
Notícias e Metáforas em Clarice Lispector
Fernando Gusmão
Só uma escritora diferenciada, por muitos comparada a Virgínia Woolf e a James Joyce, poderia se dar ao desplante de iniciar um romance com uma vírgula e terminá-lo com dois pontos. Como em Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres:
, estando tão ocupada, viera das compras de casa que a empregada fizera às pressas porque cada vez mais matava o serviço, embora só viesse para deixar almoço e jantar prontos[…]
…
–Eu penso, interrompeu o homem e sua voz estava lenta e abafada porque ele estava sofrendo de vida e de amor, eu penso o seguinte:
Na Oficina de Criação Literária Clarice Lispector encontrei esse ser de mistério chamado Clarice. Autora diferente, sua escrita é dotada de ângulos, aspectos e faces mais que enigmáticas, misteriosas. Mistério! Ou charada? Textos herméticos, permeados por silêncios, numa alquimia linguística habitada por sentidos tácitos e quebras de regras, inclusive de pontuação, onde se procura um enredo e, em certas ocasiões, depara-se com um desenredo.
Muito já se falou e se escreveu sobre ela. O motor de busca Google informa mais de cinco milhões de páginas digitais que citam ou falam de Clarice. O que eu poderia dizer sobre ela que ainda não foi dito? Só posso afirmar que, do que já li de sua obra e das notícias que a mim chegaram, algumas ocorridos são marcantes. Por exemplo, minha sobrinha-neta Clarice, também neta da colega de Oficina Adelaide Câmara, tem seu nome numa homenagem de Roberta, a mãe, à notável escritora. Outra coisa, a obra de Clarice, mesmo não sendo fácil, teve, até hoje, mais de duzentas traduções para mais de dez idiomas. Universidades pelo mundo afora, com destaque para os Estados Unidos e Portugal, oferecem cursos sobre sua criação literária. Quem entende diz que três fatores explicam essa notável aceitação de Clarice Lispector por leitores estrangeiros: o substrato universal de sua literatura, sua atividade como jornalista e o trânsito internacional da autora.
Casada com um diplomata, falava sete idiomas e viajou muito. Morou em Nápoles, na Itália, na Suíça, na Inglaterra e em Washington, nos Estados Unidos. Sua atividade como jornalista e tradutora a levou a trabalhar no Jornal do Brasil, no Correio da Manhã, no Diário da Noite e nas revistas Senhor, Manchete e Fatos e Fotos. Escreveu quatorze romances, quase quinhentas colunas, publicou mais de cem textos e trezentas crônicas. Atuou, em 1952, no tabloide antigetulista Comício, com os pseudônimos de Tereza Quadros e Helen Palmer.
Considerava-se recifense, mas nasceu, a 10 de dezembro de 1920, em Chechelnyk, na Ucrânia e teve como nome Chaya Pinkhasovna Lispector. Chegou ao Brasil em 1922, entrando por Maceió, vindo, de lá, para o Recife, onde virou Clarice e viveu até os 14 anos num sobrado da praça Maciel Pinheiro, na Boa Vista. No conto Felicidade Clandestina conta a história de uma menina do Recife apaixonada por Monteiro Lobato. Aqui, fez o curso primário no Grupo Escolar João Barbalho e estudou no Ginásio Pernambucano. Depois, foi com a família para o Rio de Janeiro, onde cursou Direito.
No que diz respeito ao substrato universal de sua literatura, aprendi com Carlos Eduardo Pinto Carvalheira, no artigo A Literatura em Clarice e a Psicanálise em Lacan, que, ao analisar as epifanias na singularidade de Clarice, Joyce ou Lacan, focaliza também algo de essencial e comum que está presente na maioria das epifanias dos três, que são as metáforas de não suposição, ou de negação, também conhecidas como metáforas de colisão… Pode-se perceber que há algo de comum nas epifanias dos três: todos três falam epifanicamente – têm na língua o mesmo corte espantoso do Zen. Mas Clarice, no silêncio de sua estranha e poética língua – em carne viva, no Real, nos beija – nos beija divinamente… diabolicamente.
Ouve-me, ouve o silêncio. O que te falo nunca é o que eu te falo e sim outra coisa. Capta essa coisa que me escapa e, no entanto, vivo dela e estou à tona de brilhante escuridão […]
Cortes como estes, no meu entendimento, provocam a quebra da lógica racional evitando o comum, o usual, o concordante. Despertam o leitor para uma iluminação súbita ou cheia de graça. Como o palhaço engraçadamente faz rir a criançada —e alguns poucos adultos— quando, ao caminhar, tropeça nos próprios pés e cai, epifanicamente, de cara no chão, exemplo maior de uma metáfora de colisão.
Só que, lembra, ainda, Carlos Eduardo Pinto Carvalheira:
Clarice escreve com o corpo sangrando de angústia – em carne viva. A epifania de Clarice não tem como objetivo a felicidade, mas sim a iluminação súbita de sua verdade avassaladora, em contraste com a futilidade da vida.