizer tudo o que eu quero!

mas como se a lanterna mágica lançasse seus padrões num anteparo:
valeria alguma pena
se alguém, ajeitando o travesseiro ou enrolando um xale,
ao virar-se pra janela, enfim dissesse:
“não foi isso, eu juro,
fui incompreendida em tudo.”
***
não! não sou príncipe hamlet, nem era para ser
sou um nobre figurante, que vai só servir
pra inchar a comitiva, uma cena ou mais abrir,
aconselhar o príncipe, decerto, papel simples,
deferente, feliz por ser de auxílio,
sagaz, meticuloso e precavido;
cheio de frases feitas, mas meio perdido;
às vezes, até, quase ridículo –
às vezes, quase, o Tolo.

envelheço… envelheço…
vou dobrar as barras da minha calça eu mesmo.
ousarei comer um pêssego? reparto meu cabelo pra trás?
vou por calças de flanela branca e sair pra andar na praia.
ouvi o canto das sereias, e cantavam entre si.
não acho que elas vão cantar pra mim.

e as vi cortando as ondas para o mar
partindo as cãs das ondas para trás
quando o vento sopra as alvinegras águas.
passeamos nos palácios do oceano
co’ondinas coroadas de algas rubras
té que com humanas vozes despertando,
morramos afogados.

Para nossa melhor compreensão, lemos também no original, a buscar nas suas palavras a essência dos versos, a querer compreender o âmago do poema, a alma do poeta:

The Love Song of J. Alfred Prufrock

S’i credesse che mia risposta fosse
A persona che mai tornasse al mondo,
Questa fiamma staria senza più scosse.
Ma però che già mai di questo fondo
Non torno vivo alcun, s’i’odo il vero,
Sanza tema d’infamia ti rispondo.

(Dante Alighieri, La Divina Commedia, Inferno)

Let us go then, you and I,
When the evening is spread out against the sky
Like a patient etherized upon a table;
Let us go, through certain half-deserted streets,
The muttering retreats
Of restless nights in one-night cheap hotels
And sawdust restaurants with oyster-shells:
Streets that follow like a tedious argument
Of insidious intent
To lead you to an overwhelming question. . .
Oh, do not ask, “What is it?”
Let us go and make our visit.

In the room the women come and go
Talking of Michelangelo.

The yellow fog that rubs its back upon the window-panes
The yellow smoke that rubs its muzzle on the window-
panes
Licked its tongue into the corners of the evening
Lingered upon the pools that stand in drains,
Let fall upon its back the soot that falls from chimneys,
Slipped by the terrace, made a sudden leap,
And seeing that it was a soft October night
Curled once about the house, and fell asleep.

And indeed there will be time
For the yellow smoke that slides along the street,
Rubbing its back upon the window-panes;
There will be time, there will be time
To prepare a face to meet the faces that you meet;
There will be time to murder and create,
And time for all the works and days of hands
That lift and drop a question on your plate;
Time for you and time for me,
And time yet for a hundred indecisions
And for a hundred visions and revisions
Before the taking of a toast and tea.

In the room the women come and go
Talking of Michelangelo.

And indeed there will be time
To wonder, “Do I dare?” and, “Do I dare?”
Time to turn back and descend the stair,
With a bald spot in the middle of my hair –
[They will say: “How his hair is growing thin!”]
My morning coat, my collar mounting firmly to the chin,
My necktie rich and modest, but asserted by a simple pin–
[They will say: “But how his arms and legs are thin!”]
Do I dare
Disturb the universe?
In a minute there is time
For decisions and revisions which a minute will reverse.

For I have known them all already, known them all;
Have known the evenings, mornings, afternoons,
I have measured out my life with coffee spoons;
I know the voices dying with a dying fall
Beneath the music from a farther room.

So how should I presume?
And I have known the eyes already, known them all –
The eyes that fix you in a formulated phrase,
And when I am formulated, sprawling on a pin,
When I am pinned and wriggling on the wall,
Then how should I begin
To spit out all the butt-ends of my days and ways?
And how should I presume?
And I have known the arms already, known them all –
Arms that are braceleted and white and bare
[But in the lamplight, downed with light brown hair!]
Is it perfume from a dress
That makes me so digress?
Arms that lie along a table, or wrap about a shawl.

And should I then presume?
And how should I begin?
Shall I say, I have gone at dusk through narrow streets
And watched the smoke that rises from the pipes
Of lonely men in shirt-sleeves, leaning out of windows? . .
I should have been a pair of ragged claws
Scuttling across the floors of silent seas.
And the afternoon, the evening, sleeps so peacefully!

Smoothed by long fingers,
Asleep . . . tired . . . or it malingers,
Stretched on the floor, here beside you and me.

Should I, after tea and cakes and ices,
Have the strength to force the moment to its crisis?
But though I have wept and fasted, wept and prayed,
Though I have seen my head (grown slightly bald)
brought in upon a platter,
I am no prophet–and here’s no great matter;
I have seen the moment of my greatness flicker,
And I have seen the eternal Footman hold my coat, and
snicker,
And in short, I was afraid.

And would it have been worth it, after all,
After the cups, the marmalade, the tea,
Among the porcelain, among some talk of you and me,
Would it have been worth while,
To have bitten off the matter with a smile,
To have squeezed the universe into a ball
To roll it toward some overwhelming question,
To say: “I am Lazarus, come from the dead,
Come back to tell you all, I shall tell you all”
If one, settling a pillow by her head,
Should say, “That is not what I meant at all.
That is not it, at all.”

And would it have been worth it, after all,
Would it have been worth while,
After the sunsets and the dooryards and the sprinkled
streets,
After the novels, after the teacups, after the skirts that
trail along the floor –
And this, and so much more? –
It is impossible to say just what I mean!

