Escarafunchando baús

Escarafunchando baús encontrei fragmentos de viagens pelos mares das palavras que, embora amarfanhados, permaneciam registros vivos, pulsantes, de grandes momentos vividos.

Uma delas foi a de 15 de abril quando Paulo Tadeu, viageiro de longas datas, nos levou a poeta portuguesa Florbela Espanca com o poema Tarde no Mar.

Tarde no Mar
Florbela Espanca

A tarde é de oiro rútilo: esbraseia
O horizonte: um cacto purpurino.
E a vaga esbelta que palpita e ondeia,
Com uma frágil graça de menino,

Poisa o manto de arminho na areia
E lá vai, e lá segue ao seu destino!
E o sol, nas casas brancas que incendeia.
Desenha mãos sangrentas de assassino!

Que linda tarde aberta sobre o mar!
Vai deitando do céu molhos de rosas
Que Apolo se entretém a desfolhar…

E, sobre mim, em gestos palpitantes,
As tuas mãos morenas, milagrosas,
São as asas do sol, agonizantes…

Este vídeo fala de Florbela Espanca, da sua importância para o mundo literário, dos problemas emocionais que culminaram com o seu suicídio ao 36 anos de idade, apenas.

Em seguida, como era uma semana para nós cristãos de muito siso e pouco riso, dirigimos o leme para o Uruguai e ali escolhemos um roteiro mais denso. Começamos com o conto O Outro Eu, de Mario Benedetii,  que numa narrativa breve, eu diria até brevíssima,  extremamente interessante,  trouxe mais uma vez,  à Oficina, a questão do duplo, tão intensamente analisada quando lemos Wilson, Wilson, de Edgar Alan Poe.

O Outro Eu

(A morte e outras surpresas, 1968)

Mário Benedetti

Tratava-se de um rapaz comum: usava calças da moda, lia gibis, fazia barulho enquanto comia, cutucava o nariz com o dedo, roncava durante a soneca, se chamava Armando Corrente em tudo menos em uma coisa: tinha um Outro Eu.

O Outro Eu usava certa poesia no olhar, se apaixonava pelas atrizes, mentia cautelosamente, se emocionava com o entardecer. O rapaz se preocupava muito com seu Outro Eu e o fazia se sentir incomodado diante de seus amigos. Já o Outro Eu era melancólico e, por causa disso, Armando não podia ser tão vulgar quanto desejava.
Uma tarde Armando chegou cansado do trabalho, tirou os sapatos, moveu lentamente os dedos dos pés e ligou o rádio. Estava tocando Mozart, mas o rapaz dormiu. Quando acordou, o Outro Eu chorava desconsoladamente. Em um primeiro momento, o rapaz não soube o que fazer, mas depois se refez e conscientemente insultou o Outro Eu. Este não disse nada, mas na manhã seguinte já havia se matado.

No começo, a morte do Outro Eu foi um duro golpe para o pobre Armando, mas depois ele pensou que agora sim poderia ser inteiramente vulgar. Esse pensamento o reconfortou.

Levava apenas cinco dias de luto quando saiu pelas ruas com o propósito de exibir sua nova e completa vulgaridade. De longe viu que seus amigos se aproximavam. Isso o encheu de felicidade e o fez imediatamente explodir em risadas. Entretanto, quando passaram próximo dele, seus amigos não notaram sua presença. Para piorar, o rapaz pôde escutar que comentavam: “Pobre Armando. E pensar que parecia tão forte e saudável”.

O rapaz não teve outro remédio que parar de rir e, ao mesmo tempo, sentiu na altura do peito uma aflição que se parecia muito a nostalgia. Mas ele não pôde sentir uma autêntica melancolia, porque toda a melancolia tinha sido levada pelo Outro Eu.

A viagem seguinte foi pelo quarto de Sútulin, na Rússia, que ao aplicar o conteúdo de uma bisnaguinha escura, fininha, em seu quarto, começou a vê-lo crescer, crescer, de forma incontrolável. Trata-se de um conto de Sigismund Krzyanowski, que permaneceu quase toda a sua vida sem ser reconhecido,  cuja  narrativa bem se enquadra no fantástico maravilhoso hiperbólico, segundo Todorov, em que o exagero das dimensões daquele quarto vão criando tensão, asfixiando o leitor,  apesar de  consciente de sua irrealidade. Fantástico! Alguns vídeos e filmes foram feitos baseados nesse conto.  Aqui está um deles, excelente.

Os outros fragmentos ficarão para outra postagem.

Jaboatão dos Guararapes, 23 de maior de 2017

Lourdes Rodrigues

 

 

 

Viagem Oitava pelo Riso ou Diário de Bordo de 05 de abril de 2017

Diário de bordo do dia 5 de Abril de 2017.

*João Gratuliano como primeiro oficial ad hoc no comando da nau por motivo de doença da capitã.

Todo ditado popular tem sua sabedoria, e quando os gatos saem, os ratos fazem a festa não foge à regra. Sem a capitã, nosso quebra gelo foi um pouco mais prolongado. A tripulação esteve um pouco reduzida, mas quando já estavam Salete, Anita, Adelaide, Sarmento, Everaldo Júnior, Paulo, eu e as irmãs Cajazeiras, digo, Portela, nosso viageiro Everaldo Júnior  falou de um texto escrito por Freud  sobre a transitoriedade, que surgiu de um passeio do mestre da psicanálise com dois amigos (que os historiadores dizem ter sido Rilke e Lou Andreas Salomé) por uns campos sorridentes. 

.Eis o texto:

8. SOBRE A TRANSITORIEDADE (1916 [1915])

VERGÄNGLICHKEIT

(a) EDIÇÕES ALEMÃS:1916 Em Das Land Goethes 1914-1916. Stuttgart: Deutsche Verlagsanstalt. Pág. 37-8.1926 Almlanach 1927, 39-42.
1928 G.S., 11, 291-4.1946 G.W., 10, 358-61.
(b) TRADUÇÃO INGLESA:‘On Transience’1942 Int. J. Psycho-Anal., 23 (2), 84-5. (Trad. de James Strachey.)1950 C.P., 5, 79-82. (Mesmo tradutor.)

A presente tradução inglesa é uma reimpressão ligeiramente alterada da que foi publicada em 1950.
Este ensaio foi escrito em novembro de 1915, a convite da Berliner Goetherbund (Sociedade Goethe de Berlim) para um volume comemorativo lançado no ano seguinte sob o título de Das Land Goethes (O País de Goethe). Esse volume, produzido com esmero, enfeixava grande número de contribuições de autores e artistas conhecidos, passados e atuais, como von Bülow, von Brentano, Ricardo Huch, Hauptmann e Liebermann. O original alemão (exceto o quadro que apresenta dos sentimetnos de Freud sobre a guerra, que estava então em seu segundo ano) constitui excelente prova de seus poderes literários. É interessante notar que o ensaio abrange um enunciado da teoria do luto contido em ‘Luto e Melancolia’ (1971e), que Freud escrevera alguns meses antes, mas que só foi publicado dois anos depois.

