O Gênio do Mal

Ontem, 17 de fevereiro de 2016, recomeçamos os trabalhos da Oficina. A nossa carta de navegação estava pronta  para iniciarmos a viagem. Os viageiros presentes –  éramos dez, dois não puderam participar, um porque não havia chegado ainda de viagem (Luzia), outro (Paulo) porque iria fazer parte de um mesa de defesa de tese de mestrado – ansiosos pelas mudanças que havíamos feito nos nossos roteiros, Levei um texto sobre o Conto, extraído do Prefácio de Charles Baudelaire ao livro de Edgard Allan Poe Contos de Imaginação e Mistério, para reforçar a importância dele entre os gêneros literários e tranquilizar uma viageira que teme ser a viagem curta não tão admirável quanto os longos cruzeiros que o romance permite. A opção pelas narrativas mais curtas este ano deveu-se à necessidade de reforçar o crítico literário que existe em cada um de nós, de certa forma comprometido pelas leituras longas quando o interesse pelo que está sendo contado pelo narrador prevalece sobre o como está sendo contado, ansiosos que ficamos, como Nabokov disse, pelo e depois? E depois?

EXTRAÍDO DO PREFACIO DE CHARLES BAUDELAIRE AO LIVRO DE EDGAR ALLAN POE CONTOS DE IMAGINAÇÃO E DE MISTÉRIO

 SOBRE O CONTO

Entre os domínios literários onde a imaginação pode obter os resultados mais curiosos, pode colher tesouros, não os mais ricos e preciosos (esses pertencem à poesia), mas os mais numerosos e variados, está um particularmente querido a Poe, o conto. Ele tem sobre o romance de grandes proporções a imensa vantagem que a brevidade acrescenta à intensidade do efeito. Tal leitura, que pode ser realizada de um único fôlego, deixa no espírito uma marca muito mais poderosa que uma leitura intermitente, muitas vezes interrompida por problemas de negócios e preocupações com interesses mundanos. A unidade da impressão, a totalidade do efeito é uma vantagem imensa que pode dar a esse gênero de composição uma superioridade muito especial, no sentido de que um conto muito curto (o que é, sem dúvida, um defeito) seja ainda melhor que um conto muito extenso. O artista, se é hábil, não acomodará seus pensamentos aos incidentes; mas, tendo concebido deliberadamente, a seu bel-prazer, um efeito a produzir, inventará os incidentes, arranjará os eventos mais apropriados para conduzir ao efeito desejado. Se a primeira frase não for escrita de forma a preparar a impressão final, a obra é deficiente desde o começo. Ao longo da composição não se deve soltar uma única palavra que não seja uma intenção, que não tenda, direta ou indiretamente, a percorrer o plano traçado.

Há um ponto no qual o conto é superior até mesmo ao poema. O ritmo é necessário ao desenvolvimento da ideia de beleza, que é o maior e mais nobre objetivo do poema. Ora, os artifícios do ritmo são um obstáculo insuperável ao desenvolvimento minucioso de pensamentos e expressões que tenham por objetivo a verdade. Pois a verdade pode muitas vezes ser a meta do conto, e o raciocínio a melhor ferramenta para a construção de um conto perfeito. Eis a razão pela qual esse gênero de composição, que não é tratado com tanta elevação quanto a poesia pura, pode fornecer produtos mais variados e mais acessíveis ao gosto do leitor comum. Além disso, o contista tem à sua disposição uma enorme quantidade de tons, de nuances de linguagem – o tom reflexivo, o sarcástico, o humorístico, que repudia a poesia – e que são como dissonâncias, ultrajes à ideia de beleza pura. E é pelo mesmo motivo que o escritor que busca uma única meta de beleza em um conto trabalha em grande desvantagem, sendo privado do instrumento mais útil, o ritmo. Sei que, em todas as literaturas, foram feitos esforços, muitas vezes felizes, para criar contos puramente poéticos; o próprio Edgar Poe fez alguns muito bonitos. Mas são lutas e esforços que servem apenas para demonstrar a força dos verdadeiros recursos adapta­dos às metas correspondentes; não seria arriscado afirmar que para alguns autores, os maiores nos quais podemos pensar, essas tentações heroicas viessem de um desespero.

