Veredas Mitológicas

Veredas Mitológicas reiniciou sua atividade, em 2009, com a leitura crítica do Fausto, de Goethe. Essa Obra, segundo Haroldo de Campos, no seu Deus e o Diabo no Fausto de Goethe, de fato, desborda. Desborda dos marcos tanto do Pré-Romantismo do Sturm und Drang, como das convenções classicizantes. Trata-se de um poema enciclopédico. Fausto gira em torno de um pacto diabólico feito entre dois personagens, Fausto e Mefistófeles. Aí encontramos toda a história da humanidade, que vai desde a Antiguidade até à época moderna.

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 GRUPO VEREDAS MITOLÓGICAS

(Reunião semanal das 17:00hs às 18:30hs)

 O traço desse grupo de leitura e debate é seguir por meio do literário os caminhos estabelecidos pelo mítico, para que surja a oportunidade de se capturar o psicanalítico, sempre caracterizado na dinâmica de troca de impressões tidas pelos seus participantes.

A seguir estão algumas das várias contribuições de alguns desses participantes que, convidados a formalizar, apresentaram elementos no sentido de tornar a leitura melhor dimensionada e possibilitando o percurso criado pelas veredas da subjetividade inconsciente que denomino de issogênicas.

Carlos Santos

 

 Contribuição de Carlos Santos na leitura e debate dos textos e Homero mostrando a interação entre o mítico e o histórico no mundo heládico.

Origem mito-histórica dos heládicos

# Deucalião, filho de Prometeu, junto com Pirra, filha de Epimeteu e Pandora, conseguem se salvar do dilúvio promovido por Zeus por meio de uma arca.

# De Deucalião e Pirra nasceu Hélen que é posto na posição e função de ser o ascendente primordial dos heládicos.

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Hélen é o antigo Rei de Ftia, que fica na região da Tessália.

Teve três filhos: Doro, Xuto e Éolo.

De Xuto e Creuza (a filha de Erecteu Rei de Atenas) vieram Aqueu e Íon.

De Éolo vieram Creteu, Sísifo, Salmoneu e Atamas.

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Doro: originou os dóricos.

Éolo: originou os eólicos

Aqueu: originou os aqueus

Íon: originou os jônicos

 

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Os Aqueus ou Dânaos, que estavam na idade do bronze, venceram os Pelágios que viviam na Idade da Pedra. Chegaram a conquistar o povo cretence que vivia sob um regime que não valorizava o embate promovido pela hierarquia governamental e militar.

Éolo teve sete filhos e cinco filhas. Creteu: fundador da cidade de Iolco, Sísifo: fundador da cidade de Corinto e avô de Belerofonte, Salmoneu: que emigrou para Élida, Atamas: que reinou na Beócia e ajudou a criar Dioniso.

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Contribuição à leitura da Ilíada

Comentário sobre o posicionamento conciliador do mente-lúcida Nestor, no momento em que o Rei Agamenon resolve solicitar de Aquiles que volte a participar da guerra contra Tróia.

Deploro não teres dado ouvido ao meu conselho, mas, inflando o coração, ofendeste um bravíssimo heroi, honra dos deuses, privando-o do seu prêmio, que reténs.

# No uso pleno de NÓOS, o olho que consegue ver claramente os fatos, tendo a capacidade de um bom entendimento pela via da experiência de vida, Nestor acolhe a angústia do Rei Agamênon diante da iminente perda da guerra. Essa inspiração não se deve a que Nestor está movido por algum propósito além do que lhe é inspirado pelos deuses, pois o homem homérico não age segundo a consciência, desconhecendo as decisões autênticas originárias das próprias forças, nem busca cercar-se de práticas mágicas. NÓOS está relacionado aos dons oferecidos pelos deuses, assim como o que põe o homem em ação, o THYMÓS.

# No uso do THYMÓS, Nestor não evita proceder numa crítica acirrada a Agamênon, dispensando a idéia de que o conciliador significa alguém que não tem sentimento. Ele destrói a visão inodora de alguém que somente acredita numa conciliação se for por meio de ausentar-se de opinar decisivamente acerca do que está convocando as emoções e ao olho que esclarece a percepção. Pelo contrário, o processo de conciliação exercida por Nestor, tratado como mente-lúcida, envolve a relação entre THYMÓS E NÓOS, pois somente assim é que se dá o acento numa trajetória que qualifica o sentido de guerra para os helládicos.

