Era uma vez …

 

Era uma vez  uma mulher que adorava ler romances. Brincava, ora de dona de casa, ora de psicóloga. Em dado momento,  resolveu brincar de estudar literatura. Pensou no mestrado. Como ouvinte, freqüentou os cursos de Teoria e Crítica Literária. Ficou fascinada. Perdeu a primeira aula e até hoje não conseguiu ler o texto de Jameson nem concluir vários outros de autores diversos. Tempo padrasto. Não desanimou. Tornou-se uma “fiel ouvinte”.

No começo, brigava com o vocabulário específico da área. Haja dicionário para se familiarizar, muitas vezes refamiliarizar-se…

No conforto do diletantismo, fez uma longa viagem pela modernidade ocidental, partindo de um impressionismo pessoal, romântico e ignorante até a terrível discussão dos descentramentos das identidades, das rupturas, das desconstruções intermináveis. De vez em quando, lembrava-se da desintegração e angústia esquizofrênica estudadas no passado. Embrenhou-se no fogo cruzado das ambigüidades das discussões do que seria modernidade, pós-modernidade, modernidade tardia. Visitou, aturdida, templos teóricos de difícil acesso, como o dos estruturalistas. Passou antes pelo precursor formalismo russo, com seu apego estrito à morfologia literária, ao sincronismo  nuançado pelo estudo da evolução literária de Tynianov. Achou bonito e poético o termo “estranhamento” para descrever o especificamente literário, dentre outras coisas. Perdeu-se num labirinto de funções , ações/fábulas, enredos, séries, sistemas, idéias de dominante… Ficou danada porque Tristram Shandy estava em sua estante, intocado.  A Pushkin, se a memória não falhava, só conhecia de nome, e até com o risco de confundi-lo com o músico italiano Puccini, que nascera 21 anos depois de sua morte. Jakobson, sim, conhecera-o num trabalho sobre  a aquisição e perda da linguagem na afasia infantil.

Quase se afoga nos significantes flutuantes, ela que vivia em busca de significados. Perdeu-se entre sintagmas, paradigmas, núcleos, catálises, índices, classificações e mais classificações. O texto dissecado, órfão de autor e de leitor. Deixou de gostar de Goldfinger/James Bond, mas notou o valor deste movimento generalizador que buscou e conseguiu descrever e analisar  obras literárias com  objetividade  científica.

Meio tonta ainda, a mulher suspirou de alívio ao ler a frase de Proust na epígrafe do artigo de Bourdieu: “As teorias e as escolas, como os micróbios e os glóbulos, devoram-se entre si e com sua luta asseguram a continuidade da vida.” O autor não deixou por menos ao analisar interdependências e interinfluências entre artista, obra, mercado,  editor, público, modismos, etc… desmitificando  legitimações e consagrações  nem sempre inocentes ou desvinculadas institucionalmente.  Contrariou-se um pouco: tantos determinismos ameaçavam outras tantas idealizações…

Para consolo, em um altar em Constança, viu, envaidecida, um novo santo milagreiro chamado LEITOR. Leitor primeiro da própria obra escrita para outros leitores. Todos inseridos no contexto histórico, intercambiando-se. Se antes eram os significantes que flutuavam, agora é o sentido da obra que está em contínua formação no percurso produção – recepção. Leitor implícito, leitor explícito, leitor ideal. Simultaneidades não-simultâneas derrubam noções de época definida.

A mulher continua a visita, cada vez mais apressada, sem tempo para parar. Chegou a ouvir vozes, diversas vozes. Não, não estava louca. Eram mensagens do russo, durante muitos anos habitante do gelo siberiano. Clamavam que todos somos influenciados pelo discurso do outro, e que qualquer expressão individual é produto de inúmeras e variadas vozes. Nos textos falam: autor,  precursores, narrador, personagens, conterrâneos, em qualquer pessoa gramatical. Uma troca coletiva de diálogos. E aí morava o significado. Entendeu, mas perdeu-se no meio dos tipos de discurso na prosa. Viu, porém, que, a essa altura, transitava pelo terreno da ideologia e daí a Lukács e Benjamin era um pulo. Ambos em luta contra o fascismo, ambos com textos nos quais transparecia a acusação da cultura e sociedade burguesas. Ambos marxistas de diferente modo. O primeiro viveu muito, ocupou cargos, foi reconhecido. O segundo, de glória póstuma, foi sempre um desajeitado para a vida, no dizer de Hanna Arendt.