A saudação poética foi com Gênios do Mal, de Charles Baudelaire que tão bem já havia nos falado sobre o conto. A escolha do poema, entre tantos outros incríveis do poeta, se deu principalmente porque era assim que ele era chamado “Gênio do Mal”  devido ao seu comportamento transgressor e por envolver nas suas narrativas elementos do mal. Charles Baudelaire ficou sem pai muito cedo, aos seis anos de idade, e a mãe casou com um militar de carreira ascendente (tornou-se general, senador, embaixador)  que se incompatibilizou com o enteado de prima. Nada mais agressivo ao gênio poético e livre do garoto do que a rígida disciplina militar. Cansado das contendas, o padrasto exportou-o para a Índia na esperança de ver-se livro do rapaz. Baudelaire não iria deixá-lo sossegado assim tão fácil. Encontrou uma forma de punir o padrasto desembarcando antes de chegar ao seu destino, voltando à Paris livre do jugo doméstico,  lançando-se na boemia, drogas e todo tipo de excessos. Com a maioridade conseguiu tomar posse da herança deixada pelo pai e começou a lapidar a fortuna até sua mãe interditá-lo na justiça, provando a sua prodigalidade e impondo-lhe um tutor. Menos rico, porém tão livre quanto antes, Charles Baudelaire continuou a sua vida desregrada no mundo das artes, da literatura. Em 1857, com trinta e seis anos de idade, publica a sua obra prima Flores do Mal.  A Justiça nem sempre sensível às artes, preocupada que sempre esteve em manter a ordem e os costumes, por mais ultrapassados e medíocres que possam sugerir, condenou o poeta e a editora que o publicou a pagar multas precisamente por causa de seis (6) poemas entre os cem  (100) do livro por atentarem à moral. Baudelaire não se fez de rogado, fez novos poemas, ainda mais belos, segundo ele, e trocou-os. O livro foi liberado. Com a sua morte, dez anos depois, o livro foi publicado com os poemas originais.

Baudelaire, apesar de transgressor, tentou acomodar-se ao status quo  da sociedade parisiense candidatando-se à Academia Francesa. Não há uma opinião formada sobre as razões que o levaram a fazer isso, dizem que para agradar a mãe e ela poder soltar mais dinheiro, ou porque pretendia resgatar a estima do publico devido às sérias críticas da burguesia à sua obra. Talvez o patinho feio quisesse o seu dia de cisne, quem sabe.

Charles Baudelaire é considerado o precursor do Simbolismo, além de fundador da tradição moderna em poesia, ao lado de Walt Whitman. Escreveu poesias e ensaios e as suas obras teóricas influenciaram além da literatura, as artes plásticas do século XIX. Traduziu vários volumes da obra de Edgard Allan Poe e os prefácios que escreveu tornaram-se peças teóricas de referência para a literatura e artes plásticas. Charles Baudelaire morreu jovem ainda, aos quarenta e seis anos, de sífilis, após sofrer sérios ataques nervosos. Os seus biógrafos dizem que morreu nos braços da mãe, com quem morava após a morte do padrasto.

Segundo o poeta, Edgard Alan Poe achava que não era poeta quem não soubesse tocar o intangível. Baudelaire sabia-o muito bem, mesmo quando escreve um poema como este Gênio do Mal que revela uma dor de cotovelo bem tangível. Para Baudelaire Genus irritabile vatum! Que os poetas (vamos utilizar a palavra em seu sentido mais extenso, compreendendo todos os artistas) sejam uma raça irritável é bem sabido; mas o porquê  não me parece tão claro. Bendita irritação que o fez criar poemas que atravessam séculos.