But as if a magic lantern threw the nerves in patterns on
a screen:
Would it have been worth while
If one, settling a pillow or throwing off a shawl,
And turning toward the window, should say:
“That is not it at all,
That is not what I meant, at all.”

No! I am not Prince Hamlet, nor was meant to be;
Am an attendant lord, one that will do
To swell a progress, start a scene or two
Advise the prince; no doubt, an easy tool,
Deferential, glad to be of use,
Politic, cautious, and meticulous;
Full of high sentence, but a bit obtuse;
At times, indeed, almost ridiculous –
Almost, at times, the Fool.

I grow old . . . I grow old . . .
I shall wear the bottoms of my trousers rolled.
Shall I part my hair behind? Do I dare to eat a peach?
I shall wear white flannel trousers, and walk upon the
beach.

I have heard the mermaids singing, each to each.

I do not think they will sing to me.

I have seen them riding seaward on the waves
Combing the white hair of the waves blown back
When the wind blows the water white and black.

We have lingered in the chambers of the sea
By sea-girls wreathed with seaweed red and brown
Till human voices wake us, and we drown.

Em dos relatos sobre T. S. Eliot encontramos a seguinte análise:

O poema é considerado um dos mais belos poemas produzidos na literatura inglesa do século XX, “A Canção de Amor de J. Alfred Prufrock”, com as suas imagens floridas em uma densa agonia destilada em versos livres, a traduzir um angustiante estado da alma, complexa, com palavras sopradas como uma canção simbolista, rumando ao vazio.

T. S. Eliot escreveu o poema em 1912, numa época de marasmo que se seguiu aos novos costumes trazidos pela Revolução Industrial, e o período de conturbações que culminaria com o início da Primeira Guerra Mundial. “A Canção de Amor de J. Alfred Prufrock” só seria publicado pela primeira vez em 1915, na revista “Poetry”, e lançado no livro “Prufrock e Outras Observações”, em 1917, que trazia uma recolha de poemas do autor. Uma vez publicado, o poema deu uma outra visão à poesia inglesa que se espalhou pelo mundo.

O poema não deixa de ser uma canção de amor, bela e inquietante, que sopra sobre uma hesitação perene, os sentimentos parecem petrificados pela existência, oscilando entre o desejo e a estabilidade do tédio. As máscaras de Prufrock revelam-lhes os sentimentos e também o próprio T.S. Eliot.

A tradução do poema aqui apresentada é do português João Almeida Flor, que a designou como “uma ordem de construção musical”. Na transposição para a língua portuguesa, os versos ficaram maiores do que os do poema original. O tradutor preferiu estar atento aos ritmos sonoros e à musicalidade do poema.

O volume ‘Poesia’, das obras completas, tem tradução, introdução e notas do poeta Ivan Junqueira, carioca nascido em 1934, crítico literário e ensaísta, presidente da Academia Brasileira de Letras. Em páginas espelhadas, o livro apresenta os poemas de T.S. Eliot em inglês e português, em um dos trabalhos de tradução feitos no Brasil, fruto da dedicação de Ivan Junqueira a Eliot.

Nesse relato, acrescento o poema traduzido por Ivan Junqueira, para que possamos exercitar leitura comparativa de dois tradutores, dentre outros.

A canção de amor de J. Alfred Prufrock

S’io credesse che mia risposta fosse
A persona che mai tornasse al mondo,
Questa fiamma staria senza piu scosse.
Ma perciocche giammai di questo fondo
Non torno vivo alcun, s’i’odo il vero,
Senza tema d’infamia ti rispondo.
Dante Alighieri. Ladivina Commédia
Inferno, XXVII, 61-66 (N. do T.)