Cumprimenta de longe Derrida, Foucault, Deleuze, Cixous e tangencia as diversidades culturais, o multiculturalismo, as oposições binárias, o feminismo, a morte do autor, os questionamentos de estruturas, de autoridades, de códigos e discursos fluidos, o infindável jogo de diferir e de diferençar. Quase tem um pesadelo ao ler que nenhum texto diz coisa alguma, inclusive o que assim prega.

Preocupou-se com a afirmação de Cixous da impossibilidade de uma escritura feminina, enquanto os termos da fração dominante/dominado, ativo/passivo não forem invertidos. Assusta-se com a conclusão da escritora: “Enquanto a mulher e o feminino forem construídos como passivos e incompreensíveis outros, permanecerão imprensados entre dois horripilantes mitos:  a Medusa e o Abismo.”

Depois de tão longo passeio, viu-se no meio de uma globalizada crise de identidades e sob o signo do camaleão. Descontinuidade, fragmentação, ruptura versus identidades culturais e nacionais eram agora as matérias para reflexão. Constatou que as certezas haviam ido pelo  ralo. A moda é tudo discutir, pesar, decidir no aqui e agora.

Aportou, enfim, na discussão sobre latino-americanismo, no mundo dos “pós”. Tradição, tradução, traição? Seguira um roteiro intenso e extenso para seu tempo pessoal e, de repente,  via-se no centro de uma acirrada disputa  inconclusa  em torno de temas e teorias ocidentais e contemporâneas, mudanças de paradigmas, implicações sociopolíticas,  redefinições de sujeito e de objeto mutantes, perplexidades! Tudo a partir do texto literário e de suas relações com o autor e o leitor.

A mulher que brincava de psicóloga leu, ouviu e até mesmo vislumbrou que vários autores se  serviam, em maior ou menor grau, de forma mais ou menos transparente, do método psicanalítico na abordagem da cultura, na abordagem dos textos. Por outro lado, as obras, muitas vezes, parecem impregnadas de um “saber” psicanalítico, quer o escritor queira, quer não. O olhar que autor e leitor lançam sobre os escritos perdeu a inocência. Afinal, teorias, romances, poesias… nascem dos recessos da mente humana com todos os seus mecanismos específicos, e o ser humano é o assunto da psicanálise. Lembrou-se do comentário de Helio Pellegrino de que Clarice Lispector através da literatura domou a loucura. Interessou-se pela função defensiva bem sucedida ou não, que a obra teria para alguns criadores… Observou que Freud,  através de sua escuta, criou  o ‘embrião de um outro lugar para as mulheres’, lugar esse que   Cixous procura afirmar com seu ataque à cultura patriarcal. E a mulher ficou muito curiosa a respeito de como construir uma ponte entre todas essas mudanças de paradigmas, essas rupturas e a  crise por que passa a psicanálise, com várias sentenças de morte já anunciadas. Para essa psicóloga, a Psicanálise – assim como a literatura, ambas linguagem – não cessa de surpreender.

Foi-se uma vez uma mulher que se acreditava centrada, unificada, que ousou brincar com a literatura. Ficou na dúvida para sempre. Entrou por uma perna de pinto, saiu por uma de pato, Sr. Rei, digo Sra. Rainha mandou dizer que contasse quatro.

                                  Olinda, 29/06/1999

                                    *  Maria Adelaide Câmara

  • Maria Adelaide Câmara é psicóloga, ensaísta, ficcionista, amante daw arte e da literatura.

