
Dividindo o tempo entre a Psicanálise e a Literatura, escrevo alguns contos que às vezes me confunde em que momento estou. O ato de escrever, em muitas ocasiões, parece-me com aquele instante do despertar, que ainda confusos não sabemos se foi sonho ou um acontecimento da realidade. A voz narrativa nos conduz a aventuras inesperadas. A escrita desses pequenos contos foi assim, escrevia e reescrevia sem parar, até que um dia consegui afastar-me deles e enviá-los à Oficina. Depois atendo à tentação de nova aproximação. Que novela!
Everaldo Soares Júnior
João pessoa, maio de 2019
MEMORAÇÃO
Everaldo Soares Júnior
Pensando bem, se é possível pensar assim, foi a tempo de se perder nas lembranças. Não sei o que aconteceu, aconteceu, o instante se fez, nada de nada, nem pressa ou demora, mais nada. E o mesmo se repetiu.
Alguma franja avermelhada no horizonte do céu com a terra sinalizava que era o anoitecer, hora de descansar o peso do corpo na linha comprida da terra. Abri o saco, passei a mão por dentro catando um resto de comida para enganar o ronco do estômago.
Estirado no chão, olhei para cima. Tudo estrelado, nuvens passando, escuro nenhum, a lua começando a aparecer majestosa.
No meio do moído de dores, um pensamento me subiu à cabeça: o que aconteceu, aconteceu, havia mesmo de parar aqui. Não esqueço, vi a cara de espanto dela escorada na cama, o barulho que ouvira foi da banda da janela batendo e logo a zoada do pulo no chão do terreiro. Ligeiro, com a pistola na mão, passei pela porta de trás da casa, nem precisou fazer mira, puxei o gatilho, escutei três estampidos e a pólvora sombreou a minha mão direita.
Peguei o saco, enchi com o que pude e saí desatinado pelos matos afora.
Agora não necessito de volta, aconteceu, aconteceu, um fiapo de tempo sem sentido mudou o rumo da vida. Fazer o quê?
O que insistia era a lembrança do verde de folhas novas dos seus olhos, o cheiro de jasmim, a respiração ofegante no meu pescoço, a pele macia, arrepiada e o coração batendo apressado. Beleza, seu corpo amparado nos meus braços.
Vai passar, o que aconteceu, já aconteceu, arrependimento de nada adianta, melhor que fique cada um no seu lugar.
Acontece
Everaldo Soares Júnior
Há momentos que não consigo me dominar. Não tinha nada que me alterar daquele jeito. Ela ficou calada e baixou a cabeça, logo vi a besteira do meu descontrole. Saiu de casa e por azar meu, encontrou-se com aquele Nilson no portão, muito intrometido. Demoraram mais de meia hora conversando.
Cara, você tem que maneirar mais. Ela ficou sentida.
Sei, Nilson, mas depois resolvo. Agora vamos terminar esse trabalho chato.
Concordo, já não é sem tempo.
Queria dormir cedo, a amiga insônia chegou e veio com seu parceiro, o coração apressado. Vou telefonar.
Quero conversar, tem coisas em mim que, por mais cuidado que tenha, não controlo.
Agora não, amanhã, às quatro horas no Café da Praça.
Certo, até amanhã à tarde.
Mais calmo, vou dormir, ajeitei os travesseiros. Na mesa cabeceira apalpei a caixa de balas da pistola que trouxe para casa.
Moço, por favor, traga-me uma água com gás e um café simples.
Pensei em já encontrá-la aqui. O coração acelerou antes da hora.
Lembrei do cardiologista, depois de me auscultar e ler meus exames, ele falou: os resultados estão ainda na faixa da normalidade, mas vamos cuidar dessa arritmia.
E a pressão arterial?
Procure relaxar, que a máxima está 160, mas acontece que a mínima não passa de 90 e isso é o que nos interessa no momento, vou medicá-lo.
Procuro argumentos para justificar esse destempero e eu mesmo não me convenço. As brigas dos velhos ainda ressoam no meu destempero. As chateações do trabalho, o trânsito infernal, o cansaço, minha solidão maior que a dos outros, desamparo amoroso. Que nada, tudo besteira para justificar a atrapalhação que faço. No início é um calor no corpo todo, logo, logo, vem a raiva que espanta e afasta qualquer pensamento. O arrependimento não adianta nada. Volta tudo de novo.