SOBRE A TRANSITORIEDADE

Não faz muito tempo empreendi, num dia de verão, uma caminhada através de campos sorridentes na companhia de um amigo taciturno e de um poeta jovem mas já famoso. O poeta admirava a beleza do cenário à nossa volta, mas não extraía disso qualquer alegria. Perturbava-o o pensamento de que toda aquela beleza estava fadada à extinção, de que desapareceria quando sobreviesse o inverno, como toda a beleza humana e toda a beleza e esplendor que os homens criaram ou poderão criar. Tudo aquilo que, em outra circunstância, ele teria amado e admirado, pareceu-lhe despojado de seu valor por estar fadado à transitoriedade.

A propensão de tudo que é belo e perfeito à decadência, pode, como sabemos, dar margem a dois impulsos diferentes na mente. Um leva ao penoso desalento sentido pelo jovem poeta, ao passo que o outro conduz à rebelião contra o fato consumado. Não! É impossível que toda essa beleza da Natureza e da Arte, do mundo de nossas sensações e do mundo externo, realmente venha a se desfazer em nada. Seria por demais insensato, por demais pretensioso acreditar nisso. De uma maneira ou de outra essa beleza deve ser capaz de persistir e de escapar a todos os poderes de destruição.

Mas essa exigência de imortalidade, por ser tão obviamente um produto dos nossos desejos, não pode reivindicar seu direito à realidade; o que é penoso pode, não obstante, ser verdadeiro. Não vi como discutir a transitoriedade de todas as coisas, nem pude insistir numa exceção em favor do que é belo e perfeito. Não deixei, porém, de discutir o ponto de vista pessimista do poeta de que a transitoriedade do que é belo implica uma perda de seu valor.

Pelo contrário, implica um aumento! O valor da transitoriedade é o valor da escassez no tempo. A limitação da possibilidade de uma fruição eleva o valor dessa fruição. Era incompreensível, declarei, que o pensamento sobre a transitoriedade da beleza interferisse na alegria que dela derivamos. Quanto à beleza da Natureza, cada vez que é destruída pelo inverno, retorna no ano seguinte, do modo que, em relação à duração de nossas vidas, ela pode de fato ser considerada eterna. A beleza da forma e da face humana desaparece para sempre no decorrer de nossas próprias vidas; sua evanescência, porém, apenas lhes empresta renovado encanto. Um flor que dura apenas uma noite nem por isso nos parece menos bela. Tampouco posso compreender melhor por que a beleza e a perfeição de uma obra de arte ou de uma realização intelectual deveriam perder seu valor devido à sua limitação temporal. Realmente, talvez chegue o dia em que os quadros e estátuas que hoje admiramos venham a ficar reduzidos a pó, ou que nos possa suceder uma raça de homens que venha a não mais compreender as obras de nossos poetas e pensadores, ou talvez até mesmo sobrevenha uma era geológica na qual cesse toda vida animada sobre a Terra; visto, contudo, que o valor de toda essa beleza e perfeição é determinado somente por sua significação para nossa própria vida emocional, não precisa sobreviver a nós, independendo, portanto, da duração absoluta.

Essas considerações me pareceram incontestáveis, mas observei que não causara impressão quer no poeta quer em meu amigo. Meu fracasso levou-me a inferir que algum fator emocional poderoso se achava em ação, perturbando-lhes o discernimento, e acreditei, depois, ter descoberto o que era. O que lhes estragou a fruição da beleza deve ter sido uma revolta em suas mentes contra o luto. A idéia de que toda essa beleza era transitória comunicou a esses dois espíritos sensíveis uma antecipação de luto pela morte dessa mesma beleza; e, como a mente instintivamente recua de algo que é penoso, sentiram que em sua fruição de beleza interferiam pensamentos sobre sua transitoriedade.

O luto pela perda de algo que amamos ou admiramos se afigura tão natural ao leigo, que ele o considera evidente por si mesmo. Para os psicólogos, porém, o luto constitui um grande enigma, um daqueles fenômenos que por si sós não podem ser explicados, mas a partir dos quais podem ser rastreadas outras obscuridades. Possuímos, segundo parece, certa dose de capacidade para o amor – que denominamos de libido – que nas etapas iniciais do desenvolvimento é dirigido no sentido de nosso próprio ego. Depois, embora ainda numa época muito inicial, essa libido é desviada do ego para objetos, que são assim, num certo sentido, levados para nosso ego. Se os objetos forem destruídos ou se ficarem perdidos para nós, nossa capacidade para o amor (nossa libido) será mais uma vez liberada e poderá então ou substituí-los por outros objetos ou retornar temporariamente ao ego. Mas permanece um mistério para nós o motivo pelo qual esse desligamento da libido de seus objetos deve constituir um processo tão penoso, até agora não fomos capazes de formular qualquer hipótese para explicá-lo. Vemos apenas que a libido se apega a seus objetos e não renuncia àqueles que se perderam, mesmo quando um substituto se acha bem à mão. Assim é o luto.

Minha palestra com o poeta ocorreu no verão antes da guerra. Um ano depois, irrompeu o conflito que lhe subtraiu o mundo de suas belezas. Não só destruiu a beleza dos campos que atravessava e as obras de arte que encontrava em seu caminho, como também destroçou nosso orgulho pelas realizações de nossa civilização, nossa admiração por numerosos filósofos e artistas, e nossas esperanças quanto a um triunfo final sobre as divergências entre as nações e as raças. Maculou a elevada imparcialidade da nossa ciência, revelou nossos instintos em toda a sua nudez e soltou de dentro de nós os maus espíritos que julgávamos terem sido domados para sempre, por séculos de ininterrupta educação pelas mais nobres mentes. Amesquinhou mais uma vez nosso país e tornou o resto do mundo bastante remoto. Roubou-nos do muito que amáramos e mostrou-nos quão efêmeras eram inúmeras coisas que consideráramos imutáveis.

