Dioniso e o cavalo negro

XVII-Jornada (1)No mito do cocheiro, ou da parelha alada, extraído do diálogo de Fedro, na obra de Platão, a alma é comparada a uma força natural e ativa, representada por um carro puxado por uma parelha alada e conduzida por um cocheiro. O cocheiro que nos governa conta com uma parelha de cavalos alados, um branco e outro negro, representando os impulsos no interior da alma humana. Neste modelo tripartite, está evidente o dualismo da alma pelas suas duas figuras antitéticas e complementares: o cavalo branco e o cavalo negro. No trabalho de Anamar Moncavo Oliveira[i] ela diz que:

… o cavalo negro e o cavalo branco são dois impulsos antinômicos relativos, respectivamente, às divindades gregas Dionísio e Apolo. O elemento dionisíaco, na imagem do cavalo negro, representa o lado bestial e monstruoso da alma humana, e o apolíneo, na imagem do cavalo branco, o que há de verdadeiramente divino no homem. Apolo e Dionísio surgem na cultura grega como o conflito entre o dia e a noite, a ordem e o caos, a aparência e a profundidade, a moderação e o desregramento. Enquanto Apolo é o deus onírico, da serenidade, da harmonia, da razão e do respeito à lei e à ordem, Dionísio é o deus da loucura [mania], do desregramento e da desmedida, deus do vinho, dos prazeres do amor, do que borbulha, transborda e palpita na natureza.

Cabe ao cocheiro tentar controlar a direção dos cavalos. Se ele não conseguir domar o cavalo negro, então o seu lado bestial, impulsivo, totalmente governado pelo desejo, se sobreporá e a transgressão será o seu lema. Caso ele consiga controlá-lo, o cavalo branco irá direcioná-lo para a razão, a elevação, a verdade e a luz. Apenas o cocheiro, representando o homem e a sua ambiguidade, é capaz de lidar com as duas forças antagônicas do cavalo branco e do cavalo negro, unindo em si, como elementos do mesmo ser, polaridades tão antagônicas que vivem  eternamente em guerra, digladiando-se consigo mesmo.

Dionisio[2]Em Nascentes da Tragédia, postado anteriormente, vimos que todas as pesquisas antropológicas, até então, parecem ter comprovado que a tragédia grega nasceu de atos litúrgicos do culto a  Dioniso. Nietzsche reforçava esse pensamento dizendo que a tragédia grega tinha por objeto somente a paixão por Dioniso.

Dioniso é um deus “novo” na polis, segundo Junito Brandão em seu Dicionário Mítico-Etimológico. Relacionado ao povo mais simples, aos camponeses, a sua origem é da Trácia. Homero quase não o cita em seus poemas, porque o aedo estava comprometido com a elite, diz Junito.  Quanto à sua etimologia, em uma das interpretações, é um composto do genitivo Dio(s) – nome do céu em Trácio; e de Nysa, porque filho é Nysa – monte onde cresceu o deus. Assim, Dioniso seria o filho do céu. Dioniso também era chamado Baco, e tornou-se a partir do século VI a.C., deus da videira, do vinho, do delírio místico e do teatro.

Para o mitólogo Junito Brandão, Dioniso não penetraria na Hélade sem um batismo mítico. Daí, do sincretismo órfico-dionisíaco, nasceu o primeiro Dioniso, chamado de Zagreu, filho de Zeus e Perséfone. Por ser o preferido do pai dos deuses e dos homens (Zeus), parecia destinado a substituí-lo quando a Moira decidiu diferente. Talvez menos a Moira e mais a esposa ciumenta de Zeus, Hera, mudou o destino de Dioniso. Quando ela descobriu o amor clandestino do marido, enciumada, decidiu matar o filho dessa relação. Zeus, para salvá-lo, entregou-o aos cuidados de Apolo e dos Curetes que o esconderam no monte Parnaso. Hera descobriu o esconderijo e  encarregou os Titãs de raptá-lo e matá-lo. A cena é descrita assim: os Titãs com o rosto coberto por gesso atraem a criança com brinquedos místicos do tipo ossinhos, pião, carrapeta, chocalhos, espelho. Atraída a criança e de posse dela, destroem-na, reduzindo-a a pedaços que eles cozinharam e comeram. Zeus fulminou os Titãs pela terrível morte do filho, e das cinzas deles (dos Titãs) nasceram os homens, o que explica o lado bom (Dioniso, que eles haviam comido e incorporado assim as suas virtudes) e mal (Titãs, os próprios) neles.

Junito Brandão diz que, na atração, morte e cozimento de Zagreu há vários ritos iniciáticos. Por ser um deus, Dioniso não morre, propriamente, a morte não afeta a sua imortalidade.  Aqui ele traz o mito de Osíris, com o qual identifica Dioniso que, como ele, torna-se o morto imortal, e com o imortal deus da morte, Plutão. E conclui: a morte de Dioniso nada mais é que uma catábase seguida, de imediato, de uma anábase.  Ainda dentro de sua tese, Junito Brandão diz que cobrir-se com pó de gesso é um ritual arcaico de iniciação: os neófitos cobriam as faces com gesso ou cinzas para guardar semelhança com os fantasmas, os eídolas, representando assim o rito da morte. Igualmente, os objetos utilizados para atraírem a criança são usados nos ritos de iniciação.  O espelho, por exemplo, entre as suas finalidades, tem a de captar a alma daquele que está ali refletido na imagem. E o desmembramento, seguido de cozimento num caldeirão, constitui uma operação mágica, um rito iniciático com o objetivo de repassar virtudes diversas, como por exemplo, a imortalidade. Mircea Eliade diz serem os dois ritos – desmembramento e cocção ou passagem pelo fogo – característicos das iniciações xamânicas. Assim, o comportamento dos Titãs seria o de Mestre da iniciação, no sentido de que matam o neófito, a fim de fazê-lo renascer numa força superior de existência.

