Clarice, sua leitura
Salete Oliveira
A gente tem o direito de deixar o barco correr. As coisas se arranjam, não é preciso empurrar com tanta força.
Sou leitora desorganizada, não guardo datas nem faço anotações, minhas memórias organizam-se em geral junto a outros acontecimentos… não sei quando nem onde li Clarice pela primeira vez, mas lembro o visceral impacto que foi ler A via crucis do corpo e da agonia de acompanhar Macabéa em A hora da estrela, da surpresa e dor que senti por sua morte, e da minha não aceitação.
Li crônicas nas revistas ao tempo que saíam semanalmente; seu primeiro romance Perto do coração selvagem li recentemente.
Da literatura infantil, lera à época de filhos na escola, A vida íntima de Laura. Ultimamente li A mulher que matou os peixes, proposto e disponibilizado pela colega Graça Lins, estudiosa da obra literária infantil de Clarice; interessante foi ler pela primeira vez junto com meu neto de oito anos, que fez sua análise crítica.
Não esmiucei sobre sua vida, mas sempre soube ter morado em Recife em sua infância, onde se fez brasileira após aqui chegar estrangeira, onde viveu seus desejos de menina fantasiada à porta de casa para brincar um carnaval; de onde saía de madrugada à praia em Olinda. Ela se fez tão perto e tão próxima com sua casa ali na Praça, fonte à frente, a brincar nas ruas do Bairro da Boa Vista, a gente a passar na calçada e a se dizer, aqui morava Clarice Lispector. Esse pertencimento às ruas do Recife, tal Bandeira e João Cabral, Josué de Castro, nesse caminhar e atravessar as pontes do Recife, as mesmas que atravessamos, faz que ela também nos pertença e a ela nos refiramos como a uma vizinha.
Vi uma peça sobre ela no Teatro Santa Isabel, Beth Goulart a incorporou em interpretação extasiante; rimos, nos encantamos, sofremos e choramos na platéia, adrenalina não faltou em sua vida, além de nicotina, como fumava!
A paixão segundo G.H. ficou anos à espera de ser lido. Na Oficina de Criação Literária Clarice Lispector o lemos enfim em 2018, aceito após instigarmos o grupo, com viageiros divididos sobre sua leitura ou não. Eu sabia que era um livro para ser lido com a coragem de um grupo; foi essencial ter companhia para o ler junto, mesmo que da metade para o final viajei e o lia sozinha mas havia o grupo para discutir e me apoiar, trocar figurinhas mesmo que do outro lado do mundo.
Em março de 2019, o colega Júnior enviou um presente por e-mail, um arquivo com Todas as Crônicas, que passei a ler devagarinho. Ah Clarice! não são apenas crônicas, são viagens ao interior, dela própria e nosso, passei a parar e me extasiar e muitas vezes a reler a mesma crônica ou trechos delas, refletir sobre memórias.
Clarice passou a ser minha companhia diariamente quando deitava, de novo no Japão de setembro a dezembro/2019, como uma melhor amiga que nos ouve e nos ajuda a pegar no sono diante de tantas preocupações na cabeça em momentos difíceis. A me inspirar mais uma vez, como ser vivente, com suas dúvidas, ansiedades e agonias nas escolhas, com indignações diante do que se vê no mundo, ou enfados, retraimentos, incertezas, mas também encantamento diante do belo. Mas acima de tudo, com a fé no humano, na busca de si e ser quem se é, no caminho. Afinal, a vida é apenas uma, e muitas vezes há que se provar do que não se gosta e enfrentar o medo e seguir, seguir e seguir. És crê ver, escrever, deixar sair aos borbotões até se esvaziar das agonias e ter momentaneamente alguma paz, diminuir angústias, esvaziar a cabeça, matar a fome.
Gratidão a Clarice, que nos inspira e nos dá essa permissão de escrever sobre o que seja, sem maiores cobranças de publicar ou agradar, escrever por necessidade.