Não pode surpreender-nos o fato de que nossa libido, assim privada de tantos dos seus objetos, se tenha apegado com intensidade ainda maior ao que nos sobrou, que o amor pela nossa pátria, nossa afeição pelos que se acham mais próximos de nós e nosso orgulho pelo que nos é comum, subitamente se tenham tornado mais vigorosos. Contudo, será que aqueles outros bens, que agora perdemos, realmente deixaram de ter qualquer valor para nós por se revelarem tão perecíveis e tão sem resistência? Isso parece ser o caso de muitos de nós; só que, na minha opinião, mais uma vez, erradamente. Creio que aqueles que pensam assim, de e parecem prontos a aceitar uma renúncia permanente porque o que era precioso revelou não ser duradouro, encontram-se simplesmente num estado de luto pelo que se perdeu. O luto, como sabemos, por mais doloroso que possa ser, chega a um fim espontâneo. Quando renunciou a tudo que foi perdido, então consumiu-se a si próprio, e nossa libido fica mais uma vez livre (enquanto ainda formos jovens e ativos) para substituir os objetos perdidos por novos igualmente, ou ainda mais, preciosos. É de esperar que isso também seja verdade em relação às perdas causadas pela presente guerra. Quando o luto tiver terminado, verificar-se-á que o alto conceito em que tínhamos as riquezas da civilização nada perdeu com a descoberta de sua fragilidade. Reconstruiremos tudo o que a guerra destruiu, e talvez em terreno mais firme e de forma mais duradoura do que antes.

Em seguida surgiu um debate sobre a mulher. Sobre o seu papel e as dificuldades numa sociedade ocidental machista. Tínhamos uma artigo para ler sobre o conto Hoje de Madrugada de Raduan Nassar, segundo Anita, um dos contos mais impactantes que ela já leu ultimamente. E segundo Adelaide, “Um sopapo escrito e narrado por um homem que percebe os meandros da alma feminina e do que magoa e sabe como narrá-lo. (…) Erótico implícito.”

Como nem todos haviam lido o conto, não vou denunciar quem fui que não leu, então resolvemos relê-lo. E seguiram-se os comentários sobre o conto e de como cada um tinha sido impactado por ele. Com isso não havia mais tempo para ler o artigo e deixamos para o próximo encontro. Não sei se foi só isso, mas sei que foi assim.

Segue o Conto de Raduan Nassar lido:

Hoje de Madrugada

Raduan Nassar

O que registro agora aconteceu hoje de madrugada quando a porta do meu quarto de trabalho se abriu mansamente, sem que eu notasse. Ergui um instante os olhos da mesa e encontrei os olhos perdidos da minha mulher. Descalça, entrava aqui feito ladrão. Adivinhei logo seu corpo obsceno debaixo da camisola, assim como a tensão escondida na moleza daqueles seus braços, enérgicos em outros tempos. Assim que entrou, ficou espremida ali ao canto; me olhando. Ela não dizia nada, eu não dizia nada. Senti num momento que minha mulher mal sustentava a cabeça sob o peso de coisas tão misturadas, ela pensando inclusive que .me atrapalhava nessa hora absurda em que raramente trabalho, eu que não trabalhava. Cheguei a pensar que dessa vez ela fosse desabar, mas continuei sem dizer nada, mesmo sabendo que qualquer palavra desprezível poderia quem sabe tranquilizá-la. De olhos sempre baixos, passei a rabiscar ao verso de uma folha usada, e continuamos os dois quietos: ela acuada ali no canto, os olhos em cima de mim; eu aqui na mesa, meus olhas em cima do papel que eu rabiscava. De permeio, um e outro estalido na madeira do assoalho.

Não me mexi na cadeira quando percebi que minha mulher abandonava o seu canto, não ergui os olhos quando vi sua mão apanhar o bloco de rascunho que tenho entre meus papéis. Foi uma caligrafia rápida e nervosa; foi una frase curta que ela escreveu, me empurrando o bloco todo, sem destacar a folha, para o foco dos meus olhos: “vim em busca de amor” estava escrito, e em cada letra era fácil de ouvir o grito de socorro. Não disse nada, não fiz um movimento, continuei com os olhos pregados na mesa. ?Mas logo pude ver sua mão pegar de novo o bloco e quase em seguida me devolvê-lo aos olhos: “responda” ela tinha escrito mais embaixo numa letra desesperada, era um gemido. Fiquei um tempo sem me mexer, mesmo sabendo que ela sofria, que pedia em súplica, que mendigava afeto. Tentei arrumar (foi um esforço) sua imagem remota, iluminada; provocadoramente altiva, e que agora expunha a nuca a um golpe de misericórdia. E ali, do outro lado da mesa, minha mulher apertava as mãos, e esperava. Interrompi o rabisco e escrevi sem pressa: “não tenho afeto para dar”, não cuidando sequer de lhe empurrar o bloco de volta, mas nem foi preciso, sua mão, com a avidez de um bico, se lançou sobre o grão amargo que eu, num desperdício, deixei escapar entre meus dedos. Mantive os olhos baixos, enquanto ela deitava o bloco na mesa com calma e zelo surpreendentes, era assim talvez que ela pensava refazer-se do seu ímpeto.

Não demorou, minha mulher deu a volta na mesa e logo senti sua sombra atrás da cadeira, e suas unhas no dorso do meu pescoço, me roçando as orelhas de passagem, raspando o meu couro, seus dedos trêmulos me entrando pelos cabelos desde a nuca. Sem me virar, subi o braço, fechei minha mão ao alto, retirando sua mão dali como se retirasse um objeto corrompido, mas de repente frio, perdido entre meus cabelos. Desci lentamente nossas mãos até onde chegava o comprimento do seu braço, e foi nessa altura que eu, num gesto claro, abandonei sua mão no ar. A sombra atrás de mim se deslocou, o pano da camisola esboçou um voo largo, foi num só lance para a janela, tinha até verdade naquela ponta de teatralidade. Mas as venezianas estavam fechadas, ela não tinha o que ver, nem mesmo através das frinchas, a madrugada lá fora ainda ressonava. Espreitei um instante: minha mulher estava de costas, a mão suspensa na boca, mordia os dedos.

Quando ela veio da janela, ficando de novo à minha frente, do outro lado da mesa, não me surpreendi com o laço desfeito do decote, nem com os seios flácidos tristemente expostos, e nem com o traço de demência lhe pervertendo a cara. Retomei o rabisco enquanto ela espalmava as mãos na superfície, e, debaixo da mesa, onde eu tinha os pés descalços na travessa, tampouco me surpreendi com a artimanha do seu pé, tocando com as pontas dos dedos a sola do meu, sondando clandestino minha pele no subsolo. Mais seguro, próspero, devasso, seu pé logo se perdeu sob o pano do meu pijama, se esfregando na densidade dos meus pelos, subindo afoito, me lambendo a perna feito uma chama. Fiz a tentativa com vagar, seu pé de início se atracou voluntarioso na barra, e brigava, resistia, mas sem pressa me desembaracei dele, recolhendo meus próprios pés que cruzei sob a cadeira. Voltei a erguer os olhos, sua postura, ainda que eloquente, era de pedra: a cabeça jogada em arremesso para trás, os cabelos escorridos sem tocar as costas, os olhos cerrados; dois frisos úmidos e brilhantes contornando o arco das pálpebras; a boca escancarada, e eu não minto quando digo que  não eram os lábios descorados, mas seus dentes é que tremiam.

