Nascentes da Tragédia

 

Há certo consenso quanto ao teatro grego ter origem no religioso. Tanto as tragédias como as comédias eram representadas com feições de rituais litúrgicos. Apesar disso, diz Otto Maria Carpeaux, não há uma tese definitiva quanto à liturgia que teria sido a base histórica do teatro grego. Segundo ele, Cambridgeanos, com base em pesquisas antropológicas, parecem ter comprovado que a tragédia grega havia nascido de atos litúrgicos do culto de Dioniso. Outros ingleses, no entanto, foram buscar a fonte da inspiração trágica nos ritos fúnebres em torno dos túmulos dos heróis.

 Mais uma vez recorrendo a Junito Brandão, encontrei que, em torno de 605-527 a.C, eram celebradas em Atenas quatro grandes festas em honra a Dioniso: Dionísias Rurais, Lenéias, Dionísias Urbanas ou Grandes Dionísias e Antestérias.  

A festa das Dionísias Rurais ocorria no mês Posídeon, o que correspondia mais ou menos à segunda metade de dezembro. A cerimônia central da festa consistia numa alegre e barulhenta procissão com danças e cantos, em que se escoltava um enorme falo. Os seguidores da procissão usavam máscaras ou disfarçavam-se de animais, o que mostra tratar-se de um sortilégio para provocar a fertilidade dos campos e dos lares. A partir do século V a.C., as Dionísias foram enriquecidas com concursos de tragédias e comédias. 

Sobre as Lenéias, Junito diz que não há muita informação. Celebradas no inverno, fins de Janeiro e início de fevereiro, também começavam com uma procissão de caráter orgiástico, muito vinho e invocação a Baco, seguidas de duplo concurso de comédia e tragédia. 

As Dionísias Urbanas aconteciam na primavera, fins de março, e a elas acorriam todo o mundo grego e embaixadores estrangeiros. Duravam seis dias. No primeiro dia, majestosa procissão com a participação de toda a cidade, onde uma estátua do deus do Teatro era levada do seu templo no sopé da Acrópole, até um templo arcaico de Baco, perto da Academia, de onde o ícone era solenemente levado e colocado, por fim, na Orquestra do Teatro, que, até hoje, tem o nome do deus e que fica ao lado do santuário, de onde a estátua fora retirada. Os concursos de dez Coros Ditirâmbicos eram realizados nos dois dias seguintes. Cada Coro era composto de cinquenta executantes que dançavam em torno do alto de Dioniso, na Orquestra. Depois deles, vinham os concursos dramáticos que duravam três dias. Apenas três poetas trágicos eram admitidos no concurso, cada um tinha uma manhã inteira para representar a sua obra, seguidas de um drama satírico. 

Junito Brandão diz que todas as tentativas de explicar a origem da tragédia, acabam, de certa forma, passando pelo elemento satírico. Na verdade, a tragédia seria uma evolução do ditirambo através do drama satírico. Aristóteles informa em sua Poética que a tragédia teve origem nos solistas do ditirambo, decorrente da transformação das peças satíricas que foram evoluindo de assuntos menores, fabulas curtas para assuntos mais elevados, abandonando, com isso, o tom jocoso da linguagem. Assim, o drama satírico antecedeu à tragédia e evoluiu para a tragédia. Aqui Junito esclarece sobre o que ele chama de satírico. O termo, segundo ele, nada tem a ver com sátira, nem sob o ponto de vista literário nem etimológico. O nome advém do fato de os personagens integrantes do Coro se disfarçarem em Sátiros, eternos companheiros de Dioniso. 

Aristóteles quando diz que a tragédia surgiu dos solistas do ditirambo, entendendo estes como o corifeu dos coros, ele se baseia na evolução do Drama Satírico que, em sua origem, consistia de danças mímicas e rituais em honra de Dioniso; depois, em representações rústicas, executadas por um coro de homens disfarçados de Sátiros, cujo corifeu reproduzia alguma façanha do deus; mais tarde, uniu-se ao drama cerimônias de caráter fúnebre e regionais e a alegria das primitivas representações deve ter desaparecido e outras divindades ocuparam o posto antes exclusivo de Baco. Ele supõe que no início deve ter havido coexistência pacífica entre ditirambo, drama satírico e tragédia, porém, à medida que esta última pelo seu tom sério e elevado desvinculou-se dos Sátiros e quase levou à morte o drama satírico, fez-se necessária uma intervenção maior para evitar que isso acontecesse. Em 490 a.C, Prátinas, em sua reforma, devolveu a Dioniso os Coros, fixando por escrito os vários cânticos e partes do drama satírico, dando-lhe, por isso mesmo, uma forma literária. Assim, Prátinas salvou o drama satírico e satisfez o povo que, não conseguia compreender o pouco que restava de Dioniso na tragédia, que passara de assuntos menores, satíricos, para temas mais elevados, reclamou da ausência do êxtase e do entusiasmo com uma expressão que se tornou proverbial: nada tem a ver com Dioniso.  

