O PATINHO MANCO
*César Garcia
É sabido que o andar do pato é o mais deselegante dos andares de todos os animais. Digo é sabido, mas só vim tomar conhecimento disso muito depois do meu nascimento. Até então, coxo, pensava que só eu andava de modo ridículo. Meus irmãos aproveitavam-se do fato para me torturar e me excluir dos jogos e brinquedos. Meu pai era omisso e minha mãe tentou defender-me até certa idade e então desistiu. Disse-me que procurasse me divertir de outras formas, sem a companhia dos perversos. Não quis aceitar logo, mas acabei convencendo-me de que devia enfrentar o mundo unicamente com minhas forças, pois a maldade existia por todos os lados. O mundo era dos mais fortes, tudo bem, mas se eu não lutasse, esperando por atos solidários de alguém, eu sucumbiria na solidão das pequenas poças d’água. Tratei de prestar atenção aos costumes de outras espécies. Os cavalos carregavam os homens pra lá e pra cá; os cães latiam à toa, ou preocupados, quando alguma pessoa se aproximava; as ovelhas eram tosquiadas a cada verão. Tinham comida garantida, mas sua liberdade era vigiada de perto ou não tinham nenhuma. Eram úteis para os homens, mas não podiam sonhar com uma vida muito diferente. E eu? Poderia ter alguma aspiração? Andava mal, com uma pata mais curta do que a outra; pela mesma razão, nadava meio esquisito, sem muita velocidade; conseguia voar até bem, para um pato manco, e disso me aproveitei para ir além dos limites da lagoa em que morava. Talvez possa dizer que foi minha salvação. Conheci assim muitas lagoas, primeiro as mais próximas, depois outras mais distantes. Conheci patos iguais a mim que nem sempre eram hostis e me aceitavam em seus grupos. Perguntavam como eu conseguira chegar até ali e eu lhes dizia simplesmente: voando. Notei que alguns se surpreendiam porque eu não tinha aparência de grande atleta. Acontece que eles não tinham necessidade de voar muito, viviam bem na própria lagoa, ao contrário de mim, sozinho, sem amigos e com uma família que não ligava muito pra mim. Voar foi, portanto, um recurso decisivo na minha vida. Isto me permitiu desenvolver bem os músculos das asas e do peito. Numa dessas voanças, conheci uma galinha d’água que aprendera a falar a língua dos patos porque havia sido criada entre meus semelhantes. Tinha sotaque, mas justamente daí vinha seu charme. Começamos a nadar e a voar juntos em conversas que se tornaram interessantes porque não víamos as coisas da mesma forma. Por exemplo: eu não tinha medo da morte e ela não queria nem ouvir falar. Expliquei-lhe que depois da morte, não havia nada, não havia o que temer e ela respondeu: é justamente por isso que tenho medo, medo do nada. Ora, para mim, a frase não tinha sentido. Mesmo assim, não havia o que dizer, porque não era uma questão racional. Tive que aceitar seu medo do nada e ela conformou-se com meu jeito indiferente diante do que assombra todos os vivos. Ela gostava de voar sobre as copas das árvores e eu insistia para que ela ganhasse as alturas. Não queria. Cada diferença revelada era uma surpresa objeto de muita conversa. Um dia ela teve sensações estranhas e não quis voar. Escondeu-se entre os juncos deixando-se ficar quase imóvel. Seu jeito de olhar para mim de vez em quando despertou minha curiosidade e me atraiu para junto dela. Ninguém nos via, só o vento sussurrava nos juncos e eu não soube o que dizer, mas compreendi tudo quando ela levantou as penas de sua linda cauda. Algo estava errado, alguma convenção, talvez, mas nosso desejo foi mais forte: deitei-me sobre ela, prendi as penas de sua nuca com meu bico largo e juntei o que havia de mais íntimo em nossos corpos. O êxtase durou pouco e me desequilibrou. Ficamos ali, flutuando, nem sei quanto tempo, sem olhar um para o outro. Finalmente, perguntei: em que estás pensando, e ela, voltando-se para mim, disse: quero que ele nasça com minas longas pernas e com teu bico chato.
Casa Forte, 22 de fevereiro de 2016
- César Garcia é escritor. Livros de contos publicados: PACTO, em 2005; CARTAS DE VENEZA, em 2008; e BREVE INSTANTE, em 2011.