Numa arrancada súbita, ela se deslocou quase solene em direção à porta; logo freando porém o passo. E parou. Fazemos muitas paradas na vida, mas supondo-se que aquela não fosse uma parada qualquer, não seria fácil descobrir o que teria interrompido o seu andar. Pode ser simplesmente que ela se remetesse então a uma tarefa trivial a ser cumprida quando o dia clareasse. Ou pode ser também que ela não entendesse a progressiva escuridão que se instalava para sempre em sua memória. Não importa que fosse por esse ou aquele motivo, só sei que, passado o instante de suposta reflexão minha mulher, os ombros caídos, deixou o quarto feito sonâmbula.

O texto acima foi extraído dos “Cadernos de Literatura Brasileira”, Instituto Moreira Salles – Rio de Janeiro, exemplar número 2 de setembro de 1996, pág. 56.

  • João Gratuliano é contista, ensaísta, poeta, crítico literário.

 

 

Viagem Sexta pelo Riso

 

Viagem Sexta pelo Riso

*Luzia Ferrão

O viageiro Sarmento, no Momento Poético, relembrou um passado que não passou e que continua muito vivo ainda em nossas lembranças, com a poesia Operário em Construção, de Vinicius de Moraes. Certamente este poema, parafraseando o próprio poeta, será imortal enquanto dure, enquanto dure a exploração do homem pelo próprio homem, eu acrescentaria.

O operário de construção, semelhante a um pássaro sem asas, subia com as casas que lhe brotavam das mãos. Estávamos vivendo um Brasil ditatorial cruel que não permitia –aos operários/povo- reconhecer o valor do seu trabalho. Vinicius mostra esse desconhecimento ao dizer: Como podia o operário compreender porque um tijolo valia mais que um pão? Como também desconhecia que o operário faz a coisa e a coisa faz o operário. Os ditadores não conseguiram impedir que pelas mãos desse humilde operário nascesse  um mundo novo, adquirindo a dimensão da poesia que ia aos poucos sendo derramada nos corações dos outros operários. E o operário disse NÃO! Um não que custou a ele e seus companheiros bárbaros tratamentos, pau de arara, choque elétrico, morte, sem direito à família de velar o seu defunto, restando a esperança de que novos tempos viriam. Muitas águas passaram por debaixo da ponte, mas a violência não conseguiu que o operário deixasse de enxergar, de agigantar-se, vendo em tudo que fazia o que de fato acontecia: o lucro do patrão. Neste poema, Vinicius descreve o processo de tomada de consciência do operário, partindo do pressuposto marxista de alienação.

 

O OPERÁRIO EM CONSTRUÇÃO
(Rio de Janeiro,1959)

Vinicius de Moraes

E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo:
– Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu.
E Jesus, respondendo, disse-lhe:
– Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.
Lucas, cap. V, vs. 5-8.

Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.

De fato, como podia
Um operário em construção
Compreender por que um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia…
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento
Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse, eventualmente
Um operário em construção.

Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
– Garrafa, prato, facão –
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.

Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.

Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
– Exercer a profissão –
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.

E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.

E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Que sempre dizia sim
Começou a dizer não.
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:

Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uísque do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.

E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução.

Como era de se esperar
As bocas da delação
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão.
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação
– “Convençam-no” do contrário –
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isso sorria.

Dia seguinte, o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu, por destinado
Sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!

Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras se seguiram
Muitas outras seguirão.
Porém, por imprescindível
Ao edifício em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.

Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário.
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
– Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.

Disse, e fitou o operário
Que olhava e que refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
O operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!

– Loucura! – gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
– Mentira! – disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.

E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão.

Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção.

Nem precisa ser muito ligado em literatura para gostar do diplomata, jornalista, compositor (dos bons), poeta Marcus Vinicius de Mello Moraes, ou Vinicius de Moraes, como era mais conhecido, ou  simplesmente poetinha, como o chamava Tom Jobim. Era como poeta e compositor,  através de sonetos e de canções,  que ele gostava de ser reconhecido. Carioca da gema, sessenta e seis anos vividos intensamente, casou nove vezes, era um boêmio curtindo a vida carioca com cigarro e uísque.

É difícil elencar a obra deste gênio brasileiro, por isso escolhemos citar trechos de algumas delas para ilustrar a poesis do branco mais preto do Brasil

Soneto da fidelidade

De tudo ao meu amor serei atento
Que ele seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure

Samba da benção

È melhor ser alegre que ser triste
A alegria é a melhor coisa que existe
Mas pra se fazer um samba com beleza
é preciso um bocado de tristeza
Se não, não se faz um samba não
A vida é arte do encontro
Embora exista tantos desencontros pela vida

Cantos de Ossanha

Não vou eu não sou ninguém de ir
Em conversas de esquecer a tristeza
De um amor que passou
Não eu sou vou se for pra ver
Uma estrela aparecer
Na manhã de um novo amor

Rosa de Hiroschima

A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa, sem nada

Onde anda você

E por falar em saudade
Onde anda você
Onde andam seus olhos que a gente não vê

Minha namorada

Mais se em vez minha namorada
Você quer ser minha amada
Minha amada, mais amada pra valer
Aquela amada pelo amor predestinada
Sem a qual a vida é nada
Sem a qual se quer morrer

Garota do Ipanema

Vejam que coisa mais linda
Mais cheia de graça
é ela menina
que vem e que passa
no doce balanço
A caminho do mar

Samba em preludio

Eu sem você não tenho nem porque
Porque sem você
Não sei nem chorar
Sou chama sem luz
Jardim sem luar

Sarmento continuou alimentando o grupo sedento de poesia, dessa feita com os poemas de Geir Campos, Tarefa e Alba, seguindo a mesma trilha de poesia de denúncia social, poesia comprometida politico e socialmente.


Tarefa

Morder o fruto amargo e não cuspir
mas avisar aos outros quanto é amargo,
cumprir o trato injusto e não falhar
mas avisar aos outros quanto é injusto,
sofrer o esquema falso e não ceder
mas avisar aos outros quanto é falso;
dizer também que são coisas mutáveis…
E quando em muitos a noção pulsar
— do amargo e injusto e falso por mudar —
então confiar à gente exausta o plano
de um mundo novo e muito mais humano.
(1957)

**Alba

Não faz mal que amanheça devagar,
as flores não têm pressa nem os frutos:
sabem que a vagareza dos minutos
adoça mais o outono por chegar.
Portanto não faz mal que devagar
o dia vença a noite em seus redutos
de leste – o que nos cabe é ter enxutos
os olhos e a intenção de madrugar.
(1957)

O poeta Geir Canpos é capixaba, membro do partido comunista, engajado nas lutas políticas e sociais., formado em Teatro e Doutor em Comunicação Social. Talvez por suas posições políticas  foi pouco difundido pela mídia. Poeta, livreiro, tradutor, faz parte dos poetas da chamada geração 45, destacava-se pelo rigor literário e estético.. Foi um dos fundadores da editora Hipocampo, junto com o poeta Thiago de Melo, para difundir suas obras de forma artesanal. Marcou presença também como um dos organizadores dos Cadernos do Povo Brasileiro, Violão de Rua, publicados pelo Centro Popular de Cultura da UNE.