Sigamos então, tu e eu,
Enquanto o poente no céu se estende
Como um paciente anestesiado sobre a mesa;
Sigamos por certas ruas quase ermas,
Através dos sussurrantes refúgios
De noites indormidas em hotéis baratos,
Ao lado de botequins onde a serragem
Às conchas das ostras se entrelaça:
Ruas que se alongam como um tedioso argumento
Cujo insidioso intento
É atrair-te a uma angustiante questão . . .
Oh, não perguntes: “Qual?”
Sigamos a cumprir nossa visita.
No saguão as mulheres vêm e vão
A falar de Miguel Ângelo.
A fulva neblina que roça na vidraça suas espáduas,
A fumaça amarela que na vidraça seu focinho esfrega
E cuja língua resvala nas esquinas do crepúsculo,
Pousou sobre as poças aninhadas na sarjeta,
Deixou cair sobre seu dorso a fuligem das chaminés,
Deslizou furtiva no terraço, um repentino salto alçou,
E ao perceber que era uma tenra noite de outubro,
Enrodilhou-se ao redor da casa e adormeceu.
E na verdade tempo haver á
Para que ao longo das ruas flua a parda fumaça,
Roçando suas espáduas na vidraça;
Tempo haverá, tempo haverá
Para moldar um rosto com que enfrentar
Os rostos que encontrares;
Tempo para matar e criar,
E tempo para todos os trabalhos e os dias em que mãos
Sobre teu prato erguem, mas depois deixam cair uma questão;
Tempo para ti e tempo para mim,
E tempo ainda para uma centena de indecisões,
E uma centena de visões e revisões,
Antes do chá com torradas.
No saguão as mulheres vêm e vão
A falar de Miguel Ângelo.
E na verdade tempo haverá
Para dar rédeas à imaginação. “Ousarei” E . . “Ousarei?”
Tempo para voltar e descer os degraus,
Com uma calva entreaberta em meus cabelos
(Dirão eles: “Como andam ralos seus cabelos!”)
– Meu fraque, meu colarinho a empinar-me com firmeza o
queixo,
Minha soberba e modesta gravata, mas que um singelo alfinete
apruma
(Dirão eles: “Mas como estão finos seus braços e pernas! “)
– Ousarei
Perturbar o universo?
Em um minuto apenas há tempo
Para decisões e revisões que um minuto revoga.
Pois já conheci a todos, a todos conheci
– Sei dos crepúsculos, das manhãs, das tardes,
Medi minha vida em colherinhas de café;
Percebo vozes que fenecem com uma agonia de outono
Sob a música de um quarto longínquo.
Como então me atreveria?
E já conheci os olhos, a todos conheci
– Os olhos que te fixam na fórmula de uma frase;
Mas se a fórmulas me confino, gingando sobre um alfinete,
Ou se alfinetado me sinto a colear rente à parede,
Como então começaria eu a cuspir
Todo o bagaço de meus dias e caminhos?
E como iria atrever-me?
E já conheci também os braços, a todos conheci
– Alvos e desnudos braços ou de braceletes anelados
(Mas à luz de uma lâmpada, lânguidos se quedam
Com sua leve penugem castanha!)
Será o perfume de um vestido
Que me faz divagar tanto?
Braços que sobre a mesa repousam, ou num xale se enredam.
E ainda assim me atreveria?
E como o iniciaria?
…….
Diria eu que muito caminhei sob a penumbra das vielas
E vi a fumaça a desprender-se dos cachimbos
De homens solitários em mangas de camisa, à janela
debruçados?
Eu teria sido um par de espedaçadas garras
A esgueirar-me pelo fundo de silentes mares.
…….
E a tarde e o crepúsculo tão .docemente adormecem!
Por longos dedos acariciados,
Entorpecidos . . . exangues . . . ou a fingir-se de enfermos,
Lá no fundo estirados, aqui, ao nosso lado.
Após o chá, os biscoitos, os sorvetes,
Teria eu forças para enervar o instante e induzi-lo à sua crise?
Embora já tenha chorado e jejuado, chorado e rezado,
Embora já tenha visto minha cabeça (a calva mais cavada)
servida numa travessa,
Não sou profeta – mas isso pouco importa;
Percebi quando titubeou minha grandeza,
E vi o eterno Lacaio a reprimir o riso, tendo nas mãos meu
sobretudo.
Enfim, tive medo.
E valeria a pena, afinal,
Após as chávenas, a geléia, o chá,
Entre porcelanas e algumas palavras que disseste,
Teria valido a pena
Cortar o assunto com um sorriso,
Comprimir todo o universo numa bola
E arremessá-la ao vértice de uma suprema indagação,
Dizer: “Sou Lázaro, venho de entre os mortos,
Retorno para tudo vos contar, tudo vos contarei.”
– Se alguém, ao colocar sob a cabeça um travesseiro,
Dissesse: “Não é absolutamente isso o que quis dizer
Não é nada disso, em absoluto.”
E valeria a pena, afinal,
Teria valido a pena,
Após os poentes, as ruas e os quintais polvilhados de rocio,
Após as novelas, as chávenas de chá, após
O arrastar das saias no assoalho
– Tudo isso, e tanto mais ainda? –
Impossível exprimir exatamente o que penso!
Mas se uma lanterna mágica projetasse
Na tela os nervos em retalhos . . .
Teria valido a pena,
Se alguém, ao colocar um travesseiro ou ao tirar seu xale às
pressas,
E ao voltar em direção à janela, dissesse:
“Não é absolutamente isso,
Não é isso o que quis dizer, em absoluto.”
Não! Não sou o Príncipe Hamlet, nem pretendi sê-lo.
Sou um lorde assistente, o que tudo fará
Por ver surgir algum progresso, iniciar uma ou duas cenas,
Aconselhar o príncipe; enfim, um instrumento de fácil
manuseio,
Respeitoso, contente de ser útil,
Político, prudente e meticuloso;
Cheio de máximas e aforismos, mas algo obtuso;
As vezes, de fato, quase ridículo
Quase o Idiota, às vezes.
Envelheci . . . envelheci . . .
Andarei com os fundilhos das calças amarrotados.
Repartirei ao meio meus cabelos? Ousarei comer um
pêssego?
Vestirei brancas calças de flanela, e pelas praias andarei.
Ouvi cantar as sereias, umas para as outras.
Não creio que um dia elas cantem para mim.
Vi-as cavalgando rumo ao largo,
A pentear as brancas crinas das ondas que refluem
Quando o vento um claro-escuro abre nas águas.
Tardamos nas câmaras do mar
Junto às ondinas com sua grinalda de algas rubras e castanhas
Até sermos acordados por vozes humanas. E nos afogarmos.

Particularmente, preferí a tradução de Ivan Junqueira. A sensação que me passa o poema, considerando o contexto da época, a idade do poeta, 24 anos, já terminado os estudos em Harvard, é que o poeta fala de si mesmo e seus sonhos de emigrar, voltar à Inglaterra e lá morar, ali plantava e germinavam as sementes do seu futuro, com todos os questionamentos e revisões que uma decisão dessas traz a qualquer pessoa. A sua ousadia o fez merecedor dos louros como poeta, até mesmo um prêmio Nobel!

Em relação à biografia de T. S. Eliot, encontramos diversos relatos:

Thomas Stearns Eliot nasceu em St. Louis, Estados Unidos, a 26 de setembro de 1888. Mudou-se para a Inglaterra aos 25 anos, em 1914.Em 1927, aos 39 anos, tornou-se cidadão britânico, e como tal, tornou-se um dos maiores representantes do modernismo britânico, sendo um dos seus principais poeta e dramaturgo.

A poesia de T. S. Eliot revela uma originalidade profunda e singular, repleta de muitas influências, entre elas a dos simbolistas franceses. Ao ler o livro “The Symbolist Movement in Literature”, de Arthur Symons, revelou-se-lhe uma grande influência, que culminaria com a poesia de Laforgue. Os estudos de filosofia auxiliaram o escritor a ter uma sensível concepção metafísica, ligando assim as palavras e idéias a objetos singulares, traduzindo-as em linguagem falada.

