A Crônica como uma Forma de Literatura – características do gênero

Fernando Gusmão

Introdução

As considerações que se seguem resultam —inclusive e principalmente— da leitura que fiz do capítulo VI, do livro “A criação literária – Prosa Volume II”, de Massaud Moisés. Este meu texto, é claro, não esgota o assunto. No que se segue, excertos da obra em referência estão colocados entre aspas duplas.

De início, muito me chamou a atenção o fato de existir uma discussão séria na crítica literária sobre o gênero crônica: seria a crônica, enquanto gênero literário, de uma importância secundária?

Essa opinião me pareceu ser esposada por Moisés. Na obra citada ele, entre outros, faz o seguinte registro: “o fato da crônica estar voltada para o cotidiano fugaz e endereçar-se ao público de jornal e revistas é, sem dúvida, uma limitação do gênero”. E mais, “fruto do improviso, da resposta imediata ao acontecimento que fere a rotina do escritor, e lhe suscita reminiscências caladas no fundo da memória, a crônica, por conseguinte, não pressupõe o estatuto de livro”. Outro ensaísta, Luiz Costa Lima, é mais peremptório quando diz que ‘a crônica é reconhecidamente um gênero menor’.

Por outro lado, vendo a crônica sob o viés do igualmente afamado literata Afrânio Coutinho notamos que este percebe o assunto de forma diferente quando afirma que é enganoso supor que o livro é que dá qualificação definitiva a qualquer escrito. Acrescenta: ‘e a crônica que não haja pago excessivo tributo à frivolidade ou não seja uma simples reportagem, estará sempre a salvo, como obra de pensamento ou de arte, embora não saia nunca das folhas de um periódico. Mais poéticas ou mais bem-humoradas, mais sensíveis ou mais debochadas, a vasta gama de possibilidades da crônica indica sua complexidade, seus limites imprecisos e as largas opções de desenvolvimento. Qualquer forma literária só será considerada gênero literário quando apresentar qualidade literária, libertando-se de sua condição circunstancial pelo estilo e pela individualidade do autor’.

História

Do ponto de vista histórico, o vocábulo crônica “designava, “no início da era cristã, uma lista ou relação de acontecimentos ordenados segundo a marcha do tempo (Kronos), isto é, em sequência cronológica. Situada no espaço entre os anais e a história, limitava-se a registrar os eventos, sem aprofundar-lhes as causas ou tentar interpretá-los”. A partir da renascença, o termo continuou a ser utilizado no sentido histórico ao longo do século XVI como, por exemplo, nas Chronicles of England, Scotland, and Ireland (1577), de Raphael Holinshed, ou nas “chronicle plays”, peças de teatro calcadas em assuntos verídicos, como não poucas de Shakespeare. “Na acepção moderna a crônica entrou a ser empregada no século XIX quando, liberto de sua conotação histórica, o vocábulo passou a revestir sentido estritamente literário”.

A crônica está hoje, “afastada do sentido de história, do sentido de documentário”. Na maioria dos casos, é “uma prosa poemática, humor lírico, ou fantasia”. Interessante também notar que a crônica, tal qual se desenvolveu no Brasil, “parece não ter similar noutras literaturas, salvo por influência de nossos escritores, como no caso da moderna literatura portuguesa”.

Da maior importância é o fato de que a crônica” brasileira surgiu e se desenvolveu de forma, como que, simbiótica ao jornalismo nacional, notadamente do jornalismo carioca. Ou seja, a crônica brasileira nasceu para ser publicada em jornais e semanários. A crônica” oscila, assim, entre a reportagem e a literatura, entre o relato impessoal, frio e descolorido de um acontecimento trivial, “e a recriação do cotidiano por meio da fantasia”.

O Cronista

“O cronista pretende ser não o repórter, mas o poeta ou o ficcionista do cotidiano ao desentranhar do acontecido sua porção inerente de fantasia. Aliás, como procede todo autor de ficção mas, com a diferença de que “o cronista reage de imediato ao acontecimento, sem deixar que o tempo lhe filtre as impurezas ou lhe confira as dimensões de mito, horizonte ambicionado por todo ficcionista de lei”.

“Mais do que um poema, a crônica” perde quando lida em série; “reclama a degustação autônoma”, uma a uma, como se o imprevisto fizesse parte de sua natureza, e um imprevisto colhido na efemeridade do jornal, não na permanência do livro. É preciso, pois, que ocorra o encontro feliz entre o motivo da crônica” e algo da sensibilidade do cronista “à espera do chamado para vir a superfície, ocasião em que se estabelece a fortuita afinidade entre o acontecimento e o mundo íntimo do escritor”.

