A folha de papel em branco

*A FOLHA DE PAPEL EM BRANCO

Lourdes Rodrigues

Droga! Há muito escureceu. O dia prestes a amanhecer traz o vazio de mais uma batalha perdida. Ah, maldita folha em branco! O tempo todo a me desafiar. Parece sorrir dos meus rituais para preenchê-la: casa silenciosa, lapiseiras carregadas de grafites deslizantes, plano bem elaborado, tema, narrador, cenário, diálogo, perfil psicológico dos personagens… E a resma de papel jaz em cima da escrivaninha…
Psiu, silencio! Escuto sons quase inaudíveis. São os passos delas, o farfalhar de suas vestes se avizinhando. Fecho os olhos, consigo vê-las desafiantes. Capturo uma, examino, carece de sentido. Agarro outra, junto à primeira. A frase fica manca. Insisto, pesco mais, insisto, escrevo, rasuro, escrevo, busco forma, coerência, estilo. Desisto. Amasso o papel, jogo fora. Levanto, ando para lá e para cá atrás de lembranças que incendeiem a minha escrita. Deus!, Deus!, Eu preciso de um furo na represa do meu fluxo imaginativo. É preciso que dele jorre o sêmen que romperá a castidade daquelas folhas malditas, fertilizando-as com as minhas fantasias. Inútil. Tudo inútil. Volto ao escritório por não ter opção. Cabeça vazia, corpo doído. E a peleja por um maldito começo recomeça. Ah, se eu o conseguisse, elas não me escapariam mais. Por que eu tenho de passar por isso, meu Deus? Por que essa necessidade imperiosa de escrever? Sou escrava das palavras, refém delas. Por que tolero esse jogo sujo de esconde-esconde?O que querem de mim essas aventureiras? Não, não tenho medo. Parece que sim? Medo de dizerem de mim o que eu não sei ou não quero que os outros saibam? Não, não. Elas apenas me irritam. São umas fora-da-lei, jamais seguem os meus traçados. Chego a sentir o cheiro delas, cheiro de coisa guardada, de há muito escondida. Quase as vejo atravessar a minha retina enfileiradinhas, sujeito, predicado, complemento antes de mergulharem nas profundezas das trevas, outra vez. Malditas, sabem que não são uma escolha para mim e se recusam a me servir. Tento afagá-las, amaciá-las, não se deixam seduzir, farejam o alçapão aberto.  Tudo por causa daquele quintal. Ali tudo começou. Ali comecei a vaguear a minha fantasia. Nunca mais ela deixou de me perseguir. Algumas vezes pensei estar livre desse cavoucar de escombros diante do desespero de uma página em branco, da luta ferrenha e esmagadora contra uma ampulheta que esvai o tempo. Que engano. Psiu!,Psiu!, São elas. São elas. Finalmente, estão vindo, estão chegando, Agora eu sei que vou começar. Silencio, silencio, silencio.

 O Papel em Branco

                   João Cabral de Melo Neto

Nessa folha branca
Um menino um dia
Descobriu-se livre
De tudo inventar.

Os cabelos nos olhos
Não deixavam ver
Que era menino triste
Sempre por chorar.
Menos quando um lápis
Entre os dedos sujos
De tinta,  viajava livre
Nesse mapa virgem.

                   

       Incontáveis são os registros em cartas, diários, autobiografias de escritores sobre esse desespero diante do bloqueio no processo de criação. E as perguntas são sempre as mesmas: Por que uma folha de papel em branco bloqueia e intimida tanto,  transformando a relação do escritor com a palavra num duelo de vida ou morte? De onde vem esse desejo incontrolável de escrever que retira do sujeito a sua autonomia? Por que alguém se submete a essa tortura?