T. S. Eliot rompeu com a tradição poética do século XIX. Os temas da sua obra eram o vazio, a penitência, a redenção, a futilidade da existência, a angústia, a incerteza do tédio e a morte.

O escritor recebeu o prêmio Nobel de literatura em 1948.

Era um homem angustiado com o tédio, um denso propagador da desolação vincada pelas palavras livres, límpidas em seus símbolos.

Morreu em Londres, em janeiro de 1965.

Uma biografia com mais detalhes podemos encontrar nos links abaixo:

 

Os Eliot… – Veja mais em https://educacao.uol.com.br/biografias/t-s-eliot.htm?cmpid=copiaecola . Em inglês, https://www.poetryfoundation.org/poets/t-s-eliot

Seguiu-se ao momento poético, não menos surpreendente, à leitura de um conto escrito pelo viageiro Sarmento, atual, denso e ao mesmo tempo muito divertido, com duas versões (a) e (b), que nos dois primeiros parágrafos se igualavam, após o que seguiam caminhos diversos e dois finais, que para culminar, ficavam em aberto!
Se o mar parecia agitado, então se formaram torvelinhos…

A questionar e comentar o conto de Osvaldo Sarmento, todos viramos críticos, ensaístas além de leitores apaixonados que somos, o calor do tema nos tomando na leitura/discussão. Sarmento, com sabedoria e bom humor, entremeou em seu conto temas da atualidade: questões de gênero, nominação politicamente correta, movimentos sociais e feminista, casamento, encontros e desencontros, nova sexualidade. Foi prazerosa a leitura e muito rica a discussão.
Seguem os dois primeiros parágrafos (o final/os finais, estão em revisão e posteriormente serão relidos, para nova prazerosa tarde na Oficina):

O DILEMA DE PUREZA (b)

Osvaldo Sarmento

A movimentação pré-carnavalesca seguia animada, intensa, mas um tanto repetitiva. Os meios de comunicação da cidade não poupavam espaço para as obviedades de sempre: os dias, a ordem e o roteiro do desfile das agremiações, a quantidade de casas no centro da fuzarca ainda disponível para aluguel, as verbas da prefeitura para o evento e assim por diante. Foi então que se soube da grande novidade e seu aparente desfecho. Acontecera que o “Nem um Direito a Menos”, proclamado como o mais radical dos movimentos feministas, havia encaminhado, semanas atrás, à diretoria do bloco “O Garanhão e a Piranha da Meia Noite”, mais conhecido por Garapira, uma demanda enérgica, e ao mesmo tempo discreta, a ponto de passar despercebida inicialmente pelos jornalistas. Exigia que fosse mudado imediatamente o nome do bloco. A justificativa apoiava-se na palavra “piranha” que, segundo o ponto de vista da presidente do movimento, buscava desmerecer e estigmatizar as profissionais do sexo, indo, por consequência, de encontro a uma de suas bandeiras. Outra reivindicação menos contundente era quanto à ordem dos gêneros: “Por que sempre “o garanhão e a piranha”, ao invés de “a piranha e o garanhão”? Já era tempo de as mulheres – até pela sua importância na história da humanidade – serem citadas em primeiro lugar. Ontem o pedido havia sido negado, sem maiores justificativas e, segundo a presidente, em tom de galhofa.

Longe dali, no outro lado da cidade, Pureza reflete mais uma vez sobre seu casamento de apenas dois anos. Os quatro primeiro meses foram ótimos. A maioria das posições do Kama Sutra foram praticadas, algumas exigiam uma condição atlética além dos limites do casal. Aprendeu todas as “modernidades” do sexo. Depois, a rotina. Há pouco, ouvira falar de coisas como o tal do “swing”, do ménage à trois, à quatre ou même à cinq, que poderiam apimentar e até recuperar uma relação desgastada. Achou que não havia abertura suficiente para conversar sobre isso com o agora circunspecto marido. O fato é que a paixão se fora e, para piorar a situação, não conseguia encontrar qualquer fiapo que lhe prendesse ao marido. Nem um filho, nem nada.

  • Salete Oliveira, engª química, poeta, contista, ensaísta.

 

Escarafunchando baús

Escarafunchando baús encontrei fragmentos de viagens pelos mares das palavras que, embora amarfanhados, permaneciam registros vivos, pulsantes, de grandes momentos vividos.

Uma delas foi a de 15 de abril quando Paulo Tadeu, viageiro de longas datas, nos levou a poeta portuguesa Florbela Espanca com o poema Tarde no Mar.

Tarde no Mar
Florbela Espanca

A tarde é de oiro rútilo: esbraseia
O horizonte: um cacto purpurino.
E a vaga esbelta que palpita e ondeia,
Com uma frágil graça de menino,

Poisa o manto de arminho na areia
E lá vai, e lá segue ao seu destino!
E o sol, nas casas brancas que incendeia.
Desenha mãos sangrentas de assassino!

Que linda tarde aberta sobre o mar!
Vai deitando do céu molhos de rosas
Que Apolo se entretém a desfolhar…

E, sobre mim, em gestos palpitantes,
As tuas mãos morenas, milagrosas,
São as asas do sol, agonizantes…

Este vídeo fala de Florbela Espanca, da sua importância para o mundo literário, dos problemas emocionais que culminaram com o seu suicídio ao 36 anos de idade, apenas.

Em seguida, como era uma semana para nós cristãos de muito siso e pouco riso, dirigimos o leme para o Uruguai e ali escolhemos um roteiro mais denso. Começamos com o conto O Outro Eu, de Mario Benedetii,  que numa narrativa breve, eu diria até brevíssima,  extremamente interessante,  trouxe mais uma vez,  à Oficina, a questão do duplo, tão intensamente analisada quando lemos Wilson, Wilson, de Edgar Alan Poe.