. “A poesia de Geir Campos tem circulação, ousadia e canto. Ninguém pode equivocar-se: aproximando o ouvido, sentimo-la como um rumor de cristal errante, sentido e som da poesia verdadeira.” (Pablo Neruda)

**Alba significado: Claridade que precede ao nascer do dia

Seguindo com a Oficina, outro pilar dos trabalhos foi iniciado com a leitura dos contos escritos pelos seus participantes, os viageiros pelos mares das palavras. Três contos estavam previstos para serem lidos, sendo seus autores eu,  Salete e Eleta. A Oficina procura estimular a criatividade e o exercício da lapidação das palavras, para que  os viageiros  se tornem  artesãos da escrita. trabalhando técnicas de ensaio, contos, novelas ou outras, sobre temas acordados entre seus pares. Neste dia o tema foi o do  triangulo amoroso, com  o constrangimento da duplicação, em que uma história estaria sendo contada e outra estava ocorrendo ao mesmo tempo, tão ou mais importante do que a primeira. A ideia do constrangimento decorre da concepção Oulipiana de limitar a escrita a alguma condição anterior.

Iniciando a leitura dos contos por mim, Luzia, com  o conto Corações na Bananeira, que gerou um debate profundo sobre a construção do tema, entendimento dos personagens, linguagem poética, ortografia, gramatica, ineditismo.O tempo da oficina esgotou-se sem as demais leituras programadas e sem a conclusão da análise do meu conto. Por conta disso, algumas sugestões foram apontadas para maximizar o tempo para as análises das narrativas, entre elas,  a da leitura antecipada, cada participante traria a sua análise para que melhor fosse aproveitado esse importante momento literário.

*Luzia Ferrão, professora universitária, assistente social, contista, ensaísta.

**Alba significado: Claridade que precede ao nascer do dia

Do Riso ao Trágico: Um Mar de Palavras

Embarcamos para a primeira Oficina de 2017 do cais da nossa maruja Adelaide Câmara, onde fomos recebidos com muitas guirlandas.Destaque para as coxinhas e lolitas que Paula nos preparou. Quase todos viageiros estavam presentes, exceções muito sentidas de Paulo, que se recuperava de uma gripe, e de Gratuliano que viajou para dar conta de afazeres inadiáveis com a sua fazenda.

Começamos com a Saudação Poética da nossa anfitriã, Adelaide, que leu o poema de Cecília Meireles, Canção.  É um belo poema  que fala de um sonho posto num navio que o proprio sonhador usa a mãos para fazer naufragar, disposto a chorar todo choro que for preciso para que o navio chegue ao fundo do mar e então “tudo estará perfeito: praia lisa, águas ordenadas,/meus olhos secos como pedras/
e as minhas duas mãos quebradas”. Muito triste.Tão belo quanto triste, eu diria

CANÇÃO
Cecília Meireles

Pus o meu sonho num navio
E o navio em cima do mar;
-depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar.

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre dos meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio…

Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois tudo estará perfeito:
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.

Adelaide leu ainda um texto muito interessante de Augusto Abelaira, Requiem pelo ponto de Exclamação. Ele começa falando da particularidade da língua portuguesa ao dispor da palavra saudade, perguntando se os outros povos ignoravam o sentimento saudade e se quem não sabe nominar pode dispor do sentimento. E por aí segue… Leitura agradável, humor fino. O texto vai para a nossa biblioteca para quem se interessar pela leitura.

Iniciamos o humor daquela tarde com François Rabelais, mais precisamente com a leitura dos capítulos III a VII de Gargântua e Pantagruel . Realismo fantástico, absoluto. Gargântua após onze meses no ventre da mãe resolve nascer justo no dia em que ela se empanturrou de dobradinha (tripas de bois engordaddos no estábulo, segundo o autor), apesar dos protestos do marido, comendo dezesseis tonéis, uma pipa e seis alqueires. Ó bela matéria fecal que devia se formar dentro dela!  Não deu outra, depois do excesso gastronômico ela começou a sentir dor, a se lamentar e a gritar, aparecendo parteiras de todos os lados que ao a apalparem encontraram aparas de pele, fétidas, que eram os fundos que se lhe escapavam. Diante dessa situação, a parteira velha experiente deu um restringente tão forte que todas as peles ficaram tão apertadas e cerradas que pelas zonas baixas não passavam mais nada.  A passagem encontrada pela criança para sair foi pelos cotilédonos da matriz, seguindo pela veia cava, trepando pelo diagragma até acima dos ombros, onde a dita veia se divide em duas, tomou caminho à esquerda e saiu pela orelha sinistra. E ao nascer, não chorou como as outras crianças,  mas exclamou em voz bem alta: “Beber, beber, beber!”

Escatologia e realismo fantástico neste obra excelente do escritor francês, que tornou-se um clássico da literatura, inovando o fazer literário do humor. O dialógo dos bêbados é perfeito.São vários homens falando ao mesmo tempo, as conversas mais desencontradas e hilárias que se possa imaginar. Muito bom. A nossa colega Roberta Aymar, na ocasião, fez uma fala com uma sintese de Rabelais, muito interessante.A nosso pedido, ela está elaborando uma biografia do autor para dividir com os marujos e neste blog.

Após Rabelais, lemos um resumo que eu fiz do primeiro capítulo de Henry Bergson sobre O Riso, autor citado em todos os estudos sobre o humor. Filosófo e diplomata francês, ele ficou conhecido por vários trabalhos publicados, entre eles,  O RisoEnsaios sobre os dados imediatos da consciência, Matéria e Memória, A evolução criadora e As duas fontes da moral e da Religião.  O Riso foi publicado em 1899. Ele teve vários seguidores, entre os quais, Gilles Deleuze.

Bergson inicia o ensaio o perguntando o que é o riso? O que há de fato na essência do risível? O que há de comum entre uma careta de palhaço, um jogo de palavras, um qüiproquó de vaudeville, uma cena de comédia fina?  Então, ele cita três observações fundamentais para entender  a questão.

