Romance para Domésticas e Salões

Romance para domésticas provincianas  e os salões de Paris
(Stendhal, O Vermelho e o Negro, por Don Gruffot Papera)

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*Lourdes Rodrigues

Quando coloquei na programação da Oficina, para 2014, O Vermelho e o Negro de Stendhal, a reação inicial foi de apreensão quanto ao tamanho da empreitada que iríamos enfrentar. Mais de 500 páginas, no mínimo, dependendo da publicação, deixavam-nos apreensivos. Passado o susto inicial, a decisão de seguir em frente encontrou os viageiros dispostos, destemidos e até mesmo ansiosos pela longa jornada.

Outro problema a ser enfrentado foi a escolha da publicação para a leitura. As livrarias não têm disponível nas prateleiras o livro, uma ou outra conta em seu acervo com um volume ou dois. Li um artigo de Gabriel Perissé Diferenças Mínimas na tradução de O vermelho e o Negro (www.perisse.com.br) que me ajudou a propor o acompanhamento por qualquer tradução disponível, vez que as diferenças são poucas entre uma e outra, e essa visão múltipla enriquece muito mais a discussão. Assim, iniciamos a leitura contando com as publicações da L&PM, tradução de Paulo Neves, da Cosac Naify, por Raquel Prado, Martin Claret, por Jean Melville (a despeito das acusações de plágio, é uma das publicações mais acessíveis no mercado) e da Editora Globo, com Casimiro Fernandes e Souza Júnior na tradução. Dúvidas que surgem, por conta das versões diferentes, são retiradas buscando o original pelo qual dois colegas acompanham a leitura.vermelho e o negro, o_m

A viagem por Verrières, sob os olhares desses tradutores e os nossos próprios olhares, tornou-se uma inesquecível jornada. Para começar lemos o Projeto de artigo sobre o Vermelho e o Negro, escrito pelo próprio Stendhal, sob pseudônimo de  Don Gruffot Papera (mais um entre centenas de outros que ele usou, cerca de 171 pseudônimos), para uma revista italiana que não chegou a publicar.Stehdhal, também um pseudônimo, talvez o mais usado pelo escritor Marie-Henry Beyle.

Interessante, nesse texto, como ele tenta promover o livro do Senhor Stendhal, escudado no pseudônimo. Primeiro, ele diz que enquanto os homens saem para caçar ou para trabalhar na agricultura, as suas pobres metades, não podendo fazer romances, se consolam em lê-los. (…) Não há nenhuma mulher de província que não leia cinco ou seis volumes “por mês, muitas lêem quinze ou vinte…”  Assim, ele situa o leitor de romances, na França, como sendo essencialmente feminino. E ademais, justifica que essa busca frenética pela leitura tem as suas raízes numa falta, num desejo insatisfeito que é o da impossibilidade de fazer romances com os seus próprios parceiros que estão mais interessados na caça ou no trabalho. Depois, ele diz que essas mulheres não têm o mesmo nível de educação, daí os livreiros fazerem distinção entre as leitoras de romances para domésticas (aqui ele pede desculpas pelo termo, dizendo que não é dele, mas dos livreiros, demonstrando claramente que a designação é preconceituosa), e a leitora de romances de salões. Passa então a descrever a forma e conteúdo desses romances.Stehdhal

No romance para domésticas, impresso no formato in-12, o herói é sempre perfeito e belo, as mulheres inocentes e perseguidas, pouco importando se os acontecimentos são absurdos, essas cenas extraordinárias existem para que os belos olhos das provincianas chorem.  As leitoras de romances de salões, em formato in 8º, por outro lado, detestam esses homens perfeitos, essas mulheres desgraçadas, exigem tramas muito mais apuradas. As leitoras de romances para domésticas, às vezes lêem os romances para salões, embora, em geral, não o entendam inteiramente. As leitoras de romances de salões, por sua vez, jamais leriam os romances para domésticas.

Esse era o grande desafio para qualquer escritor da época, como escrever uma obra que pudesse agradar a gostos tão diferentes, de forma a atingir todas as leitoras de romance da província ou de Paris. Segundo Don Gruffot Papera, este desafio foi o que o Senhor de Stendhal decidiu enfrentar com a escrita de O Vermelho e o Negro, mais do que isso, ele ousou descrever o caráter da mulher de Paris que não ama seu amante a não ser que julgue, todas as manhãs, estar na iminência de perdê-lo.

Outro aspecto importante destacado por ele foi que Stendhal escreveu um romance que não era bem um romance, pois partira de fatos reais, acontecidos alguns anos antes, em 1826, o romance foi escrito em 1830. Ele acompanhou pelos jornais o incidente acontecido com um jovem que atirou em uma ex-amante dentro da Igreja e foi executado por esse crime em 1828.

O fato,  pela tradução da Martin Claret:

No dia 23 de janeiro de 1828, foi fuzilado em Grenoble o ex-seminarista Antoine Berthet, que, em plena missa, disparara contra a senhora Michoud de La Tour, sua antiga amante. Durante algumas semanas, os jornais exploraram o estranho caso e Stendhal acompanhou apaixonadamente as narrativas. Tendo na memória os traços do condenado e os lances da história, começou a esboçar sua personagem mais famosa – Julien Sorel – protagonista de Le Rouge et Le Noir (O Vermelho e o Negro).

Depois de discorrer longamente sobre o romance que não devemos antecipar, agora, Don Gruffot Papera encerra  dizendo que o livro é vivo, colorido, cheio de interesse e de emoção. O autor soube pintar com simplicidade o amor terno e ingênuo.

E acrescenta outros dados sobre o livro, os mesmos dados que levaram muitos leitores no futuro a julgá-lo um romance de costumes, de crônicas da sociedade da época:

Ousou pintar o amor de Paris, ninguém o tentara, antes dele. Ninguém pintara com alguns cuidados os costumes dados aos franceses pelos diversos governos que pesaram sobre eles durante o primeiro quartel do século XIX. Um dia esse romance pintará os tempos antigos como os de Walter Scott.

 Na verdade, Walter Scott hoje quase não é mais lido ou mencionado e Stendhal continua a figurar em todas as listas dos melhores romances. Tornou-se um clássico da literatura ocidental.  Ele ultrapassou, assim, o seu Pai Poético, aquele que ele se propôs derrotar, encontrando a falha e realizando uma obra resposta que o corrigisse. É o que Haroldo Bloom chama de clinamen. Quando envolve dois poetas fortes, ela se concretiza por ações revisionistas, por desvios da identificação herdada.  Stendhal com o seu romance O Vermelho e o Negro revolucionou o fazer literário e despojou do trono Walter Scott, dessacralizando o mito, fazendo o contraponto com o seu jeito de escrever, desviando-se da tradição e criando o novo em termos literários.

Com certeza, a nossa viagem será inesquecível e dela iremos sempre dando conta aqui pelo blog.

Jaboatão dos Guararapes, 06 de março de 2014

 *Economista, ficcionista, ensaísta, cronista