O Outro Eu

(A morte e outras surpresas, 1968)

Mário Benedetti

Tratava-se de um rapaz comum: usava calças da moda, lia gibis, fazia barulho enquanto comia, cutucava o nariz com o dedo, roncava durante a soneca, se chamava Armando Corrente em tudo menos em uma coisa: tinha um Outro Eu.

O Outro Eu usava certa poesia no olhar, se apaixonava pelas atrizes, mentia cautelosamente, se emocionava com o entardecer. O rapaz se preocupava muito com seu Outro Eu e o fazia se sentir incomodado diante de seus amigos. Já o Outro Eu era melancólico e, por causa disso, Armando não podia ser tão vulgar quanto desejava.
Uma tarde Armando chegou cansado do trabalho, tirou os sapatos, moveu lentamente os dedos dos pés e ligou o rádio. Estava tocando Mozart, mas o rapaz dormiu. Quando acordou, o Outro Eu chorava desconsoladamente. Em um primeiro momento, o rapaz não soube o que fazer, mas depois se refez e conscientemente insultou o Outro Eu. Este não disse nada, mas na manhã seguinte já havia se matado.

No começo, a morte do Outro Eu foi um duro golpe para o pobre Armando, mas depois ele pensou que agora sim poderia ser inteiramente vulgar. Esse pensamento o reconfortou.

Levava apenas cinco dias de luto quando saiu pelas ruas com o propósito de exibir sua nova e completa vulgaridade. De longe viu que seus amigos se aproximavam. Isso o encheu de felicidade e o fez imediatamente explodir em risadas. Entretanto, quando passaram próximo dele, seus amigos não notaram sua presença. Para piorar, o rapaz pôde escutar que comentavam: “Pobre Armando. E pensar que parecia tão forte e saudável”.

O rapaz não teve outro remédio que parar de rir e, ao mesmo tempo, sentiu na altura do peito uma aflição que se parecia muito a nostalgia. Mas ele não pôde sentir uma autêntica melancolia, porque toda a melancolia tinha sido levada pelo Outro Eu.

A viagem seguinte foi pelo quarto de Sútulin, na Rússia, que ao aplicar o conteúdo de uma bisnaguinha escura, fininha, em seu quarto, começou a vê-lo crescer, crescer, de forma incontrolável. Trata-se de um conto de Sigismund Krzyanowski, que permaneceu quase toda a sua vida sem ser reconhecido,  cuja  narrativa bem se enquadra no fantástico maravilhoso hiperbólico, segundo Todorov, em que o exagero das dimensões daquele quarto vão criando tensão, asfixiando o leitor,  apesar de  consciente de sua irrealidade. Fantástico! Alguns vídeos e filmes foram feitos baseados nesse conto.  Aqui está um deles, excelente.

Os outros fragmentos ficarão para outra postagem.

Jaboatão dos Guararapes, 23 de maior de 2017

Lourdes Rodrigues

 

 

 

Viagem Sexta pelo Riso

 

Viagem Sexta pelo Riso

*Luzia Ferrão

O viageiro Sarmento, no Momento Poético, relembrou um passado que não passou e que continua muito vivo ainda em nossas lembranças, com a poesia Operário em Construção, de Vinicius de Moraes. Certamente este poema, parafraseando o próprio poeta, será imortal enquanto dure, enquanto dure a exploração do homem pelo próprio homem, eu acrescentaria.

O operário de construção, semelhante a um pássaro sem asas, subia com as casas que lhe brotavam das mãos. Estávamos vivendo um Brasil ditatorial cruel que não permitia –aos operários/povo- reconhecer o valor do seu trabalho. Vinicius mostra esse desconhecimento ao dizer: Como podia o operário compreender porque um tijolo valia mais que um pão? Como também desconhecia que o operário faz a coisa e a coisa faz o operário. Os ditadores não conseguiram impedir que pelas mãos desse humilde operário nascesse  um mundo novo, adquirindo a dimensão da poesia que ia aos poucos sendo derramada nos corações dos outros operários. E o operário disse NÃO! Um não que custou a ele e seus companheiros bárbaros tratamentos, pau de arara, choque elétrico, morte, sem direito à família de velar o seu defunto, restando a esperança de que novos tempos viriam. Muitas águas passaram por debaixo da ponte, mas a violência não conseguiu que o operário deixasse de enxergar, de agigantar-se, vendo em tudo que fazia o que de fato acontecia: o lucro do patrão. Neste poema, Vinicius descreve o processo de tomada de consciência do operário, partindo do pressuposto marxista de alienação.

 

O OPERÁRIO EM CONSTRUÇÃO
(Rio de Janeiro,1959)

Vinicius de Moraes

E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo:
– Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu.
E Jesus, respondendo, disse-lhe:
– Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.
Lucas, cap. V, vs. 5-8.

Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.

De fato, como podia
Um operário em construção
Compreender por que um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia…
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento
Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse, eventualmente
Um operário em construção.

Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
– Garrafa, prato, facão –
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.

Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.

Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
– Exercer a profissão –
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.

E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.

E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Que sempre dizia sim
Começou a dizer não.
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:

Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uísque do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.

E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução.

Como era de se esperar
As bocas da delação
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão.
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação
– “Convençam-no” do contrário –
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isso sorria.

Dia seguinte, o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu, por destinado
Sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!

Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras se seguiram
Muitas outras seguirão.
Porém, por imprescindível
Ao edifício em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.

Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário.
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
– Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.

Disse, e fitou o operário
Que olhava e que refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
O operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!

– Loucura! – gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
– Mentira! – disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.

E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão.

Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção.

