O Leitor Ideal e o Autor Ideal

 

TEXTO, LEITOR E AUTOR EM “SEIS PASSEIOS PELO BOSQUE DA FICÇÃO”, DE UMBERTO ECO

Fernando Gusmão

Qualquer texto exige, sempre, duas outras categorias de entidades diretamente a ele vinculadas: o Autor e o Leitor. O Autor, entidade objetiva que registra a história e o Leitor, que vem, necessariamente, com o texto, porque, para “entender” uma mensagem verbal faz-se necessário “além da competência linguística, uma competência variadamente circunstancial, capacidade de pressupor, de reprimir idiossincrasias, etc.”.

Por outro lado, tal texto consiste, em última análise, de um adequado composto de locuções, declarações e informações. No entanto, qualquer texto está, sempre, completamente intercalado pelo não-dito, por aquilo que não se mostra na superfície, no plano da expressão. Dizendo de outra forma, conforme postulou Umberto Eco em 1988, o texto está repleto de buracos brancos, cheio de fissuras a serem preenchidas.

Até a algum tempo atrás admitia-se que o texto literário era a expressão das ideias de seu autor e que tocaria, tão-somente, ao Leitor a função passiva de interpretar o que o Autor aspirava dizer. Por isso, anteriormente, estudar a obra só tinha significado se se estudasse, também, a biografia de seu Autor.

Mas, como em uma história sempre há um leitor, e esse leitor é um elemento essencial, não só do procedimento de contar uma história, como, também, da própria história, o crítico francês Roland Barthes escreveu, em 1968, o ensaio “A morte do Autor”, introduzindo uma atitude pós-estruturalista de crítica ao papel centralizador do Autor.

Pode-se dizer que nesse ensaio Barthes ponderava que o Autor não era o único locus da autoridade criativa, mas que ele —o Autor— seria, no máximo, um “Scriptor” – palavra que ele empregou para esvaziar o sentido de poder existente nas palavras “autor” e “autoridade”. Conforme esse crítico, o Scriptor, que “nasce simultaneamente com a obra”, existia para produzir e não para explicar e estabelecer uma “perspectiva” e, com isso, determinar o significado do texto, da obra. Na nova visão de Barthes, o Leitor passa a deter um “privilégio que tinha sido considerado prerrogativa dos textos”, a saber, o de fundar um “ponto de vista”, definindo, assim, a acepção do texto. Ler um texto seria, pois, desconstruir qualquer ideia de origem e construir novos significados, permitidos pelos signos do texto, mas deslocados ad infinitum pelas multíplices condições de produção.

Importante ressaltar que Eco, em “Seis Passeios pelo Bosque da Ficção” —onde Bosque” é uma metáfora para o texto narrativo— diz que o Leitor tem inteira li­berdade de escolha em relação ao livro que está lendo. E que essa liberdade é possível precisamente “porque os Leitores se dis­põem a fazer suas escolhas no bosque da narrativa, acreditando que algumas delas serão mais razoáveis que outras”.

Para tanto, Eco vê o Leitor classificado em duas categorias: O Leitor-Empírico e o Leitor-Modelo.

O Leitor empírico é você, eu, todos nós, quando lemos um texto. O Leitor-Empírico é aquele que realiza uma leitura específica e pessoal de determinada obra. Os Leitores-Empíricos leem de múltiplas formas e não existe lei que decida como devem ler. Isso, porque, regra geral, aproveitam o texto como um continente de suas próprias paixões, externas ao texto ou instigadas pelo próprio texto.

Por sua vez, o Leitor-Modelo de uma história não é o Leitor-Empírico. É, sim, aquele que o texto pressupõe como seu leitor ideal. O Leitor-Modelo de Eco (1979), não só figura como interagente e colaborador do texto; “mas, muito mais — e, em certo sentido, menos —, ele brota do texto, sendo o suporte de sua estratégia de interpretação”. O Leitor-Modelo seria, dessa forma, capaz de movimentar-se interpretativamente conforme ele, o Autor, se movimentou gerativamente. Prever o próprio Leitor-Modelo, de acordo com Eco, não significa somente “esperar” que esse exista, mas, implica que se deve mover o texto no sentido de construí-lo. Eco exemplifica o Leitor-Modelo em Finnegans Wake, de James Joyce, dizendo que “esta obra projeta um leitor ideal que disponha de muito tempo, tenha perspicácia associativa com uma enciclopédia vasta, consiga fazer leituras cruzadas, domine a língua inglesa e possua um dicionário de pelo menos duas mil palavras desta língua”. Fácil entender que quando referida ao Leitor não postulado, a obra ou torna-se ilegível ou torna-se outro livro.

