Miguel Torga

CONVERSA VAI, CONVERSA VEM… E A CARTA DE PEPA

Maria Adelaide Câmara

Por volta de julho de 2011, escutei meu amigo Ramires Cotias Teixeira falar com muita admiração do escritor Miguel Torga, para mim ainda desconhecido. Isso, naquele difícil e precioso decurso de tempo entre a idealização e a realização de um propósito:  Ramires planejava a organização, em módulos, de um curso de História da Literatura que expusesse o vasto e rico Panorama da Literatura Contemporânea de Língua Portuguesa (Brasil, Portugal, África), no Museu do Estado de Pernambuco.  Encurtando a história, sob a batuta de Renata Pimentel e Zuleide Duarte, a iniciativa foi um sucesso!

Mas voltemos ao ponto. Trazido para a Oficina, por Lourdes Rodrigues, NERO, sem coleira, plantou-se entre nós, oficineiros, e nos contou sua história. Deixou-nos de orelhas em pé, ora comovidos, ora envergonhados.  Bichoshomens, homensbichos que se entrelaçam no amor, na amizade, nas dores, nas paixões, nas traições, no desamparo final, fincados no centro da paisagem agreste.  Torgas e fragas, bonitas palavras. Não só, reclama Miguel, criador de Nero, parafraseando-se, cá estamos de novo plantados no centro de nossa paisagem como macieiras no centro de sua leira. Dum lado a escadaria que leva ao Doiro, e do outro o iceberg do Marão. O pouco que somos devemo-lo às fragas. Foi a pisá-las que aprendemos a conhecer a dureza do mundo e a alimentar o ímpeto que se não resigna à lisa sonolência de uma paz interior espalmada.

Liguei para Ramires. Nessas idas e vindas de conversa, combinei que  telefonaria com mais tempo para anotar o que ele me falava de Adolfo Correia da Rocha, nome de batismo do escritor e poeta português. E eis o que ele me envia por e-mail:

Prezada Adelaide:

A título de uma pequena e despretensiosa contribuição ao seu trabalho a ser postado no blog do Traço, redigi um pequeno texto sobre Miguel Torga, que lhe envio em anexo.

Trata-se de uma apreciação de um leigo sobre a vida e a obra de um dos maiores escritores portugueses, grande poeta e notável prosador.

Um abraço,

Ramires.

 

Miguel Torga

Ramires Cotias Teixeira

Torga foi um dos maiores escritores de Portugal. Um exemplo de vida, de coerência e de força de vontade. Nasceu em 12 de agosto de 1907, em São Martinho de Anta, uma pequena e pobre aldeia de Trás-os Montes, uma das mais inóspitas províncias de Portugal. Filho de camponeses analfabetos e extremamente pobres, aprendeu as primeiras letras em uma pequena escola de sua aldeia natal. Demonstrou sempre o desejo de aprender, lendo tudo que lhe caía nas mãos. Seu pai, que tinha um irmão no Brasil, proprietário de uma fazenda em Minas Gerais, tentou mandá-lo para o El Dourado da época, o Brasil. O tio recusou-se a receber o jovem Adolfo, alegando que cada um devia cuidar de seus filhos. Ante a recusa do tio “brasileiro”, foi trabalhar, sem qualquer remuneração, como porteiro (fardado de branco), menino de recados, faxineiro e outras atividades domésticas, até que, por insubordinação, foi demitido, sem nada receber pelos quase dois anos de trabalho.   A sua única opção foi seguir o destino dos jovens portugueses da época, com desejos de aprender: ingressou no Seminário de Lamego (aliás, o mesmo destino do seu futuro opositor, Salazar). Pouco tempo depois, comunicou ao pai que não queria ser padre. O velho Francisco voltou a pedir ao irmão que aceitasse o sobrinho em sua fazenda de café. Conseguido o intento, viajou com apenas 12 anos e sozinho para o Brasil.

Muito sofreu o jovem camponês, ao deixar uma esquecida aldeia transmontana com destino a uma terra desconhecida. Trabalhou cerca de 4 anos, sem remuneração, para o tio, sofrendo a má vontade da tia afim. Procurou estudar no Brasil, tendo frequentado uma escola, perto da fazenda,  onde distinguiu-se como aluno brilhante e interessado. Reconhecendo o tio o seu interesse em aprender e vencer na vida, prontificou-se a custear os seus estudos, levando-o de volta a Portugal. Cursou o Liceu em apenas 3 anos e ingressou na Universidade de Coimbra, por concurso, para frequentar o curso de medicina. Concluiu o curso médico em 1933, com apenas 26 anos. Exerceu a medicina, com especialização em Otorrinolaringologia, com consultório aberto ao público, na cidade de Coimbra. Ainda estudante, iniciou as suas atividades literárias com fundação da revista Presença, juntamente com José Régio, Branquinho da Fonseca e João Gaspar Simões (todos futuros luminares das letras portuguesas).