Imagem CB

Gênio do Mal

Charles Baudelaire

Gostavas de tragar o universo inteiro,
Mulher impura e cruel! Teu peito carniceiro,
Para se exercitar no jogo singular,
Por dia um coração precisa devorar.
Os teus olhos, a arder, lembram as gambiarras
Das barracas de feira, e prendem como garras;
Usam com insolência os filtros infernais,
Levando a perdição às almas dos mortais.

Ó monstro surdo e cego, em maldades fecundo!
Engenho salutar, que exaure o sangue do mundo
Tu não sentes pudor? o pejo não te invade?
Nenhum espelho há que te mostre a verdade?
A grandeza do mal, com que tu folgas tanto.
Nunca, jamais, te fez recuar com espanto
Quando a Natura-mãe, com um fim ignorado,
— Ó mulher infernal, rainha do Pecado! —
Vai recorrer a ti para um génio formar?

Ó grandeza de lama! ó ignomínia sem par.

Charles Baudelaire, in “As Flores do Mal”
Tradução de Delfim Guimarães  – Obtido em Wikisource

Dentro do possível, procuramos acompanhar a leitura do poema ou narrativa traduzidos para o português com a obra original. Se na ficção é importante porque os tradutores, por melhores que sejam, tendem a se tornar coautores e empolgados afastam-se do texto, na poesia onde a sonoridade, muitas vezes a rima, a subjetividade, o intangível são a sua espinha dorsal, ler a tradução é desviar-se substancialmente do autor e aproximar-se do tradutor, havendo perdas substanciais. Eu e Salete tentamos encontrar este poema em Francês e quase varamos uma noite completamente em vão. Não conhecendo suficiente a língua para uma busca mais rigorosa desisti de prosseguir by myself e não ousava insistir com Salete que já havia dedicado bom tempo para encontrá-lo. Coube à nossa viageira Adelaide Câmara a tarefa hercúlea e ela a fez com uma dedicação e determinação admirável. Apoiada pelo marido fez o périplo por quase 1000 páginas da obra de Baudelaire, lendo one by one até encontrar o poema em Francês e o remeter para mim dizendo Segue o poema que “não existe existindo” cuja tradução superparafraseada por Delfim Guimarães me fez vasculhar céus e terras virtuais.. Sim, eles chegaram a duvidar que existisse, que talvez fosse um daqueles casos em que se atribui a obra a um escritor famoso e depois se descobre que não é de sua autoria e sim de um anônimo. Com esse título Gênio do Mal  ele não existe, mas é de Baudelaire e está em Flores do Mal. Segundo Adelaide, a ligação amorosa com a judia Sarah, dita Louchette,  que lhe inspirou um poema truculento e, em certas passagens, poderosamente original (“Não tenho por amante senão…”), bem como o poema XXV (que é este chamado de Gênio do Mal, aqui)de As flores do mal .

À Adelaide, aquela que segunda a própria, nunca se imaginou”fuçadoura” de Baudelaire,  e Câmara,  os nossos agradecimentos maiores.

Eis o poema:

Tu mettrais l’univers entier dans ta ruelle,

Femme impure! Le’ennui rend ton âme cruelle.

Pour exercer tes dents à ce jeu singulier,

Il te faut chaque jour un coeur au râtelier.

Tes yeux, illuminés ainsi que des boutiques

Et des ifs flamboyants dans les fêtes publiques,

Usent insolemment d’un pouvoir emprunté,

Sans connaître jamais la loi de leur beauté.

Machine aveugle et sourde, en cruautés, féconde!

Salutaire instrument, buveur du sang du monde,

Comment n’as-tu pas honte et comment n’as-tu pas

Devant tous les miroirs vu pâlir tes appas?

La grandeur de ce mal où tu te crois savante

Ne t’a donc jamais fait reculer d’épouvante,

Quand la nature, grande en ses desseins cachés,

De toi se sert, ô femme, ô reine des péchés,

— De toi, vil animal, — pour pétrir un génie?