Vale acrescentar, ainda, que nós Leitores-Empíricos —eu, vocês— contamos com dois Autores:

Um, o Autor-Empírico, como sujeito da enunciação textual, que cria hipoteticamente um Leitor-Modelo e, ao fazê-lo, arquiteta seu texto com uma estratégia textual. Sendo mais claro, o Autor-Empírico é uma entidade objetiva que registra a história e resolve que Leitor-Modelo lhe toca estabelecer.

Outro autor, o Autor-Modelo, que age para nos dizer quais locuções colocadas no texto devem servir como estímulos para nossa imaginação e para nossas reações físicas. Ele, o Autor-Modelo, aparece como uma estratégia narrativa, um “conjunto de instruções, que nos são dadas passo a passo e que devemos se­guir quando decidimos agir como o Leitor-Modelo”. No final, pode-se entender o Autor-Modelo tam­bém como um determinado estilo, claro e inconfundível.

Importante é que o leitor empírico pode atribuir diferentes sentidos à obra, sejam eles acenados pela enunciação, ou pela cultura, pelo “espírito do tempo”, ou pelo “horizonte de expectativas”, por motivações pessoais, etc, e que, dessa forma, não há limites para a interpretação, que se constitui, como via de consequência, em um processo aberto e cooperativo entre autor, texto e leitor.

Recife, setembro de 2018.

 

 

 

 

Do Riso ao Siso, Contos à Beira do Cais

Lourdes Rodrigues

Era uma vez um jovem rapaz, deitado numa relva, sentindo-se entediado em pastorear ovelhas num bosque imenso e silencioso, onde nada parecia acontecer, imaginou-se sendo atacado por um lobo. A fantasia o empolgou. E ele continuou a deixá-la fluir. E se os aldeões soubessem que eles estavam sendo atacados pela fera? Aquela ideia o atiçou ainda mais. Então, ele começou a gritar Lobo, Lobo, Socorro, Lobo. Os seus gritos de terror foram ouvidos pela aldeia inteira que saiu às carreiras, armada como podia, para socorrer as ovelhas e ao pobre rapaz. Indignada, a aldeia descobriu que havia sido ludibriada, ao encontrar o rapaz rolando pelo chão às gargalhadas. E isto se repetiu, até que certo dia, o rapaz gritou por socorro e os aldeões silenciaram, do canto não se mexeram, e o lobo fez a festa.

Nabokov usa a fábula de Esopo[1] para dizer que a Literatura não nasceu quando o rapaz começou a gritar Lobo, Lobo, e saiu a correr com um grande lobo às suas costas, mas quando ele gritou Lobo, Lobo e não havia nenhum lobo a persegui-lo. É inteiramente acidental se o pequeno pastor de ovelhas acabou sendo comido pelo lobo, quando desacreditado pelos alarmes mentirosos, seu grito ecoou em ouvidos moucos na aldeia.

Para a Literatura, diz ele, o que tem importância é a invenção, a capacidade inventiva do pastor. A literatura é, acima de tudo, invenção, ficção, fantasia. A magia dessa fábula está na sombra do lobo que o pastor de ovelhas deliberadamente criou, no fantasma que ele trouxe e que percorreu de ponta a ponta a aldeia. Mas, ao pastor, não lhe bastava a criação fantasmática.  Ela carecia de valor social, valor cuja autenticidade somente o outro poderia conferir. Então, ele gritou.

