Viagem Sexta pelo Riso

 

Viagem Sexta pelo Riso

*Luzia Ferrão

O viageiro Sarmento, no Momento Poético, relembrou um passado que não passou e que continua muito vivo ainda em nossas lembranças, com a poesia Operário em Construção, de Vinicius de Moraes. Certamente este poema, parafraseando o próprio poeta, será imortal enquanto dure, enquanto dure a exploração do homem pelo próprio homem, eu acrescentaria.

O operário de construção, semelhante a um pássaro sem asas, subia com as casas que lhe brotavam das mãos. Estávamos vivendo um Brasil ditatorial cruel que não permitia –aos operários/povo- reconhecer o valor do seu trabalho. Vinicius mostra esse desconhecimento ao dizer: Como podia o operário compreender porque um tijolo valia mais que um pão? Como também desconhecia que o operário faz a coisa e a coisa faz o operário. Os ditadores não conseguiram impedir que pelas mãos desse humilde operário nascesse  um mundo novo, adquirindo a dimensão da poesia que ia aos poucos sendo derramada nos corações dos outros operários. E o operário disse NÃO! Um não que custou a ele e seus companheiros bárbaros tratamentos, pau de arara, choque elétrico, morte, sem direito à família de velar o seu defunto, restando a esperança de que novos tempos viriam. Muitas águas passaram por debaixo da ponte, mas a violência não conseguiu que o operário deixasse de enxergar, de agigantar-se, vendo em tudo que fazia o que de fato acontecia: o lucro do patrão. Neste poema, Vinicius descreve o processo de tomada de consciência do operário, partindo do pressuposto marxista de alienação.

 

O OPERÁRIO EM CONSTRUÇÃO
(Rio de Janeiro,1959)

Vinicius de Moraes

E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo:
– Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu.
E Jesus, respondendo, disse-lhe:
– Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.
Lucas, cap. V, vs. 5-8.

Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.

De fato, como podia
Um operário em construção
Compreender por que um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia…
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento
Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse, eventualmente
Um operário em construção.

Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
– Garrafa, prato, facão –
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.

Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.

Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
– Exercer a profissão –
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.

E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.

E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Que sempre dizia sim
Começou a dizer não.
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:

Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uísque do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.

E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução.

Como era de se esperar
As bocas da delação
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão.
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação
– “Convençam-no” do contrário –
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isso sorria.

Dia seguinte, o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu, por destinado
Sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!

Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras se seguiram
Muitas outras seguirão.
Porém, por imprescindível
Ao edifício em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.

Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário.
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
– Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.

Disse, e fitou o operário
Que olhava e que refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
O operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!

– Loucura! – gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
– Mentira! – disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.

E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão.

Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção.

Nem precisa ser muito ligado em literatura para gostar do diplomata, jornalista, compositor (dos bons), poeta Marcus Vinicius de Mello Moraes, ou Vinicius de Moraes, como era mais conhecido, ou  simplesmente poetinha, como o chamava Tom Jobim. Era como poeta e compositor,  através de sonetos e de canções,  que ele gostava de ser reconhecido. Carioca da gema, sessenta e seis anos vividos intensamente, casou nove vezes, era um boêmio curtindo a vida carioca com cigarro e uísque.

É difícil elencar a obra deste gênio brasileiro, por isso escolhemos citar trechos de algumas delas para ilustrar a poesis do branco mais preto do Brasil

Soneto da fidelidade

De tudo ao meu amor serei atento
Que ele seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure

Samba da benção

È melhor ser alegre que ser triste
A alegria é a melhor coisa que existe
Mas pra se fazer um samba com beleza
é preciso um bocado de tristeza
Se não, não se faz um samba não
A vida é arte do encontro
Embora exista tantos desencontros pela vida

Cantos de Ossanha

Não vou eu não sou ninguém de ir
Em conversas de esquecer a tristeza
De um amor que passou
Não eu sou vou se for pra ver
Uma estrela aparecer
Na manhã de um novo amor