Nessa época, Adolfo Correia da Rocha, já tendo enveredado pela poesia, adotou o pseudônimo de Miguel Torga, com o qual se tornou conhecido como cultor das letras e assinou os seus mais de 50 livros, quase todos traduzidos em diversas línguas. O seu nome literário tem uma origem curiosa: Miguel é uma homenagem a dois expoentes da literatura ibérica: Miguel de Cervantes e Miguel de Unamuno, profundamente admirados  pelo escritor; e Torga é o nome de uma humilde e espontânea urze do campo, que cresce em solo agreste, particularmente nos penhascos e serranias. Dá flores brancas, arroxeadas ou cor de vinho. Seu caule é  incrivelmente retilíneo. Muito comum em Trás-os-Montes, suas raízes muito duras infiltram-se nas rochas montanhosas, insubmissas ao chão pedregoso. Da mesma maneira, o autor de Nero, o qual jamais se sujeitou ao obscuro sistema sociopolítico, à época, dominante.

É uma homenagem à sua terra natal, que anos depois retribuiu a honraria, plantando umas torgas no túmulo do escritor em São Martinho de Anta, onde ele repousa ao lado de sua mulher, a professora belga, especialista em literatura ibérica, Andrée Crabbé, que foi aluna de Vitorino Nemésio. O casal teve apenas uma filha, Clara Rocha, também escritora.

Atualmente, Miguel Torga é considerado, pela crítica especializada como um dos maiores poetas portugueses, destacando-se dentre os seus muitos livros de poesia Odes, Cântico do Homem, Orfeu Rebelde e Poemas Ibéricos. Além de grande poeta, Torga foi o maior contista português. Merecem uma leitura reflexiva, os seus Contos da Montanha, Novos Contos da Montanha e Bichos. Um estudioso de Torga não pode desconhecer a sua produção teatral, nem o romance Vindima e a novela O senhor Ventura. Muitos consideram as suas obras primas os 16 volumes do Diário, publicados ao longo da sua vida, que contêm textos antológicos, de reflexões de pensamentos, de crítica literária, de poesia, enfim, um retrato da sociedade portuguesa de 1951 a 1993, e o notável A Criação do Mundo, misto de memórias e ficção memorialística, dividido em 6 dias da criação, publicados entre 1937 e 1981, hoje enfeixado em um único volume de mais de 600 páginas.

Ao comentar a vasta produção de Torga, merece destaque a homenagem ao seu país
natal, o pequeno volume, mas grande livro, Portugal, uma descrição poética, em prosa, das várias províncias portuguesas.

Vale destacar, na vida de Miguel Torga, sua defesa da democracia e da liberdade, consubstanciada na tenaz luta contra o regime do Estado Novo salazarista, que lhe valeu prisão no Aljube, apreensão de livros, publicação de primeira edição fora de Portugal, como foi o caso de Novos Contos da Montanha, cujo beneficiário foi o Brasil, além de interferência governamental  para que Torga não fosse agraciado com o Prêmio Nobel, o que mereceu um comentário de Jorge Amado, em Prefácio:

Miguel Torga faleceu sem ter recebido o prêmio Nobel, injustiça sem tamanho. Entre os que trabalharam a língua portuguesa, na criação da poesia e da narrativa, o nome de Torga se destaca pela escrita invulgar e pelo conteúdo de uma literatura feita de humanismo.

Como contista, é insuperável. Sendo um escritor profundamente português em suas raízes e perspectivas, a obras do mestre de “Contos da Montanha” repercute igualmente no Brasil, abrindo caminho para os nossos autores.

Outro depoimento importante sobre Torga é o do embaixador e historiador Alberto da Costa e Silva, em Prefácio ao livro A Criação do Mundo:

A Portugal devo três dos entusiasmos dos meus dezessete anos: a poesia de Mário de Sá-Carneiro, o “Humus” de Raul Brandão e os contos de Miguel Torga. Deste, lembram-me ainda a surpresa e o deslumbramento com que li “Bichos”. E depois,  “Rua”. E em seguida, “Contos da Montanha”. E, mais tarde, vencido pela pureza das frases e a força do homem, os quatro primeiros volumes do “Diário”. Aqui estava distante do arco-íris de Sá-Carneiro e do ouro velho da prosa de Raul Brandão. Via-me a olhar pontas-secas, a seguir traços duros e firmes , completos em sua contenção e aparente simplicidade.