Se as mentiras, por um lado, levaram o pastor e as ovelhas a morrerem devorados pelo lobo, rendendo lição de que a mentira não compensa, para ser contada ao redor da fogueira; por outro, propiciou ao personagem-pastor o seu reconhecimento como o pequeno mago, o criador, o inventor, aquele que transfigurou a realidade com seu espírito criativo e deu-lhe novo formato,  o de uma realidade imaginária, ficcional.

É neste ponto, na transfiguração da realidade, que Marília Morais, em seu texto sobre Poesia, Psicanálise e Ato Criativo diz que o fazer psicanalítico guarda similaridade com o fazer poético: na capacidade criadora que ambos têm de instaurar novas realidades: (…) o poema não reproduz o dizível, ele cria o dizível. A psicanálise, no seu fazer, cria para o analisando a possibilidade de realidades diferentes, de novas invenções de si mesmo.[2]

Freud chama a atenção em Delírios e Sonhos na Gradiva de Jensen para a importância da parceria que a psicanálise poderia ter com a literatura:

os escritores criativos são aliados muito valiosos, cujo testemunho deve ser levado em alta conta, pois costumam conhecer toda uma vasta gama de coisas entre o céu e a terra com as quais a nossa filosofia ainda não nos deixou sonhar. Estão bem adiante de nós, gente comum, no conhecimento da mente, já que se nutrem em fontes que ainda não tornamos acessíveis à ciência.[3]

Marília Morais, inspirada em Freud, arremata que o poeta fala, sem saber, aquilo que o psicanalista concluirá após muito estudo e reflexão.

Em um evento como este deu-se o meu encontro com o Traço Freudiano Veredas Lacanianas Escola de Psicanálise, em 2003. Chamada por um cartaz exposto na UBE (União Brasileira dos Escritores), eu tentava acompanhar as falas e me perdia no meio delas. Leitora voraz, desde criança, julgava-me, pretensiosamente, conhecedora de um pouco de Literatura, embora aquele autor me fosse desconhecido: James Joyce. Estaria no evento certo, eu me perguntava. Sim, estava. No intervalo vieram as apresentações e o convite para participar de um grupo de estudos de Clarice Lispector, de quem eu já lera algumas obras e admirava.

Iniciava o meu percurso rumo à literatura interfaceada com a psicanálise, esta, até então, eu só conhecera de alguns consultórios pelos quais eu havia passado ao longo da minha vida, e de algumas leituras curiosas.

O estranhamento inicial das falas da tribo psicanalista freud-lacaniana cedeu lugar ao sentimento de quem havia encontrado a sua aldeia, pelo acolhimento, e, sobretudo, pelo caminhar juntos da Literatura com a Psicanálise. Um caminhar, como diz Tania Rivera, uma diante da outra, reabrindo possibilidades de ligação, sem se deixarem reduzir uma a outra.

As palavras deslizantes de Clarice, a sua sintaxe mutante, aprisionaram a mim e aos outros participantes, engravidando-nos de desejo de criarmos um espaço em que a leitura e a escrita pudessem estar acasaladas e fossem a sua base de sustentação e procriação.

Nascia assim a Oficina de Criação Literária Clarice Lispector, em 2006. Os participantes, chamados de viageiros pelos mares das palavras, encontram-se uma vez por semana, realizando longas viagens, de duração em torno de dez meses, todos os anos. Aos navegantes é estimulado lançarem-se ao mar dispostos a sentir a viagem de todas as maneiras, parafraseando Fernando Pessoa:

Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir.
Sentir tudo de todas as maneiras.
Sentir tudo excessivamente,
Porque todas as coisas são, em verdade, excessivas
E toda a realidade é um excesso, uma violência,
Uma alucinação extraordinariamente nítida
Que vivemos todos em comum com a fúria das almas,
O centro para onde tendem as estranhas forças centrífugas
Que são as psiques humanas no seu acordo de sentidos.[4]

Toda realidade é um excesso, diz o poeta. Sabato complementa, só na arte se revela a realidade, toda a realidade. E assim como na Viagem Sentimental, de Laurence Sterne, com quem aprendemos, prazerosamente, que ao viajante cabe procurar a essência das coisas, não sob o claro meio-dia em ruas largas e abertas, mas em uma esquina despercebida de entrada escura, os viageiros da Oficina, sempre, dirigiram sua atenção às sinuosidades, silêncio, sombras e deslizes das palavras, realizando o que Francine Prose chama de close reading, Umberto Eco de leitura empírica, e nós chamamos de leitura por fora das palavras, pelos não-ditos, pelas elipses.