Nem precisa ser muito ligado em literatura para gostar do diplomata, jornalista, compositor (dos bons), poeta Marcus Vinicius de Mello Moraes, ou Vinicius de Moraes, como era mais conhecido, ou  simplesmente poetinha, como o chamava Tom Jobim. Era como poeta e compositor,  através de sonetos e de canções,  que ele gostava de ser reconhecido. Carioca da gema, sessenta e seis anos vividos intensamente, casou nove vezes, era um boêmio curtindo a vida carioca com cigarro e uísque.

É difícil elencar a obra deste gênio brasileiro, por isso escolhemos citar trechos de algumas delas para ilustrar a poesis do branco mais preto do Brasil

Soneto da fidelidade

De tudo ao meu amor serei atento
Que ele seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure

Samba da benção

È melhor ser alegre que ser triste
A alegria é a melhor coisa que existe
Mas pra se fazer um samba com beleza
é preciso um bocado de tristeza
Se não, não se faz um samba não
A vida é arte do encontro
Embora exista tantos desencontros pela vida

Cantos de Ossanha

Não vou eu não sou ninguém de ir
Em conversas de esquecer a tristeza
De um amor que passou
Não eu sou vou se for pra ver
Uma estrela aparecer
Na manhã de um novo amor

Rosa de Hiroschima

A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa, sem nada

Onde anda você

E por falar em saudade
Onde anda você
Onde andam seus olhos que a gente não vê

Minha namorada

Mais se em vez minha namorada
Você quer ser minha amada
Minha amada, mais amada pra valer
Aquela amada pelo amor predestinada
Sem a qual a vida é nada
Sem a qual se quer morrer

Garota do Ipanema

Vejam que coisa mais linda
Mais cheia de graça
é ela menina
que vem e que passa
no doce balanço
A caminho do mar

Samba em preludio

Eu sem você não tenho nem porque
Porque sem você
Não sei nem chorar
Sou chama sem luz
Jardim sem luar

Sarmento continuou alimentando o grupo sedento de poesia, dessa feita com os poemas de Geir Campos, Tarefa e Alba, seguindo a mesma trilha de poesia de denúncia social, poesia comprometida politico e socialmente.


Tarefa

Morder o fruto amargo e não cuspir
mas avisar aos outros quanto é amargo,
cumprir o trato injusto e não falhar
mas avisar aos outros quanto é injusto,
sofrer o esquema falso e não ceder
mas avisar aos outros quanto é falso;
dizer também que são coisas mutáveis…
E quando em muitos a noção pulsar
— do amargo e injusto e falso por mudar —
então confiar à gente exausta o plano
de um mundo novo e muito mais humano.
(1957)

**Alba

Não faz mal que amanheça devagar,
as flores não têm pressa nem os frutos:
sabem que a vagareza dos minutos
adoça mais o outono por chegar.
Portanto não faz mal que devagar
o dia vença a noite em seus redutos
de leste – o que nos cabe é ter enxutos
os olhos e a intenção de madrugar.
(1957)

O poeta Geir Canpos é capixaba, membro do partido comunista, engajado nas lutas políticas e sociais., formado em Teatro e Doutor em Comunicação Social. Talvez por suas posições políticas  foi pouco difundido pela mídia. Poeta, livreiro, tradutor, faz parte dos poetas da chamada geração 45, destacava-se pelo rigor literário e estético.. Foi um dos fundadores da editora Hipocampo, junto com o poeta Thiago de Melo, para difundir suas obras de forma artesanal. Marcou presença também como um dos organizadores dos Cadernos do Povo Brasileiro, Violão de Rua, publicados pelo Centro Popular de Cultura da UNE.

. “A poesia de Geir Campos tem circulação, ousadia e canto. Ninguém pode equivocar-se: aproximando o ouvido, sentimo-la como um rumor de cristal errante, sentido e som da poesia verdadeira.” (Pablo Neruda)

**Alba significado: Claridade que precede ao nascer do dia

Seguindo com a Oficina, outro pilar dos trabalhos foi iniciado com a leitura dos contos escritos pelos seus participantes, os viageiros pelos mares das palavras. Três contos estavam previstos para serem lidos, sendo seus autores eu,  Salete e Eleta. A Oficina procura estimular a criatividade e o exercício da lapidação das palavras, para que  os viageiros  se tornem  artesãos da escrita. trabalhando técnicas de ensaio, contos, novelas ou outras, sobre temas acordados entre seus pares. Neste dia o tema foi o do  triangulo amoroso, com  o constrangimento da duplicação, em que uma história estaria sendo contada e outra estava ocorrendo ao mesmo tempo, tão ou mais importante do que a primeira. A ideia do constrangimento decorre da concepção Oulipiana de limitar a escrita a alguma condição anterior.

Iniciando a leitura dos contos por mim, Luzia, com  o conto Corações na Bananeira, que gerou um debate profundo sobre a construção do tema, entendimento dos personagens, linguagem poética, ortografia, gramatica, ineditismo.O tempo da oficina esgotou-se sem as demais leituras programadas e sem a conclusão da análise do meu conto. Por conta disso, algumas sugestões foram apontadas para maximizar o tempo para as análises das narrativas, entre elas,  a da leitura antecipada, cada participante traria a sua análise para que melhor fosse aproveitado esse importante momento literário.

*Luzia Ferrão, professora universitária, assistente social, contista, ensaísta.

**Alba significado: Claridade que precede ao nascer do dia

Cajueiro

castanhacoracaocajueiro060916Cajueiro

*Salete Oliveira

o tempo não para,
sem pressa, sem demora, é preciso
gastar o tempo, precioso, eu preciso,
vejo-o passar, minutos, segundos,
colho os instantes, a observar,
germinar de uma castanha,
alegria serena ao olhar,
delicadeza envoltura,
em folhas se abrirá,
ainda não hoje,
amanhã,
o coração,
desabrocha
broto, amor,
acolhe a chuva,
ilumina-se ao sol,
raízes crescem sob o chão,
flores brancas rosadas, miúdas,
desprendem seu perfume ao vento,
surpresas de cachos, profusos frutos,
suculenta carne, castanha, cajueiro.

