Luzia Ferrão trouxe-nos o poeta que vende suas poesias nos semáforos. Em metade de uma folha de papel ofício estavam datilografados oito (8) pequenos poemas, de apenas uma estrofe cada, e uma mini biografia com os seguintes dados do autor:
Nascida em Gameleira, veio morar em Jaboatão dos Guararapes aos 16 anos. Desde então ganha o seu sustento com a venda de suas poesias nos semáforos do Recife e do Jaboatão dos Guararapes. Através dos seus poemas expressa suas ideias sobre o amor, a paixão, a beleza feminina e, não o bastante, à difícil realidade do brasileira, expressa também a sua indignação diante das injustiças sociais. Jovem, batalhadora e cidadã essa é Lenemar Santos que cria seu trabalho para levar a poesia.
Duas de suas poesias:
Jardim
Eu tinha uma selva, lá era tudo escuro, tinha animais ferozes, era cheia de medo. Meu amor me repreendia o tempo todo e me mandava trocar, mas como trocar uma selva? Ora meu amor! Troque por um jardim, coloque nele gatinhos ao invés de tigres, dê vida às flores, deixe os pássaros cantar, quero ver borboletas voar. E assim eu fiz, hoje eu tenho um jardim e colho flores. Hoje eu tenho um jardim, tenho estilingue ao invés de zarabatana e toco violino. Guardei os tambores, hoje eu tenho um jardim.
Protesto
O mundo está escuro, às vezes quando penso que está ficando cinza, ou algo parecido, logo vem uma tempestade. O mundo está de pernas pro ar, todos querem protestar, querem seus direitos, e ninguém cumpre com seus deveres.
Não nos cabe aqui analisar literariamente os escritos de Lenemar Santos. Não nos cabe sequer questionar se eles são poesias, até porque alguém já disse certa vez que poesia é tudo aquilo que a pessoa queira chamar de poesia. Cabe-nos, apenas, registrar o gesto dessa jovem que decidiu usar as palavras para ganhar a sua sobrevivência, vendendo-as nos semáforos. Através dos seus escritos percebe-se que conseguiu sair da selva e criar o seu jardim, onde colhe flores. Que bom!
Outras poesias foram lidas, ainda, na quarta-feira, desta vez trazidas pela nossa viageira Adelaide Câmara. Ela nos presenteou com Daniel Lima, grande poeta que partiu para as estrelas há pouco tempo, após uma longa vida de lutas e poesias.
Ao nasceres, tinhas o prefigurado rosto
Que hoje terias se houvesses sido tu mesmo
No tempo singular de tua vida.
Mas viveste o relógio, não teu tempo
e agora vê teu rosto:
o que dele te resta é a desfigurada
sombra do primeiro rosto
que não soubeste ter,
nem mereceste
E mais estas sobre a condição humana:
Há misérias nos homens
Os anjos cantam nas nuvens.
Era Sexta-feira Santa
Cristo morria.
Judas se enforcava.
E eu tomava sorvete.
Sobre os seus poemas após a sua morte:
Eu sou a metáfora de mim.
Por isto,quando eu morrer
morrerá meu poema.
Restarão apenas palavras sem sentido,
formas tornadas vãs de um mistério
Cuja chave perdida para sempre
No silêncio de morte
Ninguém encontrará.
E mais esta, uma das minhas preferidas, talvez por remeter a outros viageiros que navegam em incertos mares, os mares das palavras::
Minha mãe era feita de incertezas.
tecida de solidão de infindas luas.
Nunca assentou seu coração viageiro
de medo de esquecer o fim da viagem.
Não dormia, sonhava,
Vivia os sonhos acordada e louca
e amava a vida
com tal ódio e paixão, que até se percebia nos seus solhos,
nas mãos, nos gestos
na vontade de ser e o desespero
de não ser nunca e ainda.
E eu perguntava coisas
E ela não respondia,
apenas navegava incertos mares,
guiada por estrelas que eu não via.
Minha mãe era feita de incertezas
mas, por certo, sabia o que queria.
Daniel Lima, mais conhecido como Padre Daniel, embora não fosse mais padre há muito tempo, era pernambucano, de Timbaúba. Inconformado com as injustiças sociais, com o sofrimento do homem do campo, fez parte da ala progressista da Igreja e também atuou nas Ligas Camponesas.Era um grande orador, encantava os seus alunos com a sua retórica e o seu carisma, tornando-se um nome sempre citado nas rodas acadêmicas e literárias de Pernambuco..
Estava no hospital, aos 95 anos de idade, ainda lúcido e solar quando soube que recebera o prêmio da Fundação Biblioteca Nacional, pelo seu primeiro livro de poesia Poemas publicado pela CEPE, e que havia sido escolhido por unanimidade, superando grandes poetas como Ferreira Gullar e Affonso Romano de Sant’ Anna. No inicio, ele pensou que se tratava de uma brincadeira, custou a acreditar. Não é uma brincadeira, perguntava.
Daniel Lima disse certa vez :
“Fico arrasado pela beleza que consegui apanhar na palavra que é tão pobre. O que escrevi me comove profundamente. O que eu escrevi passou de mim, transbordou-se do meu pensamento e da minha forma de configurar os objetos. Eu mesmo adoeço quando escrevo muita poesia.”
Jaboatão dos Guararapes, 12 de setembro de 2015
Lourdes Rodrigues
bom conhecer Daniel Lima. Grata Adelaide!