As Cartas Náuticas que desenhamos antes da partida são meras referências, não impedem de a rota ser alterada sempre que algo chamar a nossa atenção. Se as condições atmosféricas são atraentes, se os navegadores estão movidos pelo desejo do sentir, a carta de navegação não tem a rigidez dos icebergs, mas a flexibilidade das velas sob o humor dos ventos. Assim, se preciso for, outra rota será traçada e a nau seguirá em frente em busca de novos sentimentos.

Essa aparente negligência com a programação estabelecida reflete o espírito de aventura daqueles que singram mares em busca das águas profundas, aquelas que nos levam aos precipícios da alma, mesmo que, em seguida, busquemos águas mais rasas que nos permitam, aliviados, ver praias à distância. É a viagem ziguezagueante da mente errante, no dizer de Sterne, a mesma viagem da libélula que não escolhe as flores aleatoriamente, mas por uma primorosa harmonia ou alguma brilhante discordância.

Muito há para se falar dessas viagens que não cabe em sua totalidade num texto como esse. Todavia, há espaço suficiente para registrar algumas liturgias e um pouco das milhas percorridas.

Há que se dizer que antes de lançarmo-nos ao mar, seguimos sempre um ritual: receber bons augúrios da nossa madrinha Clarice Lispector, batizando-nos com a leitura dos seus escritos. A sua arte inspiradora, marcada pelas metáforas, frases anômalas, associações, epifanias são o mergulho intimista que precisamos para dar início à viagem.[5]

Há que se dizer, ainda, que o riso de Bergson nos ensinou que,  além de ser do humano o riso, ele é sempre de um grupo, porque carece de eco para existir. É com disposição de espírito para o humor que zarpamos rumo às nossas viagens, e o ribombar do riso se faz sempre ecoar. Esteve muito presente quando lidos trechos que beiravam o escatológico em Gargântua e Pantagruel, de Rabelais, e pelos rubores e desconcertos diante da beleza e irreverência de passagens eróticas de alguns clássicos como Metamorfose, de Lucio Apuleio, A Poética do Sexo, de Ovídio, Cântico dos Cânticos, de Salomão, entre muitos outros.[6] Risos mais contidos ou desconcertados, quando lemos o Marquês de Sade, por percebermos exigência de maior sobriedade, não tanto em O Marido que Recebeu a Lição, muito mais em Monges e Virgens. A perversão explícita, em sua forma de relação com a fantasia, trouxe algum desconforto aos viageiros, talvez pela leitura coletiva. Pela mesma razão, em O Olho do Gato, de Bataille, o riso deu lugar ao espanto e ao silêncio de quem se sente inseguro quanto à fronteira entre a obra essencialmente literária e a pornográfica, exigindo releituras para melhor discernimento.

Nem só de riso, entretanto, se faz o balanço das nossas viagens. Do riso ao siso, sempre uma travessia difícil. Alguns ensaios de Montaigne[7] são como uma ponte prazerosa e rica entre momentos tão próximos e tão distantes. E assim içamos as velas rumo ao teatro, primeiro ao grego clássico, de Sofócles, um grande artista da palavra. Duas obras fundamentais foram lidas: Édipo Rei e Édipo em Colono. Para Nietzsche, o grego conhecia e sentia os pavores e sustos da existência: simplesmente para poder viver, tinha de estender à frente deles a resplandecente miragem dos habitantes do Olimpo.  Ainda na rota do teatro, seguimos para o período de ouro do teatro inglês com Shakespeare, para podermos, enfim, ancorarmos na dramaturgia moderna de Ibsen, com A Casa de Bonecas, entre  outros.