 

*Salete Oliveira é engenheira química, poetisa, contista.

Hoje é Inverno

 

lua2 (1)Hoje é inverno

*Salete Oliveira

vi a lua se por ainda crescente
vi o horizonte cinza ao redor
não se distinguia o nascente
silêncio vestia a espera do sol

luzes tênues romperam o cinza
trinados festejaram o amanhecer
o vento rápido tal um pensamento
volteou a soprar o alvorecer

pássaros cantavam à luz nascente
acorde sol, deixe de preguiça
a lua se esconde, crescente
enquanto a aurora, se antecipa

o tempo corre em luz esmaecente
nessa primeira manhã de inverno
o vento zune, assoviando anuncia
a lua voltará cheia, ao poente.

*Salete Oliveira é engenheira química, poetisa, contista.

O Patinho Feio em Cordel

DIFERENTE

*Salomé Barros

Eu já nasci estressado
Assustado e carente
Não queria abrir os olhos
Pra não ver o ambiente
Aos poucos fui descobrindo
Que eu era diferente

Minha mãe me acolheu
Mas me disse paciente
Demorou tanto a nascer
Que o ovo ficou quente
Os outros patos nasceram
Comigo foi diferente

Meu pai nem olhou pra mim
Deixando-me reticente
Tentei aproximação
Me tornando obediente
Mesmo assim me rejeitou
Só porque sou diferente

Meus irmãos eram bonitos
Tinham fama condizente
Formavam com os amigos
Um bando muito contente
E eu vivia sozinho
Só porque sou diferente

Um pensamento me vinha
De forma intermitente
Me deixava inquieto
Anuviava a mente
Seria eu o culpado
Por ser feio e diferente?

No íntimo eu buscava
A resposta coerente
Tudo era nebuloso
Deve estar no inconsciente
Fica ainda mais difícil
Só porque sou diferente

Aí divaguei de mais
Parece que estou demente
No meu reino não existe
Nem ego, nem consciente
E muito menos divã
Pra tratar o diferente

Um dia criei coragem
Fugi dali simplesmente
Perguntava a mim mesmo
E à estrela cadente
Qual era a explicação
Por eu ser tão diferente

Depois de caminhar muito
De manhã ao sol nascente
Vi um bando lá num lago
Brincando alegremente
Me aproximei com receio
Pensando: sou diferente

Qual não foi minha surpresa
E não mais que de repente
Percebi que me olhavam
Com um jeito atraente
Até que enfim me encontrei
Aqui não sou diferente

*Psicóloga, cronista, cordelista.

Viageiros em Ação

Lembrar é relembrar

*Luzia Ferrão

Relembrar pra que? Lembro, lembro e lembro
Não queria, mas…. lembro
É um relógio que não para, acho que mesmo sem querer
dou cordas, digo que não quero, não gosto mas porque continuo?
Eu tenho a chave para desliga-lo e porque não o faço?
Era uma vez, ou seja, não era nenhuma vez,
Dançava, rodopiando a música, composta de acordes inexistentes
Explodia em centelhas de prazer, riso permanente na face,
não era sonho era a realidade do sonho
meu vira-lata querido sujava tudo, acordei e ele havia partido
o sonho do grande amigo ficou prenhe na realidade
Passei pelo lindo, assombroso, misterioso museu, sonhei e fui arrastada
Convivi com cores misturadas e puras
Não existia diferença tudo era sonho e realidade

 

* Luzia Ferrão – professora universitária, assistente social, contista, ensaísta.

 

Poesia, às Quartas-Feiras

Quarta-feira, dia 18 de novembro, Salete, viageira poeta sempre presente nesse blog, trouxe-nos o gaúcho Mário Quintana, tanto alguns poemas como dados biográficos. Quem melhor definiu esse grande mestre da literatura poética foi Manuel Bandeira:

Meu Quintana, os teus cantares
Não são, Quintana, cantares:
São, Quintana, quintanares.

Quinta-essência de cantares…
Insólitos, singulares…
Cantares? Não! Quintanares!

Quer livres, quer regulares,
Abrem sempre os teus cantares
Como flor de quintanares.

São cantigas sem esgares.
Onde as lágrimas são mares
De amor, os teus quintanares.

São feitos esses cantares
De um tudo-nada: ao falares,
Luzem estrelas luares.

São para dizer em bares
Como em mansões seculares
Quintana, os teus quintanares.

Sim, em bares, onde os pares
Se beijam sem que repares
Que são casais exemplares.

E quer no pudor dos lares.
Quer no horror dos lupanares.
Cheiram sempre os teus cantares

Ao ar dos melhores ares,
Pois são simples, invulgares.
Quintana, os teus quintanares.

Por isso peço não pares,
Quintana, nos teus cantares…
Perdão! digo quintanares.

Além de poeta, cronista, autor de literatura poética infantil Quintana foi um grande tradutor, trazendo para o português obras fundamentais da literatura como Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, Mrs. Dalloway, de Virgínia Woolf, Contos e novelas, de Voltaire, vários romances de Honoré de Balzac, Somerset Maugham, Graham Greene, Guy Maupassant, Conrad, entre outros.

Apesar de seu grande valor literário, não conseguiu ser aceito na Academia Brasileira de Letras. Na sua terceira tentativa ele compôs o seguinte poema:

Poeminho do Contra

Todos esses que aí estão
Atravancando meu caminho,
Eles passarão…
Eu passarinho!
 