A Prof. Vilma Arêas, comentando o trabalho de Miguel Torga, fez a seguinte afirmativa:

Sua obra, ao mesmo tempo intuitiva e cerebral, está dividida entre a busca da individualidade e a partilha de um destino comum, almejando um universal só alcançado “após um mergulho no particular”.

Sua literatura tem “a marca da personalidade do criador” e suas raízes, que se parecem entre si e não se parecem com coisa alguma. Essa obra multifacetada- poesia, romance, teatro, ensaio, contos – tem forte conotação ética e exemplar e constrói uma epopeia do humilde, se podemos dizer assim, com seus heróis camponeses.

 

Para finalizar, vale a pena lembrar  o que o próprio Torga disse sobre si mesmo e a sua obra:

Cada qual procura-se onde se sente perdido. Eu perdi-me em Portugal, e procuro-me nele.

E mais:

Poeta, prosador, é na letra redonda que têm descanso as minhas angústias. Mas nem tudo se imprime. Ao lado do soneto ou do romance que a máquina estampa, fica na alma do artista a sua condição de homem gregário. E foi por isso que fiz aqui uma promessa que te transmito: que estava certo de que tu, habitante dos nateiros da planície, terias uma breve compreensão e amor pela sorte áspera destes teus irmãos.

            Por conta da sua posição política, diametralmente oposta  ao salazarismo, foi preso, tendo pensado em sair de Portugal; não o fez, contudo, por se sentir extremamente ligado à pátria e a Trás-os-Montes, longe dos quais seria Um cadáver a respirar.

            Miguel Torga faleceu em 1995.

E  Adelaide retorna:

 E eu? Eu não preciso dizer mais nada, pelo menos por enquanto. Sim, aproveito para acrescentar a carta de PEPA, gatinha de minha filha Joana Câmara, ghost-writer da charmosa felina.

 

 ALÔ!

Meu nome é Pepa!

 

Vou ficar 4 dias sozinha sem meus donos: sábado, domingo , segunda e terça . Fico na sala com meus brinquedos, na cozinha tenho minha comida e na área de serviço faço cocô e xixi na caixinha de areia, que precisa ser trocada de vez em quando. Choro muito se fico sozinha todo o dia, adoro brincar e que me façam muito carinho.

Por favor, troque minha água!

E me dê de comer!

Quando vier me visitar , me chame , posso estar escondida.

Meus donos, Joana e Fernando, agradecem a ajuda!

Qualquer emergência: 00445500

Até logo!

PEPA

 

NERO

                                                                                Lourdes Rodrigues

 

Levei o conto Nero, extraído do livro Bichos,  de Miguel Torga,  para leitura na Oficina. Na realidade, foi comprado pelo nome do autor Miguel Torga — pseudônimo, porque o escritor chamava-se Adolfo Correia da Rocha — de quem já ouvira muito falar e jamais havido lido. Estava ali naquela livraria pequena, administrada por uma mulher muito falante, vizinha a FENAC, em Lisboa. A publicação era pobre, sugestiva de gráfica de Universidade. Na primeira olhada ele não foi comprado, porque havia a esperança de encontrar  outras  obras do autor na grande vizinha. Quem sabe o título não tivesse me empolgado. De volta da FENAC, exausta e carregada de livros, passando outra vez na porta da pequena livraria,  lembrei  com um certo desconforto de que não havia procurado nenhuma obra de  Miguel Torga, como era a intenção inicial, completamente assaltada pela imensidão de livros à minha disposição naquela megalivraria, Desculpe-me, Torga, pelo deplorável esquecimento,  falei mentalmente,vou tentar consertar comprando aqui o seu pequeno livro  Bichos, ignorando por completo os olhares selvagens que os meus companheiros de viagem me dirigiam, todos tão exaustos quanto eu, mas sem qualquer solidariedade com o meu sentimento de culpa. No hotel não resisti e comecei a folhear os livros recém comprados, e evidentemente, chegou a vez de Bichos, descobrindo, encantada, no estilo do autor traços que me remetiam a Machado de Assis. Imediatamente pensei, vou presentear o meu colega César Garcia, em  cujo estilo na escrita eu percebia pegadas machadianas. Assim foi feito. Entretanto, Bichos já havia me conquistado de tal forma que eu o pedi emprestado a César para ler e incluir na programação da oficina para 2012. Desconfiado, o colega concordou, mas escreveu na capa: presente de Lourdinha. Estava garantida a volta.

Bichos já teve 19 edições, a última em 1995, data da morte do autor, aos 87 anos de idade. Foi publicado pela primeira vez em 1940. Trata-se de um livro de contos em que o personagem principal sempre é um animal. Em Nero, o personagem é um cachorro que conta a sua história numa linguagem simples e bela, desde a sua chegada naquela casa até os seus últimos momentos quando morre de velhice, com a sensação de que deveria ter partido jovem e assim ser lembrado com muita saudade e não com um certo alívio.