O fangeuse grandeur! sublime ignominie!

A tradução de Ivan Junqueira enviada por Adelaide:

Porias o universo inteiro em teu bordel,

Mulher impura! O tédio é que te torna cruel

Para teus dentes neste jogo exercitar,

A cada dia um coração tens que sangrar.

Teus olhos, cuja luz recorda a dos lampejos

E dos rútilos teixos que ardem nos festejos,

Exibem arrogantes uma vã nobreza,

Sem conhecer jamais a lei de sua beleza.

Ó monstro cego e surdo, em cruezas fecundo!

10 Salutar instrumento, vampiro do mundo,

Como não te envergonhas ou não vês sequer

Murchar no espelho teu fascínio de mulher?

A grandeza do mal de que crês saber tanto

Não te obriga jamais a vacilar de espanto

Quando a mãe natureza, em desígnios velados,

Recorre a ti, mulher, ó deusa dos pecados

— A ti, vil animal —, para um gênio forjar?

Ó lodosa grandeza! Ó desonra exemplar!

 Outro poema inspirado em Sarah, La Louchette

Sarah la louchette

Je n’ai pas pour maîtresse une lionne illustre :
La gueuse de mon âme, emprunte tout son lustre ;
Invisible aux regards de l’univers moqueur,
Sa beauté ne fleurit que dans mon triste coeur.

Pour avoir des souliers elle a vendu son âme.
Mais le bon Dieu rirait si, près de cette infâme,
Je tranchais du Tartufe et singeais la hauteur,
Moi qui vends ma pensée et qui veux être auteur.

Vice beaucoup plus grave, elle porte perruque.
Tous ses beaux cheveux noirs ont fui sa blanche nuque ;
Ce qui n’empêche pas les baisers amoureux
De pleuvoir sur son front plus pelé qu’un lépreux.

Elle louche, et l’effet de ce regard étrange
Qu’ombragent des cils noirs plus longs que ceux d’un ange,
Est tel que tous les yeux pour qui l’on s’est damné
Ne valent pas pour moi son oeil juif et cerné.

Elle n’a que vingt ans, la gorge déjà basse
Pend de chaque côté comme une calebasse,
Et pourtant, me traînant chaque nuit sur son corps,
Ainsi qu’un nouveau-né, je la tête et la mords,

Et bien qu’elle n’ait pas souvent même une obole
Pour se frotter la chair et pour s’oindre l’épaule,
Je la lèche en silence avec plus de ferveur
Que Madeleine en feu les deux pieds du Sauveur.

La pauvre créature, au plaisir essoufflée,
A de rauques hoquets la poitrine gonflée,
Et je devine au bruit de son souffle brutal
Qu’elle a souvent mordu le pain de l’hôpital.

Ses grands yeux inquiets, durant la nuit cruelle,
Croient voir deux autres yeux au fond de la ruelle,
Car, ayant trop ouvert son coeur à tous venants,
Elle a peur sans lumière et croit aux revenants.

Ce qui fait que de suif elle use plus de livres
Qu’un vieux savant couché jour et nuit sur ses livres,
Et redoute bien moins la faim et ses tourments
Que l’apparition de ses défunts amants.

Si vous la rencontrez, bizarrement parée,
Se faufilant, au coin d’une rue égarée,
Et la tête et l’oeil bas comme un pigeon blessé,
Traînant dans les ruisseaux un talon déchaussé,

Messieurs, ne crachez pas de jurons ni d’ordure
Au visage fardé de cette pauvre impure
Que déesse Famine a par un soir d’hiver,
Contrainte à relever ses jupons en plein air.

Cette bohème-là, c’est mon tout, ma richesse,
Ma perle, mon bijou, ma reine, ma duchesse,
Celle qui m’a bercé sur son giron vainqueur,
Et qui dans ses deux mains a réchauffé mon coeur.