A primeira delas é que a comicidade é do humano. A natureza, os objetos não apresentam comicidade sem a ação do homem, sem a expressão humana.Eles em si não são risíveis.Rimos de um chapéu; mas então não estamos gracejando com o pedaço de feltro ou de palha, mas com a forma que os homens lhe deram, com o capricho humano que lhe serviu de molde.

Os filósofos definiram o homem como um animal que sabe rir. Bergson diz que eles deveriam também ter definido o homem como um animal que faz rir, pois, se algum outro animal ou objeto inanimado consegue fazer rir, é devido a uma semelhança com o homem, à marca que o homem lhe imprime ou ao uso que o homem lhe dá.

Outro ponto ressaltado por Bergson é a insensibilidade que acompanha o riso. Para êle o cômico só produzirá comoção se cair sobre uma superfície d’alma serena e tranquila. A indiferença é o seu meio natural. O maior inimigo do riso, diz Bergson, é a emoção, o que não significa que não se possa rir de quem temos piedade ou afeição. Para que o riso possa acontecer será necessário colocar em suspensão, mesmo que por apenas alguns instantes, qualquer piedade ou sentimento de afeição.

Numa sociedade de puras inteligências provavelmente não mais se choraria, mas talvez ainda se risse; ao passo que almas invariavelmente sensíveis, harmonizadas em uníssono com a vida, nas quais qualquer acontecimento se prolongasse em ressonância sentimental, não conheceriam nem compreenderiam o riso.
Que o leitor tente, por um momento, interessar-se por tudo o que é dito e tudo o que é feito, agindo, em imaginação, com os que agem, sentindo com os que sentem, dando enfim à simpatia a mais irrestrita expressão: como num passe de mágica os objetos mais leves lhe parecerão ganhar peso, e uma coloração grave incidirá sobre todas as coisas. Que o leitor agora se afaste, assistindo à vida como espectador indiferente: muitos dramas se transformarão em comédia. Basta taparmos os ouvidos ao som da música, num salão de baile, para que os dançarinos logo nos pareçam ridículos.
(…) Portanto, para produzir efeito pleno, a comicidade exige enfim algo como uma anestesia momentânea do coração. Ela se dirige à inteligência pura.

Outro aspecto levantado por Bergson é que nosso riso é sempre o riso de um grupo. O riso precisa de eco: Não saborearíamos a comicidade se nos sentíssemos isolados. Ele cita exemplo das pessoas que em viagem ou à mesa de hospedarias ouvem histórias que parecem muito cômicas para os que estão ali, pois os fazem rir o tempo todo e com muito gosto, mas que eles não conseguem alcançar a razão para tanto riso. E ele citou o exemplo do homem que não chorava num sermão em que todos choravam profusamente e quando lhe perguntaram porque não chorava ele respondeu: “Não sou desta paróquia.” Ele diz que isso é ainda mais verdadeiro quando se refere ao riso, porque Por mais franco que o suponham, o riso esconde uma segunda intenção de entendimento, eu diria quase de cumplicidade, com outros ridentes, reais ou imaginários.

Enfim, Bergson diz, para compreender o riso é preciso colocá-lo em seu meio natural, que é a sociedade; é preciso, sobretudo, determinar sua função útil, que é uma função social. O riso deve ter uma significação social.

Foi uma bela tarde em que não faltaram as anedotas, as tirinhas e charges, e ainda as gostosas coxinhas e lolitas feitas por Paula, muito bem registrados por Adriana Câmara.

Lourdes Rodrigues

Finalmente

Finalmente

*Everaldo Soares Júnior

Duas horas da madrugada, quando cansado não adormeço, ela não! dorme profundamente, ressona alto.Queria ser assim, mas as preocupações! Que faço com essas insistências tão irritantes?
Fecho o livro, não adianta. O percurso é o mesmo, banheiro, depois, a cozinha. Bebo água, gelada é melhor, vou relaxar.
Tsisis, tsisis, tsisis…
Cigarra tocando a essa hora, só faltava essa! Estranho, já são quase três, mas só ela continua roncando.
Quem é?
Abra, preciso falar com você.
Mas quem é?
Não se faça de inocente, você sabe muito bem.
Se identifique e diga o que quer?
Vou fazer um escândalo, não duvide.
Espere.
Assim é melhor.
Finalmente, eu o encontrei, fujão!
O que é isso?
Vai começar com as juras mentirosas? Não acredito mais, tudo mentira cavilosa e temos muito que acertar. E vamos logo ao assunto, no momento que lhe disse que estava grávida de um filho seu, ouvi belas enganações amorosas, depois sumiu, escafedeu-se. Sou tola até certo limite, agora o encontrei. Uso a lei e acabo com sua pose de conquistador de meia tigela.
Calma, há um equívoco nisso tudo.
Equivocada fui eu. Vamos logo, acenda a luz.
Epaminondas, está falando sozinho?
Ah! O seu nome é esse?
Sou Epaminondas Paraíso, não conheço a senhora.
Então vai ver mesmo quem é a mulher de verdade.
Que gritaria, estava dormindo, acenda as luzes da sala Nondas.
A visitante trapalhona era loura, alta, nem feia e nem bonita. Começou a chorar, o soluço cortava sua voz
Meu Deus que vergonha!!! Tudo por causa daquele safado
Tome um pouco d’água, lhe fará bem. Nondas, traga logo uma água com açúcar.
Obrigada, senhora, não sei o que falar.
Vou abrir a janela, está abafado.
Tenho quase quarenta anos e me apaixonei profundamente, sinto ódio e cada vez fico mais presa aquele safado, perdi até o bom senso. Ele era amoroso, disponível comigo, mas ultimamente estava diferente, arredio, às vezes grosseiro. Não aguentei, vinha o ciúme, a raiva e o medo de perdê-lo. Estou grávida. Loucura mesmo. Perdi minha mãe cedo, meu pai fez outra família, fui criada pela minha avó e pela minha tia. Já viu a complicação.
Calma, agora tem o filho para você cuidar
Desculpem-me, vou embora, chamo um táxi conhecido. Essa rua é a Hernesto Veras?
Não, aqui é a Hermenegildo de Maria.
Quero dormir, vou tomar um calmante fitoterápico.
Se quiser, volte para conversar.
Obrigada, apesar do meu vexame, foi bom conhecê-los.
Ainda está chovendo.
Está passando, o carro não demora, o motorista já dirigiu outras vezes para mim.
Ouviram a zoada do táxi partindo. Na casa voltou o silêncio.
Nondas, feche a janela, vamos dormir.
Eufrazina, faça-me um chá de camomila. Jamais a doce de coco faria uma desfeita assim comigo. Finalmente, preciso relaxar.
Nondas, seu calmante sou eu.

  • Médico, Psicanalista, ensaísta, contista.