Gabriel Garcia Marques, em uma entrevista, disse considerar  o conto uma narrativa extremamente árdua para se escrever, porque o mais difícil num processo de criação era o começo, e o escritor teria de fazer vários começos para compor um livro. Mas essa dificuldade não está apenas nas pequenas histórias. Gustave Flaubert viveu momentos desesperadores enquanto escrevia Madame Bovary, uma semana para escrever duas páginas, é de se morrer de desencorajamento! (…)Que ofício fodido!Que droga de mania! diz ele em uma carta a Louise Collet. Virgínia Woolf depois de um ano escrevendo Mrs Dalloway lamenta-se no diário porque espremia em demasia os miolos para arrancar míseras duzentas palavras por dia e à medida que o livro ia sendo escrito crescia o temor de achá-lo fraco, porém a obsessão em escreve-lo não lhe abandonava.

E por que continuar com essa agonia? Para Flaubert a razão era tão clara que ele até abençoava esse tormento, porque sem ele, seria preciso morrer.  A vida só é tolerável com a condição de nunca estarmos nela,  disse ele à sua amiga, Louise Collet. Virgínia Woolf também dizia em seu diário que a única realidade que importava para ela  era a dos seus livros.

Há uma tese bastante difundida de que escrever é um ato de rebeldia,  de dissidência do indivíduo com relação à vida e ao meio social em que ele se insere.  Defensor dessa tese, Mario Vargas Llosa acrescenta: quem se entrega à elucubração de vidas distintas daquela que vive na realidade demonstra dessa forma indireta sua rejeição e crítica à vida como ela é e ao mundo real, bem como seu desejo de substituí-los por outros, fabricados por sua imaginação e desejos. Por outro lado, o escritor peruano reconhece que nem sempre os escritores têm consciência da infelicidade, da rebeldia, e até se surpreendem quando se dão conta da raiz sediciosa de suas vocações fantasistas, por não se considerarem em absoluto destruidores secretos do mundo.

Cortázar jamais negou o seu lado questionador. Ele sempre se definiu como alguém contestante da realidade que lhe era apresentada, desde criança.

Creio que desde muito pequeno minha sorte, e ao mesmo tempo meu azar, foi o fato de não aceitar as coisas tal como estavam, prontas. Não era suficiente que alguém me dissesse “isto é uma mesa”, nem que ‘mãe’ fosse ‘mãe’ e ponto final. Ao contrário, no objeto ‘mesa’ e na palavra ‘mãe’ começava para mim um itinerário misterioso, que às vezes eu percorria e no qual às vezes me esborrachava… Em suma: desde pequeno, minha relação com as palavras, com a escrita, não se diferencia da minha relação com o mundo em geral. Eu não acho que nasci para aceitar as coisas tal como estão, tal como me são oferecidas. .

Sob o ponto de vista da psicanálise, Freud, muitos anos antes, ao analisar o conteúdo das fantasias enveredou pelo caminho da frustração, ao afirmar que a pessoa feliz nunca fantasia, somente a insatisfeita: As forças motivadoras das fantasias são os desejos insatisfeitos, e toda fantasia é a realização de um desejo, uma correção da realidade insatisfatória.

A continuar nessa linha freudiana de que Desejos insatisfeitos são as forças pulsionais da imaginação poética,  a sublimação seria, assim,  o destino pulsional, alternativo, encontrado pelo escritor para mitigar o seu sofrimento psíquico, na medida em que  ela lhe permite organizar de forma construtiva a sua insatisfação.
Vejamos o que Flaubert diz sobre isso, ainda, à sua amiga, Louise:

É por isso que amo a arte. É que aí, pelo menos, tudo é liberdade num mundo de ficções, podemos ao mesmo tempo ser rei e povo, ativo e passivo, vítima e sacerdote. Não há limites; a humanidade se torna um boneco com guizos que se pode fazer soar ao fim da frase que compomos como um acrobata que gira e cai sobre seus pés (foi assim que, frequentemente, eu me vinguei da existência; que revivi tantas doçuras com minha pena; que me dei mulheres, dinheiro, viagens), é assim que a alma curvada se lança para um azul que só se detém nas fronteiras do Verdadeiro