Os mares das palavras são muitos e diversos, como a metáfora dos bosques, citada por Umberto Eco para definir um jardim em que vários caminhos se bifurcam. Saindo da tragédia, enveredamos por outros caminhos, entre eles, o do fantástico, na temática do duplo, desde a raiz mitológica, do Doppelganger[8], à interpretação psicanalítica do Unheimliche, de Freud, em que o familiar e ao mesmo tempo estranho, trazem profundo desconforto. A técnica da duplicação estimula o interesse do leitor que tenta desvendar esse sujeito que é uno e duplo, ao mesmo tempo, com inúmeras possibilidades interpretativas. Umberto Eco diz que não há lei que delimite a forma de ler do leitor empírico, ela é resultado das suas paixões que podem ser exteriores ao texto ou provocadas pelo próprio texto. Assim foi em Aura, de Carlos Fuentes; no O Horla de Guy de Maupassant, em William Wilson, de Edgard Allan Poe, O Homem de Areia, de Hoffmann. Grandes escritores usaram e continuam a usar o duplo em suas narrativas, muitas delas foram objeto de nossas leituras e análises.[9]

Há de se mencionar, ainda, que dos escombros da alma, pinçamos a loucura, amparados pelo poeta Fernando Pessoa quando diz, Sem a loucura que é o homem/Mais que a besta sadia/Cadáver adiado que procria?  A atração que o tema exerce, levou Foucault a afirmar que a loucura é um saber. Eu diria que para os escritores, em particular, a loucura, enquanto abismo da alma, no dizer de Artaud, é um vasto e profundo campo de criação poética e ficcional. Fascinantes o Diário de um Louco, de Gogol, as Memórias do Subsolo, de Dostoievski, os Signos e Símbolos, de Nabokov, só para falar de algumas.[10]

Muitas tardes da Flor de Santana e da Alfredo Fernandes foram dedicadas às veredas fantásticas das vozes e murmúrios saídos das pedras e de debaixo da terra em Comala, de Pedro Páramo;   aos queridos anti-heróis de O Vermelho e o Negro, de O Estrangeiro,  de Madame Bovary;  à compaixão pela solidão, desamparo e servidão humana dos personagens em A morte de Ivan  Ilitich,  na Obscena Senhora D,  e em Marido; aos comoventes ritos de passagem em Menina a Caminho e A festa no Jardim.

Que dizer das muitas leituras labirínticas, polifônicas, caleidoscópicas, dos monólogos e fluxos de consciência, entre elas, O Som e a Fúria, de Faulkner, trazendo o cheiro das madressilvas e a lembrança de Benjy, o idiota, que não fala, mas narra a história no primeiro capítulo, através dos seus choramingos, olhos e pensamentos fragmentados; do barulho do martelo para fazer o caixão da mãe e da longa agonia para enterrá-la em Enquanto Agonizo, do mesmo autor; da festa de Clarissa em Mrs. Dalloway, de Virgínia Woolf, de O Monólogo de Molly Bloom, de James Joyce. [11]

E da grandeza de obras como A Praça do Diamante, Ana-Não, Bartleby, o Escrivão.[12]

Foram tantas viagens em prosa ao longo de treze anos, impossível citá-las todas. Nos livros que publicamos estão mencionadas boa parte delas. O Escrituras IV foi publicado, eletronicamente, pela Amazon.com, e a intenção é publicar os outros ainda neste semestre. No blog da Oficina há registro delas, das resenhas que foram feitas, de vários escritos sobre os nossos trabalhos.

Mas não só de prosa se fizeram as nossas viagens. Carentes de poesia, os navegantes pediram para criar um Momento Poético para leitura de um poema, no início de cada percurso. De benção necessária à iniciação, se transformou em momento especial de mergulho dos viageiros para uma travessia muito particular.  Grandes poetas por ali passaram.[13]

Rolando Barthes, em A Preparação do Romance, defende a tese de que só se escreve, porque se lê. Não qualquer leitura, tantos leem e tão poucos escrevem, diz ele. A sua tese é de que só a leitura particular, a leitura tópica do desejo do leitor, aquela que o aprisiona no armadilha das palavras e lhe semeia a esperança de ele próprio escrever, pois cada palavra é um caminho de transcendência, leva o sujeito à criação literária. Leitura transformadora, consumida pelo suplício de uma falta.