Como Fazer Uma Resenha Literária

Rolando Barthes, em A Preparação do Romance, defende a tese de que só se escreve porque se lê. Neste momento, não estamos falando desse processo que leva à criação literária ficcional, leitura particular que aprisiona o leitor na armadilha das palavras. E sim, da leitura que leva à necessidade de resenhar a obra lida, seja para reter seus aspectos fundamentais, seja para estruturar uma avaliação crítica para transmissão, publicação ou satisfação particular.

Para que isso aconteça, o primeiro passo é uma leitura atenta, que na maioria das vezes, exige muitas releituras. É importante tentar apreender nessas leituras o tipo de gênero textual que se tem em mãos, se prosa, poesia, ficção ou não ficção, ensaios, documentos históricos. Depois da primeira leitura, a segunda já deve ser sublinhando palavras, frases, períodos, fazendo anotações à margem (quem gostar), buscando relacionar com outras passagens mais adiante, indo e voltando quantas vezes sentir necessidade, Marcar tudo que chamar a atenção ou tiver conexão.

A estruturação de uma linha de pensamento sobre a qual vai se pretender escrever a resenha, é um facilitador. Para isso, identificar nas  marcações as passagens que vão ajudar a construir essa linha.

Se o texto for ficcional, atenção para os seguintes aspectos, não importa a ordem com que são abordados na resenha:

  • Análise dos elementos formais da narrativa. É uma narrativa circular ou retrospectiva? Como os capítulos se dividem? Determinar como a estrutura e a forma escolhidas afetam a narrativa.
  • Como  situar a narrativa? Drama psicológico, aventura, mistério, realismo fantástico, texto discursivo, metalinguagem, persuasivo, sátira, lírico. Aqui o resenhista deve se sentir livre para escarafunchar o texto tentando desvendá-lo.
  • Qual o foco narrativo? Existe mais de um? De quem é a voz que narra? Existe mais de uma? Como elas se conectam na história? Analisar se o texto está na primeira ou na terceira pessoa. Qual o tipo de narrador? É possível identificar o narratário? O texto mostra mais do que narra? Há muitas histórias paralelas ou subjacentes? O Espaço narrativo e o tempo narrativo, como estão sendo tratados no texto? Qual a trama, o estilo, os personagens? Personagem redondo ou plano? Há efeitos de repetição? Musicalidade?
  • Que tema ou temas são tratados no texto? Podem existir vários, mas qual o tema central, aquele que é a espinha dorsal da narrativa?

No texto não ficcional, outros elementos são importantes, como as fundamentações teóricas sobre as quais repousam os argumentos do autor. Se é um texto argumentativo que tenta defender alguma ideia, concentrar a análise na força dos argumentos. Se é um texto discursivo, verificar a coerência, a base de referência utilizada se é reconhecidamente adequada, quais as circunstâncias culturais, sociais, históricas, econômicas observadas.

Analisar o mérito da Obra, qual a contribuição dela para a Literatura;  as ideias apresentadas são criativas, originais. O texto é claro? A quem essa obra é dirigida? Que tipo de leitor?

Em qualquer tipo  de resenha é indispensável trazer informações sobre o autor, outras obras suas, a época em que a obra foi escrita para situá-la num contexto socioeconômico e literário.

Na obra que está sendo resenhada, informar, ainda:

– Catalogação da Obra

  • Título (subtítulo)
  • Publicação (número, editora, data)
  • Tradução (Quando se tratar de uma Obra Estrangeira)

A linguagem deve ser clara, informal, quase uma conversa. A avaliação crítica tem que ser bem pessoal. Mesmo quando usar análises de outras pessoas, não deixar de opinar no final. Pode ser escrita na primeira pessoa. A conclusão deverá resumir as informações apresentadas na resenha, de modo claro e interessante.

Jaboatão dos Guararapes, março de 2018

Lourdes Rodrigues