A Escrita Criativa e O Patinho Feio

A ideia subjacente à Escrita Criativa é a criação de algo diferente, algo que espante não só ao seu autor como e principalmente a quem o irá ler depois. O conforto de trilhar caminhos conhecidos é muito difícil de ser abandonado! Alguns começam colocando um pé devagarinho para avaliar a profundidade das águas que vai mergulhar. Outros ficam a espreitar o mar. Poucos se aventuram a se jogar nas águas mesmo pairando dúvidas sobre a sua capacidade e fôlego para nadar

Os viageiros da Oficina são marujos experientes e estão imbuídos do desejo de sair da zona de conforto para se aventurarem em águas mais profundas onde o desconhecido, o novo poderão advir. Mas eles não têm pressa, sabem que há um caminho a ser caminhado antes de chegar lá e irão trilhá-lo com destemor e determinação.

O primeiro desafio foi criado com o conto de Andersen: O Patinho Feio. Pedi que reescrevessem o conto com o máximo de liberdade, desde a mudança do personagem, do foco narrativo, tempo e espaço da narrativa. Ainda estamos recebendo contos, outros já estão sendo reescritos partindo do pressuposto de que no ato de criação nenhuma amarra sintática, nenhuma dissonância fonética ou estética deverão ser objeto de preocupação sob pena de bloquear o fluxo criativo  ou quebrar o ritmo da escrita. Após esse primeiro momento é que se dá início ao processo artesanal do escritor onde todos os aspectos anteriormente ausentes vão ser contemplados, onde o texto irá passar por sérios e importantes cortes, profunda assepsia para deixá-lo no tamanho certo, com o tom requerido, a  beleza almejada. Cortar palavras não é fácil, mas é fundamental para todo aquele que se propõe a ser escritor. Edgard Allain Poe em A Filosofia da Composição, diz que o escritor deve planejar nos mínimos detalhes a sua obra antes de começar a escrevê-la. Na Escrita Criativa abrimos mão de toda cientificidade nesse primeiro momento para dar espaço e liberdade plena à criação.

O Conto Patinho Feio  de Everaldo Soares Júnior, viageiro da primeira hora, médico, psicanalista, ensaísta, contista já passou por todo esse processo e se encontra pronto para ser apresentado e é o que faremos agora:

O Feio

*Everaldo Soares Júnior

Sim, agora sou um cisne, branco como os outros, tenho postura imponente, flutuo nas águas da lagoa, mas não canto, Deus me livre!

Essa história já é bastante conhecida, foi o Hans Christian Andersen quem fez a invencionice de espalhá-la. Passei tempos desnorteado, mal estar diferente.

Houve um equívoco, nasci chocado por uma pata, porém era diferente dos irmãos patinhos, todos amarelinhos, contentes, enfileirados, tomando banho na lagoa. Andavam com os pés de lado, dez pras duas horas, bico chateado com o quá, quá, quá estridente, barulho infernal. Eu calado, só observando. É, mas a pata dizia, ele é pato, ou seja: meu filho! Gostava, o estranhamento se afastava um pouco de mim.O pai era omisso, quando não, era agressivo e desconfiado. Dizia que eu não tinha semelhança com ele.

O tempo foi passando, às vezes brincava com os outros, mas na maioria preferia ficar sozinho, cantar, de jeito nenhum!

Um dia, arrisquei ir para outra lagoa mais distante, maior e de águas bem limpas, parecia um lago estrangeiro, aquele que se ouvia a valsa famosa, mas eu não sabia cantar. Olhava as outras aves do lugar, brancas, altivas, todas deslizando na água azul. Olhei e vi uma branquinha, dos olhos claros, piscando para mim, fiquei nervoso. Mas, olhos nos olhos nos aproximando e agora? Não tive dúvidas, ficara fisgado pela linda avezinha. Rolou uma conversa, falei muito de meus antepassados desconcertantes. Ela ouvia com atenção e a leveza se instalou no momento dos nossos bicos se tocarem por um bom tempo. Sorrimos e continuamos juntinhos. Beleza! O paraíso está nessa lagoa!

Passaram os tempos, nasceram patinhos, ou melhor, cisnezinhos, branquinhos e lindos, formávamos a família feliz.

Uma tarde, quando o crepúsculo derramava suas cores alaranjadas, a estranheza voltou. Que diabo é isso? Estava tudo bem nessa sucessão de belos dias e agora a repetida imagem estranha volta e acaba com tudo. Desconfio que ela me é familiar, de algum modo. O feio é o que não quero ver em mim mesmo, vai para longe, inferno dos outros! Deixa-me em paz! Estranhe, se quiser, mas eu não canto.

  • Everaldo Soares é médico, psicanalista, ensaísta, contista.

Diferente de Andersen, O Patinho Feio de Júnior não resolve seu sentimento de rejeição e estranhamento quando se depara com a sua tribo. As afinidades e o amor com a cisne branquinha de olhos claros, e o nascimento dos filhotes não foram suficientes para afastar dele nos belos dias a velha sensação de estranheza que lhe era familiar de algum modo. E ele arremata, O feio é o que não quero ver em mim mesmo. (…) Estranhe, se quiser, mas eu não canto. 

Luzia Ferrão também optou por não encontrar saída para o seu patinho feio no encontro com a sua turma.  Após a triste travessia da descoberta pelos colegas que não era tão bonito quanto a sua mãe dizia, ele parece abandonar a luta, assumir a feiura e ganhar dinheiro com ela expondo-se ao horror do público frequentador do circo. Apesar disso, preserva a mãe dizendo que é artista de circo, sem expor  a humilhação a que ele se submete. Trouxe a sua história para os tempos atuais e para o ser humano. Usou um narrador na terceira pessoa para contá-la.

O monstrinho

*Luzia Ferrão

Quando nasceu era de fato horrível, vale dizer, fugia aos padrões da normalidade, na opinião dos parentes, amigos, dos que conviveram com ele, menos de sua mãe. Era filho único, realizou o maior desejo dela – ser mãe- Foi um grande presente, um dádiva divina, a um ser que não se sentia merecedor de nada. Sentia-se tão gratificada que tratou como normal, os pezinhos tortos, o estrabismo e o lábio leporino do seu filhinho querido. Os “consertos” não ficaram assim tão perfeitos, mas que importância traria essas pequenas falhas, num ser tão amado? Virou mantra, repetida com frequência: Meu filho amado e lindo!

Chegou o dia do menino abandonar o ninho e ir à escola. No novo ambiente o mantra mudou: beiçola, Frank, Zé monstrinho, dois ou mais repetiam quando por ele passava.