Como pode uma leitura ser particular, tópica, se realizada por um grupo, como no caso da Oficina, lugar onde o amor a si mesmo narcisista está sujeito à limitações? Segundo Freud, são os laços libidinais que se constituem entre os participante do grupo que desvanecem a intolerância às diferenças internas, às peculiaridades de cada um, reduzindo as possíveis aversões que poderiam surgir. O amor por si mesmo só conhece uma barreira: o amor pelos outros, o amor por objetos, diz ele. E mais, que esses laços nascem da identificação a um traço comum, colocado no lugar do Ideal do Eu, o mecanismo que responderia pela consistência do grupo ao oferecer um poderoso meio de satisfação substitutiva para seus membros.

Um grupo assim constituído é mais do que uma soma de pessoas, cada sujeito nele envolvido traz sua grupalidade anterior, suas tradições e costumes, as suas funções e posições particulares, as suas paixões, sua visão de mundo, inclusive, suas contradições, e uma vez do grupo participando, a partir da sua interação com ele, gera uma nova totalidade. Quanto mais forte for esse laço, mais o grupo se consolida, inclusive nas suas diferenças. E o resultado será sempre a exaltação ou intensificação da emoção

A Literatura tem sido esse traço na Oficina. A magia da fabulação, da fantasia é o traço que nos une. É nele que encontramos a satisfação substitutiva que nos compensa das renúncias que fazemos ao nosso amor narcísico, que dá consistência imaginária ao grupo promovendo uma ilusão de completude.

O grupo não é o mesmo de quando começou. Alguns viageiros aportaram chamados pela vida ou por razões que estiveram além da sua vontade, deixando saudades e registros das suas pegadas nas Escrituras. Outros amantes da aventura literária sempre nos esperam nos portos em que atracamos e são recebidos com guirlandas de flores. Sempre uma grande festa a chegada de outro companheiro.

E é desse encontro amoroso com a Literatura, desse intenso exercício de sensibilidade, que as armadilhas contidas nas palavras nos fazem sentir o seu efeito germinador e ouvir a trombeta do pai a soar e ressoar … toda palavra, sim, é uma semente. Passar da leitura para a escrita, no rastro do desejo, acontece pela mediação de uma prática de imitação, diz Haroldo Bloom. Não a imitação pobre do plágio, mas a imitação transformadora, aquela em que o leitor versus escritor realiza o clinamen, situação típica de apropriação sob a forma de releitura ou interpretação desviante, no ponto em que o escritor influenciado acredita ser necessário corrigir o poema do seu antecessor. Fortes fatores emocionais envolvem esse processo e Haroldo Bloom os chama de Angústia da Influência.

Para Roland Barthes, o eu do sujeito é falado a partir do lugar do Outro, da identificação ao outro que permite situar com certa precisão a sua relação imaginária e libidinal com o mundo e ver o seu lugar, e estruturar, em função desse lugar e do seu mundo, seu ser.

Do riso ao siso, da comédia ao trágico, muitas leituras que por ali passaram gestaram centenas de escritas, boa parte delas registradas nos quatro livros chamados de Escrituras, já publicados pela Oficina. O êxito de uma oficina é medido pela escrita dos seus participantes. Muitas releituras foram realizadas de obras que impactaram os viageiros, com total licença poética, desde o enredo, ao ponto de vista usado pelo narrador, entre elas A Missa do Galo, A Pomba Enamorada, Delírio, Viagem à Petrópolis, Hoje de Madrugada, As babas do Diabo, O Patinho Feio. Muitas resenhas são escritas sobre as obras lidas. No início da Oficina, havia os exercícios para quebra de bloqueio criativo, desde os jogos para composição de texto usados pelos surrealistas, tipo cadavre-exquis, ao uso dos constrangimentos oulipianos, tipo tautogramas,por exemplo. Ás vezes basta uma palavra, uma cena, uma música, um tema para estimular a criatividade.

Quando perguntado sobre o que era Literatura, Borges disse, certa vez, irritado, Ninguém indaga qual é a utilidade do canto de um canário ou do avermelhado do crepúsculo.