Rosa de Hiroschima

A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa, sem nada

Onde anda você

E por falar em saudade
Onde anda você
Onde andam seus olhos que a gente não vê

Minha namorada

Mais se em vez minha namorada
Você quer ser minha amada
Minha amada, mais amada pra valer
Aquela amada pelo amor predestinada
Sem a qual a vida é nada
Sem a qual se quer morrer

Garota do Ipanema

Vejam que coisa mais linda
Mais cheia de graça
é ela menina
que vem e que passa
no doce balanço
A caminho do mar

Samba em preludio

Eu sem você não tenho nem porque
Porque sem você
Não sei nem chorar
Sou chama sem luz
Jardim sem luar

Sarmento continuou alimentando o grupo sedento de poesia, dessa feita com os poemas de Geir Campos, Tarefa e Alba, seguindo a mesma trilha de poesia de denúncia social, poesia comprometida politico e socialmente.


Tarefa

Morder o fruto amargo e não cuspir
mas avisar aos outros quanto é amargo,
cumprir o trato injusto e não falhar
mas avisar aos outros quanto é injusto,
sofrer o esquema falso e não ceder
mas avisar aos outros quanto é falso;
dizer também que são coisas mutáveis…
E quando em muitos a noção pulsar
— do amargo e injusto e falso por mudar —
então confiar à gente exausta o plano
de um mundo novo e muito mais humano.
(1957)

**Alba

Não faz mal que amanheça devagar,
as flores não têm pressa nem os frutos:
sabem que a vagareza dos minutos
adoça mais o outono por chegar.
Portanto não faz mal que devagar
o dia vença a noite em seus redutos
de leste – o que nos cabe é ter enxutos
os olhos e a intenção de madrugar.
(1957)

O poeta Geir Canpos é capixaba, membro do partido comunista, engajado nas lutas políticas e sociais., formado em Teatro e Doutor em Comunicação Social. Talvez por suas posições políticas  foi pouco difundido pela mídia. Poeta, livreiro, tradutor, faz parte dos poetas da chamada geração 45, destacava-se pelo rigor literário e estético.. Foi um dos fundadores da editora Hipocampo, junto com o poeta Thiago de Melo, para difundir suas obras de forma artesanal. Marcou presença também como um dos organizadores dos Cadernos do Povo Brasileiro, Violão de Rua, publicados pelo Centro Popular de Cultura da UNE.

. “A poesia de Geir Campos tem circulação, ousadia e canto. Ninguém pode equivocar-se: aproximando o ouvido, sentimo-la como um rumor de cristal errante, sentido e som da poesia verdadeira.” (Pablo Neruda)

**Alba significado: Claridade que precede ao nascer do dia

Seguindo com a Oficina, outro pilar dos trabalhos foi iniciado com a leitura dos contos escritos pelos seus participantes, os viageiros pelos mares das palavras. Três contos estavam previstos para serem lidos, sendo seus autores eu,  Salete e Eleta. A Oficina procura estimular a criatividade e o exercício da lapidação das palavras, para que  os viageiros  se tornem  artesãos da escrita. trabalhando técnicas de ensaio, contos, novelas ou outras, sobre temas acordados entre seus pares. Neste dia o tema foi o do  triangulo amoroso, com  o constrangimento da duplicação, em que uma história estaria sendo contada e outra estava ocorrendo ao mesmo tempo, tão ou mais importante do que a primeira. A ideia do constrangimento decorre da concepção Oulipiana de limitar a escrita a alguma condição anterior.

Iniciando a leitura dos contos por mim, Luzia, com  o conto Corações na Bananeira, que gerou um debate profundo sobre a construção do tema, entendimento dos personagens, linguagem poética, ortografia, gramatica, ineditismo.O tempo da oficina esgotou-se sem as demais leituras programadas e sem a conclusão da análise do meu conto. Por conta disso, algumas sugestões foram apontadas para maximizar o tempo para as análises das narrativas, entre elas,  a da leitura antecipada, cada participante traria a sua análise para que melhor fosse aproveitado esse importante momento literário.

*Luzia Ferrão, professora universitária, assistente social, contista, ensaísta.

**Alba significado: Claridade que precede ao nascer do dia