A crônica” somente ganhou “a consideração dos críticos e historiadores da literatura no instante em que, ultrapassando as barreiras do seu veículo original, o jornal, conheceu a forma de livro”.

Tipos de “crônicas”

Quando o caráter literário assume a primazia, a crônica” deriva para o conto ou a poesia, conforme se acentue o aspecto narrativo ou o contemplativo.

“Existem dois tipos fundamentais de crônica”: a “crônica”-poema e a “crônica”-conto”.

O cronista tece a sua malha de considerações em torno de um acontecimento “visando não a persuadir ou a fazer prosélitos, mas simplesmente a pensar em voz alta uma filosofia de vida apoiada no efêmero cotidiano”.

Não há dois cronistas iguais, nem duas “crônicas” idênticas, “seja porque a mutação permanente do cotidiano determina a mobilidade do texto, seja porque a crônica” registra a variação do emocional do escritor”. A clave emocional da crônica” vai, desde a trágica, até a cômica, passando pela humorística, pessimista, depressiva, otimista, entre outras.

Crônica e Poesia

Enquanto poesia, a crônica” explora a temática do “eu”. Ou seja, resulta do “eu” ser o assunto e o narrador a um só tempo, “precisamente como todo ato poético”.

A crônica” se insere no âmbito da prosa poética, visto que “denuncia a simbiose entre os dois gêneros”.  A crônica” é o espaço livre do cronista, “que o usa para escrever poemas em prosa, poesias, contar estórias, fantasias, fazer ensaios”.

Crônica” e Conto

A crônica”, quando voltada para o horizonte do conto, “prima pela ênfase posta no não-eu”, no acontecimento, que provocou a atenção do “eu”, do escritor”. Quando se aproxima do conto, sem dele se metamorfosear, mantendo intactas suas características de base, “a crônica corre o risco de constituir-se na mera literalização de acontecimentos verídicos”: estes, funcionando como o estopim, que deflagra o comentário, estabelecem uma aliança entre o “eu” e o “não-eu”. “Não dispensando o acontecimento, plano do “não eu”, nem o lirismo, plano do “eu”, a crônica pode ser conceituada como a poetização do cotidiano”.

A crônica” é, por índole e definição, “o relato de acontecimentos diários e, portanto, deles depender para erguer-se como tal”. Dado o caráter ambíguo da crônica”, podemos tirar a seguinte inferência: “o meio termo entre acontecimentos e lirismo” parece ser o lugar ideal da crônica.

Características da crônica”

A crônica” tem duas características específicas.

A primeira, pela sua relevância, é a subjetividade. “Na crônica, o foco narrativo situa-se, invariavelmente na primeira pessoa do singular. E, mesmo quando o “não-eu” avulta, por encerrar um acontecimento de monta, o “eu” está presente de forma direta ou na transmissão do acontecimento segundo sua visão pessoal”. É a sua visão das coisas que importa ao cronista e ao leitor; “a veracidade positiva dos acontecimentos cede lugar à veracidade emotiva com que os cronistas divisam o mundo”.

A segunda é a brevidade: “No geral, a crônica” é um texto curto, de meia coluna de jornal ou de página de revista”. Somente por extensão, como “em algumas crônicas de Eneida, o texto se estende por várias laudas”. Imposta pela circunstância de a crônica” ser publicada em jornal ou revista, a brevidade reflete, e, a um só tempo, determina suas as marcas”.

A crônica” seria um monodiálogo. Simultaneamente, monólogo e diálogo.

Linguagem

Para casar com o estilo marcado pela oralidade, nada mais próprio que os temas do cotidiano sejam tratados na “crônica com “um grão de análise, de filosofismo, o suficiente para temperar um prato de suave digestão”.

Requisitos essenciais da “crônica”

Ambiguidade, brevidade, subjetividade, diálogo, estilo entre oral e literário, temas do cotidiano, ausência de transcendência, efemeridade.

“A crônica, fugaz, como a existência do jornal e da revista, mal resiste ao livro: quando um escritor se decide a perpetuar os textos que espalhou no dia-a-dia jornalístico, inevitavelmente seleciona aqueles que sua autocrítica e a alheia lhe sugerem como os aptos a enfrentar o desafio do tempo”.

Expressão literária que faz do cotidiano o seu prato diário, que existe na razão direta da sucessão de acontecimentos, a crônica”, para Fernando Sabino, “busca o cotidiano de cada um, visando o circunstancial, o pitoresco”.

Conclusão

Os textos literários – romances, crônicas, contos, poesias – que se notabilizaram pela qualidade, tiveram seu valor ora pelo conteúdo, ora pelo estilo, e muitas vezes por ambos. O mesmo se dá com a crônica, na medida em que o autor —independentemente do veículo—souber sobrelevar a circunstância ou fazer brilhar um estilo próprio.