Na verdade, são muitos os caminhos das letras. Quanto mais elas andam, mais o círculo brilhante que as circunda deixa sombras de mistério e de silêncio em seus rastros. A bússola dos viageiros são essas pegadas que elas largam. Segui-las é mais do que uma escolha, torna-se a própria razão de ser da viagem. Pouco importam os mares revoltos, os ventos açoitadores, os cantos das sereias, os icebergs enganadores. É preciso segui-las, desvendar-lhes os mistérios, reconhecê-las em suas incompletudes e mesmo assim continuar a persegui-las. É preciso viver a utopia de que vai alcançá-las, de que até vai dominá-las para aquietar essa ansiedade que norteia um navegante viageiro das palavras.

Jaboatão dos Guararapes, fevereiro de 2018

NOTAS:

 [1] NABOKOV, Vlademir – Aulas de Literatura – Relógio D’Água Editores, Lisboa, 2004

[2] MORAES, Marília – Poesia, Psicanálise e Ato Criativo – texto eletrônico

[3] FREUD, Sigmund – O Delírio e os Sonhos na Gradiva de Jensen e outros textos – V. VIII – Imago.

[4] PESSOA, Fernando – Poemas – heterônimo, Álvaro de Campos.

[5] Vários contos de Clarice Lispector foram lidos ao longo desses anos:  Laços de Família, Amor, Feliz Aniversário, A menor mulher do mundo, Começos de uma fortuna, Viagem à Petrópolis, Felicidade Clandestina, A Via Crucis do Corpo, O Primeiro Beijo, O Búfalo, A Galinha.  Foi lido também Água Viva, e várias das suas crônicas de A Descoberta do Mundo

[6] Entre os clássicos lidos, ainda, no tema do erotismo estão: Eros Místico, de Juan de La Cruz, Sonetos, de Bocage, O Amor e o Belo, no Banquete, de Platão, A Sedução Criativa,  de Casanova, o Canto V, do Inferno de Dante. Alguns anos antes havíamos lido todo o Inferno, da Divina Comédia, de Dante

[7] MONTAIGNE, Ensaios.

[8] Palavra germânica que significa duplo frequentador.

[9] O Outro Eu, de Mario Benedetti, e em tantas outras obras de autores que passaram por lá, como Dostoievski, Virgínia Woolf, Saramago, Borges, Cortázar, Robert Stevenson, entre outros.

[10] O Sistema de Alcatrão e do Professor Pena, O Coração Delator, de Egard Allan Poe, , A Galinha Degolada, de Horácio Quiroga, Erostrato, de Jean Paul-Sartre, O Túnel, de Ernesto Sábato, Sutulin, do escritor russo, As Babas do Diabo, de Cortázar Elogio da Loucura, de Erasmo Roterdã, este último não concluído. E outras mais.

[11] Água Viva, de Clarice Lispector, Vidas Secas, de Graciliano Ramos, Essa Terra, de  Antonio Torres, Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar, dos contos vários de Guimarães Rosa que ao longo desses anos foram lidos.

[12]   A Varanda de Frangipanni, de Mia Couto, Os Mortos, de James Joyce, Os Moedeiros Falsos, de André Gide.

[13] Charles Baudelaire, Shakespeare, Camões, Emily Dickinson, Lautréamont, Paul Valéry, Wislawa Szymborska, Sylvia Plath, Li Po, Yeats, Elizabeth Browning, Elizabeth Bishop, Cesare Pavese, Paul Verlaine, Paul Éluard, , Edgar Allan Poe, Fernando Pessoa, , Sophia de Mello Breyner Andresen, Federico Garcia Lorca, T.S Eliot,  Florbela Espanca, Joseph Brodoski,  Auden, Elizabeth Frye, Walt Whitman, Ezra Pound,  Charles Bukowski,   José Régio, entre outros. Entre os brasileiros, Cora, Coralina, João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade, Manoel Bandeira, Manuel de Barros, Vinicius de Moraes, Carlos Pena Filho, Augusto dos Anjos, Mario Quintana, Ferreira Gular, Cecília Meirelles, Affonso Romano Sant’Anna, Daniel Lima, Paulo Leminski, entre muitos outros.