Acariciado extremamente, o filho lindo e querido trocou o alivio que as palavras confortadoras da mãe lhe dava por uma raiva não identificada por ela. Uma raiva incontida do tom monótono da voz, dos carinhos, da presença que se tornara insuportável. A relação se esgarçava, se rompia, aflorando uma culpa da maldade por alguém que só lhe deu amor. A promessa embutida nas palavras seriam a garantia de felicidade dentro e fora do ninho, mas que se tornaram impeditivas de responder às angústias advindas de tanto amor. Estava travada uma corrida em círculo, por vezes vencia o amor, por vezes o ódio. Diferente da mãe que estava realizada desde que o abrigou dentro de si, que dela se apartou, mas não desapareceu nunca de sua vida, sem mistério, sem culpa, amor incondicional.

O convite foi a porta que se abriu para fugir: o papel de homem monstro estava vago no circo ambulante.  Com apenas uns pequenos retoques,  maquiagem e ensaios de gritos, seguidos de som acústico para assombrar a platéia. Tornou-se artista permanente.

“Querida mãe,

orgulhe-se do seu filho, sou o mais novo artista do circo. Um beijo”

fd

  • Luzia Ferrão – professora universitária, assistente social, contista, ensaísta.

Sandy Wexler film trailer

O Patinho Manco

O PATINHO MANCO

*César Garcia

É sabido que o andar do pato é o mais deselegante dos andares de todos os animais. Digo é sabido, mas só vim tomar conhecimento disso muito depois do meu nascimento. Até então, coxo, pensava que só eu andava de modo ridículo. Meus irmãos aproveitavam-se do fato para me torturar e me excluir dos jogos e brinquedos. Meu pai era omisso e minha mãe tentou defender-me até certa idade e então desistiu. Disse-me que procurasse me divertir de outras formas, sem a companhia dos perversos. Não quis aceitar logo, mas acabei convencendo-me de que devia enfrentar o mundo unicamente com minhas forças, pois a maldade existia por todos os lados. O mundo era dos mais fortes, tudo bem, mas se eu não lutasse, esperando por atos solidários de alguém, eu sucumbiria na solidão das pequenas poças d’água. Tratei de prestar atenção aos costumes de outras espécies. Os cavalos carregavam os homens pra lá e pra cá; os cães latiam à toa, ou preocupados, quando alguma pessoa se aproximava; as ovelhas eram tosquiadas a cada verão. Tinham comida garantida, mas sua liberdade era vigiada de perto ou não tinham nenhuma. Eram úteis para os homens, mas não podiam sonhar com uma vida muito diferente. E eu? Poderia ter alguma aspiração? Andava mal, com uma pata mais curta do que a outra; pela mesma razão, nadava meio esquisito, sem muita velocidade; conseguia voar até bem, para um pato manco, e disso me aproveitei para ir além dos limites da lagoa em que morava. Talvez possa dizer que foi minha salvação. Conheci assim muitas lagoas, primeiro as mais próximas, depois outras mais distantes. Conheci patos iguais a mim que nem sempre eram hostis e me aceitavam em seus grupos. Perguntavam como eu conseguira chegar até ali e eu lhes dizia simplesmente: voando. Notei que alguns se surpreendiam porque eu não tinha aparência de grande atleta. Acontece que eles não tinham necessidade de voar muito, viviam bem na própria lagoa, ao contrário de mim, sozinho, sem amigos e com uma família que não ligava muito pra mim. Voar foi, portanto, um recurso decisivo na minha vida. Isto me permitiu desenvolver bem os músculos das asas e do peito. Numa dessas voanças, conheci uma galinha d’água que aprendera a falar a língua dos patos porque havia sido criada entre meus semelhantes. Tinha sotaque, mas justamente daí vinha seu charme. Começamos a nadar e a voar juntos em conversas que se tornaram interessantes porque não víamos as coisas da mesma forma. Por exemplo: eu não tinha medo da morte e ela não queria nem ouvir falar. Expliquei-lhe que depois da morte, não havia nada, não havia o que temer e ela respondeu: é justamente por isso que tenho medo, medo do nada. Ora, para mim, a frase não tinha sentido. Mesmo assim, não havia o que dizer, porque não era uma questão racional. Tive que aceitar seu medo do nada e ela conformou-se com meu jeito indiferente diante do que assombra todos os vivos. Ela gostava de voar sobre as copas das árvores e eu insistia para que ela ganhasse as alturas. Não queria. Cada diferença revelada era uma surpresa objeto de muita conversa. Um dia ela teve sensações estranhas e não quis voar. Escondeu-se entre os juncos deixando-se ficar quase imóvel. Seu jeito de olhar para mim de vez em quando despertou minha curiosidade e me atraiu para junto dela. Ninguém nos via, só o vento sussurrava nos juncos e eu não soube o que dizer, mas compreendi tudo quando ela levantou as penas de sua linda cauda. Algo estava errado, alguma convenção, talvez, mas nosso desejo foi mais forte: deitei-me sobre ela, prendi as penas de sua nuca com meu bico largo e juntei o que havia de mais íntimo em nossos corpos. O êxtase durou pouco e me desequilibrou. Ficamos ali, flutuando, nem sei quanto tempo, sem olhar um para o outro. Finalmente, perguntei: em que estás pensando, e ela, voltando-se para mim, disse: quero que ele nasça com minas longas pernas e com teu bico chato.

Casa Forte, 22 de fevereiro de 2016

  • César Garcia é escritor. Livros de contos publicados: PACTO, em 2005; CARTAS DE VENEZA, em 2008; e BREVE INSTANTE, em 2011.

Lançamento livro da Oficina

Lançamento Escrituras II - Traços da Oficina

Lançamento Escrituras II – Traços da Oficina

 Escrituras II – Traços da Oficina reúne textos dos escritores da Oficina de Criação Literária Clarice Lispector, os viageiros dos mares das palavras.

A Oficina foi criada em 2006, a partir de um grupo dedicado às leituras clariceanas, o que levou à nomeação de Clarice Lispector como estrela guia. Faz parte do Traço Freudiano Veredas Lacanianas Escola de Psicanálise, associação de psicanalistas, cuja finalidade é promover e desenvolver estudos sobre a Teoria Psicanalítica e as Veredas Literárias, desde a perspectiva freud-lacaniana.

A Psicanálise, em sua origem, relaciona-se com a arte em bases profundas e fundamentais. A Literatura, em particular, se tornou o pilar de sustentação das teorias psicanalíticas, desde que Freud foi buscar suporte em Shakespeare e Sófocles para as suas primeiras formulações sobre o inconsciente e o complexo de Édipo.

Sem dúvida, a Literatura é o grande olho-d’água, lugar de jorro ininterrupto dos muitos saberes. As palavras guardam mistérios. É preciso tecê-las, abrindo portas para os seus significantes. Cada palavra é uma viagem, por isso estamos sempre nos lançando ao mar e nos chamando de viageiros. No leme, o binômio: leitura/escrita. Sempre.

                                            Lourdes Rodrigues