.
Em um ensaio, Pulsão e Simbolização: Limites da Escrita, a psicanalista e escritora Ana Cecília Carvalho pondera que a sublimação nem sempre é apaziguadora. Existem algumas situações bem menos idílicas, eu diria, e que, até, elas são a maioria delas. Há muita dor, muita angústia durante o processo de criação, bem parecidos ou piores do que os casos já citados. E Ana Cecília entende que o indivíduo criativo, o artista e o escritor não estão livres de desenvolverem sintomas psicológicos. Pelo contrário, o profundo sofrimento emocional relacionado à criação artística tem sido apontado, muitas vezes, como uma marca na vida de escritores e artistas. É bem verdade que o sofrimento psíquico desenvolvido na via da criação artística e literária difere do aspecto do sintoma, naquilo que o caracteriza como uma expressão cifrada, repetida e não compartilhável.
Nesse sentido, para ela, há limites na sublimação que nós não estamos acostumados a pensar, ao admitimos, de forma ilegítima, que o indivíduo criativo é um privilegiado. Talvez fosse melhor pensar, diz ela,  que é a maior ou menor proximidade dos arranjos sublimatórios em relação ao sofrimento que eles buscam dominar que darão conta dos vários destinos da criatividade humana, tenham eles êxito ou caminhem para o fracasso.
E a partir desse pressuposto desenvolve o ensaio ao enfatizar o que ela chama de fenômeno intrigante, que é a morte trágica de escritores, sobretudo os que acreditavam na função organizadora ou mesmo terapêutica do seu trabalho, citando alguns que se suicidaram: Mayakovski, Florbela Espanca, Virgínia Woolf, Sylvia Plath, Paul Celan, Primo Levi, Anne Sextom, Ana Cristina César e Pedro Nava, entre tantos outros.
Ela diz não estar querendo estabelecer “parentesco” entre os escritores, baseada na morte trágica deles, pois reconhece que são diferentes as suas realidades político-histórica-social-culturai. O contraponto que se propõe a fazer, resguardadas as diferenças e singularidades desses escritores, é o da possibilidade talvez de relacionar o tipo de envolvimento existente entre a sublimação e o sofrimento emocional, examinando de perto a relação entre a escrita literária e o suicídio do escritor: Portanto, é essa situação enigmática que obriga o psicanalista não só a pensar no caráter incessante, mobilizador e prazeroso do processo criativo, mas também nos elementos que circunscrevem os limites da sublimação e indicam a presença de aspectos destrutivos no interior desse campo.
O objetivo do meu trabalho, porém, não é aprofundar a investigação teórico-literário-psicanalítica sobre a relação do ato criador com a sublimação versus vida, nem tampouco com a sublimação versus suicídio, embora esses aspectos tenham sido abordados como questionamentos e possibilidades de estudo. Pretendeu-se, na verdade, apenas, trazer a dor, dor viva, cruciante, aguda que envolve o processo criador para alguns escritores, resultante de uma tendência cada vez maior, que tornou o ato da escrita quase uma necessidade natural, fisiológica, pouco dependente da deliberação do sujeito, assim como no dizer de  Fernando Pessoa : Começo porque não tenho força para pensar; acabo porque não tenho alma para suspender… Exemplo dessa escrita encontra-se também em Clarice Lispector: Não sei como me perdoar a inconsciência de escrever.


 O escritor estará sempre fecundado por esse desejo/necessidade que o levará a enfrentar luta ferrenha e angustiada para realizá-la, obrigando-o a um eterno recomeço que só se extinguirá com a sua morte, como tão bem expressou Albert Camus:
 Se há algo que finalize a criação, não é o grito vitorioso e ilusório do artista cego: eu disse tudo, mas a morte do criador, que encerra sua experiência e o livra do seu gênio.

Trabalho apresentado na Jornada de maio de 2011 do Traço Freudiano Veredas Lacanianas Escola de Psicanálise
                                                      

 
 

 

 

 

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

quatro × dois =