Cecília Meireles

A vez de Cecília

Folha de S. Paulo – 16/06/2012 – Por Raquel Cozer

A volta às livrarias de Cecília Meireles (1901-64), prometida para janeiro, não aconteceu. Agora parece que vai: a Global finaliza para a Bienal do Livro de São Paulo os quatro primeiros títulos da autora, cuja obra praticamente sumiu durante longa disputa entre herdeiros. A coluna de Raquel Cozer conta que saem, em agosto, Romanceiro da Inconfidência, Viagem, os infantis Ou isto ou aquilo e Os pescadores e suas filhas, e uma antologia na série Crônicas para jovens. Das três herdeiras que questionavam a decisão do agente Alexandre Teixeira, neto de Cecília, de publicar pela Global, uma se acertou com a editora: Maria Fernanda, filha mais nova da poeta, recebeu “vultuosa quantia”, segundo o advogado Roberto Halbouti. Outra quantia está depositada em juízo para as irmãs de Alexandre.

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CANÇÃO

  

Pus o meu sonho num navio

E o navio em cima do mar;

-depois, abri o mar com as mãos,

para o meu sonho naufragar.

 

Minhas mãos ainda estão molhadas

do azul das ondas entreabertas,

e a cor que escorre dos meus dedos

colore as areias desertas.

 

O vento vem vindo de longe,

a noite se curva de frio;

debaixo da água vai morrendo

meu sonho, dentro de um navio…

 

Chorarei quanto for preciso,

para fazer com que o mar cresça,

e o meu navio chegue ao fundo

e o meu sonho desapareça.

 

Depois tudo estará perfeito:

praia lisa, águas ordenadas,

meus olhos secos como pedras

e as minhas duas mãos quebradas.

POEMAS INFANTIS:                                .

A Língua de Nhem

Havia uma velhinha
que andava aborrecida
pois dava a sua vida para falar com alguém.

E estava sempre em casa
a boa velhinha
resmungando sozinha:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…

O gato que dormia
no canto da cozinha
escutando a velhinha,
principiou também

a miar nessa língua
e se ela resmungava,
o gatinho a acompanhava:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…

Depois veio o cachorro
da casa da vizinha,
pato, cabra e galinha
de cá, de lá, de além,

e todos aprenderam
a falar noite e dia
naquela melodia
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…

De modo que a velhinha
que muito padecia
por não ter companhia
nem falar com ninguém,

ficou toda contente,
pois mal a boca abria
tudo lhe respondia:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…

 

Uma Palmada Bem Dada

É a menina manhosa
Que não gosta da rosa,
Que não quer A borboleta
Porque é amarela e preta,
Que não quer maçã nem pêra
Porque tem gosto de cera,
Porque não toma leite
Porque lhe parece azeite,
Que mingau não toma
Porque é mesmo goma,
Que não almoça nem janta
porque cansa a garganta,
Que tem medo do gato
E também do rato,
E também do cão
E também do ladrão,
Que não calça meia
Porque dentro tem areia
Que não toma banho frio
Porque sente arrepio,
Que não toma banho quente
Porque calor sente
Que a unha não corta
Porque fica sempre torta,
Que não escova os dentes
Porque ficam dormentes
Que não quer dormir cedo
Porque sente imenso medo,
Que também tarde não dorme
Porque sente um medo enorme,
Que não quer festa nem beijo,
Nem doce nem queijo.
Ó menina levada,
Quer uma palmada?
Uma palmada bem dada
Para quem não quer nada!

A AVÓ DO MENINO

A avó
vive só.
Na casa da avó
o galo liró
faz “cocorocó!”
A avó bate pão-de-ló
E anda um vento-t-o-tó
Na cortina de filó.
A avó
vive só.
Mas se o neto meninó
Mas se o neto Ricardó
Mas se o neto travessó
Vai à casa da avó,
Os dois jogam dominó.

Leilão de Jardim

Quem me compra um jardim
com flores?

borboletas de muitas cores,

lavadeiras e passarinhos,

ovos verdes e azuis

nos ninhos?

Quem me compra este caracol?

Quem me compra um raio de sol?

Um lagarto entre o muro e a hera,

uma estátua da Primavera?

Quem me compra este formigueiro?

E este sapo, que é jardineiro?

E a cigarra e a sua canção?

E o grilinho dentro do chão?

(Este é meu leilão!)

O mosquito escreve

O mosquito pernilongo
trança as pernas, faz um M,
depois, treme, treme, treme,
faz um O bastante oblongo,
faz um S.

O mosquito sobe e desce.
Com artes que ninguém vê,
faz um Q,
faz um U, e faz um I.

Este mosquito
esquisito
cruza as patas, faz um T.
E aí,
se arredonda e faz outro O,
mais bonito.

Oh!
Já não é analfabeto,
esse inseto,
pois sabe escrever seu nome.

Mas depois vai procurar
alguém que possa picar,
pois escrever cansa,
não é, criança?

E ele está com muita fome.

Sonhos da menina

A flor com que a menina sonha
está no sonho?
ou na fronha?
Sonho
risonho:
O vento sozinho
no seu carrinho.
De que tamanho
seria o rebanho?
A vizinha
apanha
a sombrinha
de teia de aranha . . .
Na lua há um ninho
de passarinho.
A lua com que a menina sonha
é o linho do sonho
ou a lua da fronha?

Ao se falar de poesia para criança, não há como deixar de lembrar Vinicius de Moraes com o seus Poema Enjoadinho:

Poema Enjoadinho

Vinícius de Moraes

Filhos… Filhos?
Melhor não tê-los! Mas se não os temos
Como sabê-lo?
Se não os temos
Que de consulta
Quanto silêncio
Como os queremos!
Banho de mar
Diz que é um porrete…
Cônjuge voa
Transpõe o espaço
Engole água
Fica salgada
Se iodifica
Depois, que boa
Que morenaço
Que a esposa fica!
Resultado: filho.
E então começa
A aporrinhação:
Cocô está branco
Cocô está preto
Bebe amoníaco
Comeu botão.
Filhos? Filhos
Melhor não tê-los
Noites de insônia
Cãs prematuras
Prantos convulsos
Meu Deus, salvai-o!
Filhos são o demo
Melhor não tê-los…
Mas se não os temos
Como sabê-los?
Como saber
Que macieza
Nos seus cabelos
Que cheiro morno
Na sua carne
Que gosto doce
Na sua boca!
Chupam gilete
Bebem shampoo
Ateiam fogo
No quarteirão
Porém, que coisa
Que coisa louca
Que coisa linda
Que os filhos são!

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