(Prosa e Verso, 1978)

Os poemas lidos na Oficina por Salete foram esses:
 

Os caminhos estão cheios de tentações

*Mário Quintana

Os caminhos estão cheios de tentações.
Os nossos pés arrastam-se na areia lúbrica…
Oh! tomemos os barcos das nuvens!
Enfunemos as velas dos ventos!
Os nossos lábios tensos incomodam-nos como estranhas mordaças.
Vamos! vamos lançar no espaço – alto, cada vez mais alto! – a rede das estrelas…
Mas vem da terra, sobe da terra, insistente, pesado,
Um cheiro quente de cabelos…
A Esfinge mia como uma gata.
E o seu grito agudo agita a insônia dos adolescentes pálidos,
O sono febril das virgens nos seus leitos.
De que nos serve agora o Cristo do Corcovado?!
Há um longo, um arquejante frêmito nas palmeiras, em torno…
A Noite negra, demoradamente,
Aperta o mundo entre os seus joelhos.

*Mario Quintana – Aprendiz de Feiticeiro, 1950

A Pálpebras Estão Descidas

Mario Quintana

As pálpebras estão descidas
E as mãos em cruz sobre o peito…
Mas quem é que pisa em vidros?
Quem estala os dedos no ar?
As pálpebras estão descidas.
Não mastigues folhas secas!
Não mastigues folhas secas,
Que te pode fazer mal…
– Quem é que canta no mar? ?
As mãos repousam no peito.
E eu quero ver se bem cedo
Pescam meu corpo em Xangai.

Encontrei no You Tube uma das últimas entrevistas de Mario Quintana que posto aqui neste blog.

Poesia, às Quartas-Feiras

Na quarta-feira, 11 de novembro, a nossa viageira Cacilda Portela nos trouxe algumas notas sobre a leitura que estamos fazendo de Os Moedeiros Falsos, de André Gide e um poema de Fernando Pessoa, Não me Importo com as Rimas.

O romance de André Gide tem nos empolgado nos últimos meses, trata-se de uma obra com mais de 400 páginas, instigante, engenhosa, de estrutura moderna, inovadora, onde a narrativa é em mise en abyme, termo francês usado, pela primeira vez, pelo próprio autor para descrever as narrativas que contêm outras narrativas dentro de si.O Mise en abyme não é um privilégio da Literatura, a técnica pode ser usada na pintura, no cinema, entre outras artes.

As notas escritas por Cacilda Portela sobre o tema de Os Moedeiros Falsos:

OS MOEDEIROS FALSOS: UM ROMANCE DE IDEIAS

*Cacilda Portela

  PARTE I – O TEMA

  •  A história de Os Moedeiros Falsos é narrada, quase sempre, através de conversas e monólogos interiores, o que evidencia uma ficção que não vive do enredo, mas da vida interior dos personagens. São as ideias que encaminham as ações e o movimento.
  • O romance não tem um tema predominante que se concretize na ação. Não há uma ideia global que sustente o planejamento e a ação. Os temas ou as histórias são relativamente simples, mas construídos por ideias particularmente elaboradas e muito engenhosas. As histórias dos personagens se interligam criando a história do romance. Ou melhor, as ideias criam os personagens e o romance.
  • Apesar de não ter um tema predominante, o romance traz com certo nível de profundidade a luta entre os fatos propostos pela realidade e a realidade ideal ou a  luta entre o que o mundo real oferece e o que é feito com a deia que se tem dele.  A rivalidade entre o mundo real e a representação que é feita dele cria o falso como impossibilidade de compreensão de si mesmo (e do outro). “E  o drama da vida consiste na maneira pela qual o mundo real se impõe a nós e a maneira pela qual tentamos impor ao mundo exterior a nossa interpretação particular”.

 

Essas notas serão ampliadas por Cacilda Portela e por outros viageiros, eu inclusive, mas o material aqui exposto já permite a discussão na Oficina sobre o tema do romance.

No momento poético ela nos trouxe uma poesia do heterônimo de Fernando Pessoa, Alberto Caeiro, Não me importo com as rimas, considerado o heterônimo das poesias de aparência simples, mas que envolve certa complexidade filosófica.

Não me importo com as rimas.

Alberto Caeiro

Não me importo com as rimas. Raras vezes

Há duas árvores iguais, uma ao lado da outra.

Penso e escrevo como as flores têm cor

Mas com menos perfeição no meu modo de exprimir-me

Porque me falta a simplicidade divina

De ser todo só o meu exterior

Olho e comovo-me,

Comovo-me como a água corre quando o chão é inclinado,

E a minha poesia é natural corno o levantar-se vento…

 

 

 

* Cacilda Portela é advogada, pesquisadora social, ensaísta.

 

Poesia, às Quartas-Feiras

Na última quarta-feira tivemos dois poetas: um da casa, da nossa Oficina, o que muito me orgulha, da nossa viageira Eleta Ladosky ; e Affonso Romano de Sant’anna, poeta, ensaísta consagrado.

Esta postagem se refere ao poema de Eleta Ladosky Como posso estar sozinha,  construído, segundo ela, em um momento recente, em que se sentiu em pânico com a possibilidade de ter que se hospitalizar, estando os filhos distantes, e tendo que deixar o marido sozinho com cuidadores. Diante do pânico que começava a se instalar, ela buscou refúgio dentro dela mesma e começou a construir os versos que ora aqui estão. A poesia salvou-a do hospital, com certeza, porque ela não precisou ir, recuperando-se completamente.

Os poemas de Affonso Romano serão postados depois por Salomé que os trouxe à Oficina e deles falará.

 

Como posso estar sozinha

Eleta Portela Ladosky

Como posso estar sozinha
Com tantas sombras à vagar
A tua voz criancinha
Teu jeito de caminhar

Como posso estar sozinha
Com tantos sons à gritar
Riso, pranto, melodia
Mesmo sonhos sem vingar

Como posso estar sozinha
Com tanta memória à guardar
Sol, mar, maresia
Tantas noites de luar

Tanta vida já vivida
Que teima em continuar
Presente, e sempre tão viva
Como posso estar sozinha

.