Segundo o mitólogo, a influência de Prátinas foi tão forte que daí em diante tornou-se obrigatória, nas representações dramáticas, a tetralogia, ou seja, três tragédias e um drama satírico.

Otto Maria Carpeaux considera a discussão sobre a origem da tragédia mais importante para a compreensão e registro da história da civilização e menos relevante para a história da literatura, preferindo, ele próprio, adotar a intuição de Nietzsche,que ele considera genial, de que a tragédia grega é a transformação apolínea de ritos dionisíacos Por isso, o único conteúdo possível da tragédia grega era o mito, fornecido pela tradição; enredos inventados pela imaginação do dramaturgo, que enchem os nossos repertórios, estavam excluídos. 

Para apreender o significado dessa afirmação de Carpeaux, recorri a Nietzsche, em busca de sua visão do trágico. Para ele, o grego conhecia e sentia os pavores e sustos da existência: simplesmente para poder viver, tinha de estender à frente deles a resplandecente miragem dos habitantes do Olimpo. Assim, a criação dos deuses pelos gregos derivava de uma necessidade profunda. Nietzsche pergunta: De que outro modo aquele povo, tão excitável em sua sensibilidade, tão impetuoso em seus desejos, tão apto unicamente para o sofrimento, teria podido suportar a existência, se esta, banhada em uma glória superior, não lhe tivesse sido mostrada em seus deuses? E ele estabelece paralelo com a arte ao dizer que é o mesmo impulso que chama a arte para a vida, como a complementação e perfeição da existência que induz a continuar a viver, que criou as condições para a existência desse mundo olímpico. E ele complementa: Assim os deuses legitimam a vida humana, vivendo-as eles mesmos – a única teodicéia satisfatória.  

Mais adiante, Nietzsche reforça o seu pensamento ao dizer que a tragédia grega tinha por objeto somente a paixão por Dioniso e que durante muito tempo ele foi o único herói cênico. E que poderia se afirmar sem medo de errar que até Eurípedes, Dioniso foi o único herói trágico, embora sob a máscara de grandes e célebres figuras como Prometeu, Édipo e tantas outras. Haver uma divindade por trás de todas essas máscaras é o único fundamento essencial para a “idealidade” típica dessas figuras célebres, tantas vezes notada com espanto. E Nietzsche sustenta a sua premissa na tese de que todo indivíduo, como indivíduo, é cômico e, portanto, não trágico, razão pela qual os gregos não os poderem suportar em seus palcos trágicos. E valendo-se de Platão, da valorização da idéia em contraposição ao ídolo, ele afirma: que o verdadeiro e único Dioniso está presente combatente em uma gama de figuras, sob a máscara de um herói e como que emaranhado em uma rede na rede da vontade individual.E assim que o deus, ao aparecer, fala e age, ele se assemelha a um indivíduo que erra, se esforça e sofre: esse, em geral, aparece com essa precisão e nitidez épicas, isso é o efeito de Apolo, esse decifrador de sonhos, que evidencia ao coro seu estado dionisíaco por meio dessa aparição alegórica. Em verdade, porém, esse herói é o Dioniso sofredor dos Mistérios, aquele deus que experimenta em si o sofrimento da individuação, do qual mitos maravilhosos contam que, quando rapaz, foi despedaçado pelos Titãs e nesse estado é venerado com Zagreu: o que sugere que esse despedaçamento, em que consiste propriamente a paixão dionisíaca, equivale a uma transformação em ar, água, terra e fogo, e que portanto temos de considerar o estado da individuação como a fonte e o primeiro fundamento de todo sofrimento, como algo repudiável em si mesmo. Do sorriso desse Dioniso nasceram os deuses olímpicos, de suas lágrimas os homens. 

Jaboatão dos Guararapes, 23 de abril de 2013 

Lourdes Rodrigues