Nero, antropomorfizado, faz grandes reflexões sobre a vida naquela casa, o seu dono instituído e os outros que ali convivem, mostrando as suas prferências e afetos. Fala do amigo, da mãe do seu filho e do filho que não lhe herdou a capacidade de exímio caçador, do afastamento dos dois, tudo de uma forma muito bonita e expressiva do melhor sentimento. O cenário, como não poderia deixar de ser é o da região trasmontana, tão presente em Torga, segundo os seus estudiosos, que não é possível pensar nele, na sua obra, desvinculados do seu berço natal.

O conto Nero traz para os que estudam Literatura a questão da verossimilhança. Captados totalmente pela prosa poética os leitores não questionam o que está sendo lido, se um animal poderia pensar como o humeno, se ele poderia  trazer questões filosóficas tão profundas sobre a vida e a morte ou sobre as relações entre os seres vivos. A verdade literária está totalmente sobreposta à realidade da vida pela maestria do escritor. Exemplos parecidos vamos encontrar no personagem Baleia de Graciliano Ramos em Vidas Secas e em Flush,  romance escrito por Virgínia Woolf,  que recebeu o título do seu personagem.

Outro encanto desse conto são as palavras desconhecidas do nosso vocabulário que tivemos o prazer de ir procurar no Aurélio, onde encontramos para algumas os significados remetidos diretamento ao livro Bichos, de Miguel Torga.  O glossário com essas palavras foram enriquecidos e organizados por Maria Adelaide Câmara.

 

GLOSSÁRIO DE UMA LEITURA  DO CONTO NERO, DO LIVRO BICHOS,

DO ESCRITOR PORTUGUÊS

MIGUEL TORGA

Organização: Maria Adelaide Câmara

 

Lampa (figueira,):  variedade de figueira. [E muitas coisas mais…]

SinceloP (reg.)  pedaços de gelo suspensos das árvores ou dos beirais dos telhados,             resultantes da congelação das neblinas. [Diz-se sincêlo] [Não é estalactite porque esta é uma formação que resulta da precipitação de bicarbonato de cálcio dissolvido em água e que pende dos tetos das cavernas e subterrâneos.]

Morgada:  filha mais velha, beneficiada por morgado ou morgadio;  p.ext. a (o) filha mais velha, a primogênita de qualquer família;   filho único  [E coisas mais…].

Giesta : mesmo que esparto: design. comum a vários arbustos da fam. das leguminosas, freq. us. por propriedades medicinais e para o fabrico de vassouras; gesta, giesteira, giesteiro…. Flores amarelas e vagens negras.

Cardenha:  (ou cardanha)  casa térrea onde dorme o trabalhador que trabalha por salário diário (ou jornaleiro) .

Mondava do verbo mondar:  capinar, limpar o mato, arrancar ervas daninhas, podar…

Chasquiçava (do verbo chasquiçar) ???????????????????????? 

Enxofrar: Impregnar ou cobrir de enxofre.  Misturar com enxofre. Desinfetar com enxofre. 

Lés-a-lés: de lado a lado.

Cortelho: pocilga, chiqueiro, curral.

Salamurdo: Indivíduo  que fala pouco, mas que é sonso e morde pela calada. 

Alheta (punha-se na alheta): seguir, ir no encalço.

Fragas: rocha escarpada; penhasco, penedia;  calhau grande; pedregulho;  brenha; mata. 

Rilhadinho: produzir rangido com os dentes; ranger, ringir, trincar ; comer roendo.

Unto: gordura de porco; banha;  p.ext. qualquer substância gordurosa; gordura, óleo. Também quer dizer dinheiro. 

Albarrão: Perdigão (macho da perdiz) que perdeu a fêmea, e anda descasalado no monte; que ou quem ainda está solteiro.

Borgas: pândega, estroinice.

Rafeiros:  Diz-se de uma raça de cães próprios para a guarda de gado. 

Jecos: caipiras? 

Rufias: brigões, rufiões; Indivíduo que vive a expensas de mulher pública a quem simula proteger; gigolô; proxeneta; rúfio. Alcoviteiro.Aquele que se mete em brigas por causa de mulheres de má nota.

Razia:  Incursão feita em território inimigo para aprisionamento de tropas, saque de rebanhos, cereais etc. Fig. Devastação, assolação. 

A  mata-cavalos:  a galope. 

Sedeiro: Instrumento em forma de pente que serve para assedar o linho. [Assedar: limpar o linho passando-o pelos sedeiros; Tornar macio como seda.] 

Asado: que tem asa, alado; porém, tb. jeitoso, apto, cômodo.