Bom, de fato, se é que se pode chamar mito de fato, Zagreu voltou à vida. Segundo uma versão, Atená, outros dizem, Deméter salvou-lhe o coração que ainda palpitava. Sêmele, a princesa tebana, o engoliu e ficou grávida do segundo Dioniso. Em outra versão, foi Deus quem engoliu o coração do filho e engravidou Sêmele. Hera, porém, não ia deixar acontecer assim tão fácil. Descobrindo dessa vez o caso amoroso do seu marido Zeus com Sêmele, disfarçou-se de ama da princesa e aconselhou-a a pedir ao amante para vê-lo em todo o seu esplendor. Zeus advertiu-a dos riscos que ela correria por ser simples mortal e não ter estrutura para suportar a epifania de um deus imortal. Porém, ele havia prometido pelas águas do Rio Estige jamais contrariá-la, e como não conseguiu demove-la da sua intenção, ele se apresentou com seus raios e trovões e Sêmele morreu carbonizada. Dioniso foi salvo por um gesto dramático de Zeus que o retirou apressadamente do ventre da mãe e o colocou em sua coxa, até que se completasse a sua gestação normal. Assim que ele nasceu, Zeus o entregou a Hermes que o levou às escondidas para a corte de Átamas, rei beócio de Queronéia, casado com a irmã de Sêmele, Ino. Furiosa, Hera enfureceu os pais adotivos de Dioniso, levando Ino a jogar o próprio filho caçula num caldeirão de água fervendo, enquanto o marido com um venábulo matava o mais velho, por tê-lo confundido com um veado. Ino se suicida, atirando-se ao mar com o corpo do filho caçula e o marido foi banido da Beócia.  Temendo outra astúcia assassina de Hera, Zeus transformou o filho em bode e mandou que Hermes o levasse, dessa feita, para o Monte Nisa, onde foi confiado aos cuidados das Ninfas e Sátiros que ali moravam numa gruta profunda.

dionisio1[1]Vivendo cercado por grande vegetação, densas videiras, Dioniso, certa vez, colheu alguns cachos de uvas e espremendo-as em taças de ouro, bebeu o suco em companhia da sua corte, dos Sátiros, Ninfas. Bebendo de forma repetida, eles começaram a dançar freneticamente ao som dos címbalos, com Dioniso no centro. Embriagados do delírio báquico, caíram por terra semidesfalecidos. Nasceram assim o vinho e os bacanais. De acordo com Junito, na época da vindima, historicamente, se celebrava, a cada ano, em Atenas e por toda a Ática, a festa do vinho branco, ocasião em que os participantes se embriagavam e começavam a cantar e dançar à luz dos archotes e ao som dos címbalos, até caírem desfalecidos. Esse desfalecimento se devia não só ao novo néctar, mas ao fato de os devotos do vinho e do deus se embriagarem de êxtase e de entusiasmo…

dionisio[1]Mais uma vez Hera entra em ação. Ao saber da descoberta do vinho, ela enlouquece Dioniso que, dominado pelo delírio, foge. Ele passa pelo Egito, Síria, e vai até à Frígia, onde a deusa Cibele o purificou e iniciou nos ritos de seu culto orgiástico. Livre da ánoia, Dioniso chegou à Trácia, onde o rei Licurgo lhe moveu pesada perseguição, obrigando as Bacantes, companheiras do deus, a fugirem abandonando seus tirsos e o deus. Dioniso, ainda adolescente, assustado, joga-se ao mar, sendo acolhido por Tétis. Como era de se esperar, Zeus castigou Licurgo, enlouquecendo-o pelo que ele fez ao seu filho querido. Completamente tomado pela ànoia, julgando cortar as videiras, decepou braços e pernas do seu próprio filho.  Além disso, Zeus transformou a Tráçia estéril, e o Oráculo ao ser consultado disse que a peste só acabaria com a morte de Licurgo. Licurgo morreu esquartejado, ao ser amarrado a quatro cavalos.

Dioniso continuou as suas andanças, chegou à Índia, onde conquistou o país com a força das armas e dos seus encantamentos e poderes místicos. O retorno à Helade aconteceu com muita pompa, acompanhado dos Sátiros e Bacantes, num carro todo ornamentado com heras.

Após difundir o seu culto orgiástico por toda a terra, Dioniso resolveu descer ao Hades, antes de escalar o Olimpo, para arrancar o eídolon de sua mãe, Sêmele. Hades consentiu, pedindo em troca algo, Dioniso concordou e lhe deu uma de suas plantas favoritas, o mirto, que cobria a fronte dos iniciados nos mistérios orgiásticos. Sêmele, arrancada do Hades, subiu para o Olimpo como deusa, ao lado do filho.

Jaboatão dos Guararapes, 06 de maio de 2013

Lourdes Rodrigues

 

 


[i] O trabalho citado de Anamar Moncavo de Oliveira é A Teoria da Alma de Platão e a Teoria do Inconsciente de Freud.