Está demorando muito, será que vem? Ainda não consegui acabar o amor todo de seu coração. Assim espero.
Moço, mais um café.
Acho que enchi o saco com o desmedido, ficou triste e foi embora, pronto terminou.
Será? Também não fui só ruim assim. Uma vez vi na televisão um documentário sobre a visita de Vinicius ao amigo João Cabral de Melo Neto, em Sevílha. Grande festa organizada pela filha do João. O Poetinha pegou o violão e começou a cantar uma bossa nova que falava do amor e do coração. Distingui uma voz rouca e baixinha lá no fundo da sala que dizia, essa é a única víscera que ele sabe cantar? Puxa, chamou o coração de víscera. E muita gente deu risada.
Alô, sim sou eu, mas agora não, estou aguardando uma pessoa me ligar, amanhã conversamos sobre a reforma desse escritório, desculpe.
Está atrasada, ontem ficou com lábios cerrados, pálida e a testa franzida, olhos sem expressão, foi embora sem despedida. Também a repetição se tornou tão frequente. Via o seu rosto cada vez mais triste, muito diferente do dia que a conheci. Foi na festa do Nilson. Aproximei-me da mesa do aniversariante e logo a notei, parecia uma rosa sorrindo. Parei, tomado de simpatia, irradiava atenções, falava com as pessoas, ficou dançando solta numa roda animada.
Fiquei bem perto da animação e fui descoberto pelo seu olhar. Estendendo nossas mãos chegamos próximos e começamos a dançar juntos.
O telefone dela está fora da área ou encontra-se desligado. Não vem e nem quer falar comigo.
Pareço aquele personagem, Juan Pablo, de Ernesto Sábato, do livro O Túnel. Tudo tinha de ser como ele dizia. Usava as palavras da moça para argumentar contra ela. Humilhada, concordava e ele ainda ficava satisfeito. Não, assim é demais, também sofri, a disritmia é a prova disso. Tivemos momentos encantadores, inesquecíveis, olhávamo-nos nos olhos, seu corpo macio junto ao meu, abraçados assim, o tempo desaparecia. Espere, são quase seis horas, estou aqui há mais de duas. Podia ter me casado com ela, agora teria filhos, casa, quem sabe se eu não estaria melhor dessa mortificação.
Alô Rosa, estou lhe ouvindo bem.
Ernesto, estou no hospital, acompanhando meu pai.
O que foi que ele teve?
Uma arritmia e a pressão arterial subiu muito, está na U T I.
Bom, se a mínima não ultrapassou 90 mm de Hg, pode ser medicado e logo vai melhorar. Qual é o hospital?
Acontece que a mínima ultrapassou os 90, eu vim com Nilson, não se preocupe.
O coração disparou.
Está bem, depois a gente se vê
Garçom, traga-me aquele conhaque espanhol, pode ser duplo e a conta.
Bebeu sorvendo de gole em gole.
Levantou-se devagar, saiu com passos largos até a calçada.
A avenida era um corredor. A passagem de pedestre era no final da quadra mais adiante. Parado, resolveu atravessar ali mesmo. Com passos largos começou a travessia movimentada e perigosa. Nos primeiros metros foi mais rápido que os carros, depois um automóvel de luxo parou em cima dele, cantando os pneus. O motorista gritou bravo, mas ele não deu ouvidos. Continuou andando depressa até o estacionamento
O carro estava limpo, foi lavado e lubrificado. Abriu a porta, sentou-se. Encontrou no porta-luvas a pistola. Ligou o som na música que gostava, respirou pausadamente, com a mão direita levou a arma até a cabeça, do lado direito, acima da orelha. Continuava respirando devagar. Sabia que tinha que apertar ligeiro o gatilho.
João pessoa 5 de maio de 2019.
Júnior, não deixe mais esses contos escondidos por aí. Dê-nos o prazer da sua leitura.
Essa parceria da Psicanálise com a Literatura é antiga e muito rica, não é Júnior?