É somente com o surgimento do mundo medido pelo sentido comercial da política que a formalização pessoal ganha espaço na articulação acerca do poder que concerne à ocupação de posições hierárquicas. Nesse contexto, o THYMÓS separa-se do NÓOS. O olhar que vê claramente os acontecimentos emerge, mas num modo de ser que o ideal é o agente conciliador, o qual se ausenta de qualquer posição que venha a fazê-lo se comprometer num posicionamento frente às exigências que surgem na realidade. Essa é a função imaginária, segundo o que designou Freud quando alertou que o eu se constitui por meio de uma conciliação envolvendo três tiranos; de um lado existe a força pulsional, de outro o supereu e, por fim, a realidade, a qual está a serviço da raiz subjetiva do fantasma. Vem daí o que a Psicanálise fundamenta por meio do falo imaginário (menos phi). Assim, o NÓOS imaginário realiza a sustentação que ordena e mantêm o mesmo, em detrimento do diferente, principalmente naquilo que dá certo quanto à garantia das ocupações das funções de poder.

O processo de conciliação de Nestor não segue essa estratégia político-comercial, pois se posiciona contrariamente ao THYMÓS de Agamenon, reconhecendo a importância de ele não ter acirrado uma disputa com o THYMÓS de Aquiles. Nesse caso, Nestor está confirmando a junção de THYMÓS com NÓOS, os quais se junta a PSYCHÉ para constituir o sentido de estruturação do homem para os heládicos de Homero.

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Considerações acerca do corpo para Homero

Nas línguas primitivas a abstração não é desenvolvida, por isso são ricas em expressões referentes ao dado concreto. Isso se vê com relação as expressões sobre a visão e os olhos.

# Os gregos atribuíam aos olhos uma irradiação de luz. Uma imagem intuitiva sobre a forma de ver e ser visto, denotando sentimentos no ato de ver objetos determinados.

# A função do ver = usar vários verbos com determinadas modalidades do ver.

# a atividade como percepciona um objeto.

Como Homero designava o corpo e o espírito

Palavra soma = ρωμα = em Homero é cadáver. O corpo vivo para Homero é demas = δεμας que significa estrutura e forma.

Homero em vez de um corpo nomeia membros, os quais são dotados de movimento.

GUYA: membros dotados de movimento

MELEA: membros dotados de força pela musculatura

CHRÔS: pele como limite do corpo

O que virá a ser soma: os plurais = guya e melea = a corporeidade do corpo. chrôs o limite do corpo e demas a figura, estrutura.

O corpo substancial é como pluralidade. Não concebe como unidade = verbos da visão pelas modalidades sensíveis. Justaposição de membros ou soma de membros.

Ex.: pernas ágeis, joelhos que se movem, braços poderosos. O que se apresentam diante dos olhos.

Domínio do espírito e da alma

Homero não tem palavra que designa alma e espírito.

ψυϗή psyché = no grego posterior designa alma. Em Homero psyché é o que anima o homem.

Alma: psyché – thymós (ϑυμος) – nóos

Homero não descreve sobre o modo de psyché atuar. Ele afirma: psyché abandona o homem na morte ou no desfalecimento. O homem arrisca sua psyché no combate. O homem luta por sua psyché e quer salvá-la.

A alma sai do corpo pela boca, é expirada. Também pelas feridas voa para o Hades.

Homero não diz onde reside a psyché. Pensa na alma dos mortos. A concepção é a de psyché como alento vital.

Já Thymós é o que suscita as emoções (órgão das emoções), nóos é o espiritual anímico.

O thymós abandona na morte, mas não continua como psyché após a morte.

Thymós é órgão do sentimento. Nóos é a faculdade intelectiva.

Thymós põe o homem em ação, formando com Nóos partes da alma.

O Thymós é o órgão da emoção, de modo que uma dor aguda vai afetá-lo.

Nóos é o órgão do entendimento, como um olho espiritual que vê claramente. Tem a capacidade do pensamento e do entendimento. Tem semelhança com o olho em relação ao saber. Acolhimento da experiência. O órgão é o olho.

Toda intensidade das forças corporais e espirituais vem a partir de fora: dos Deuses.

Homero desconhece as ações autênticas do homem.

Os homens homéricos ainda não despertaram para a consciência de possuir na sua alma a origem de suas forças, nem pretende atrair tais forças mediante quaisquer práticas mágicas, mas recebem-nas de um modo completamente natural como dons dos deuses.

 

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Contribuição de César Garcia na leitura e debate da Ilíada de Homero, mostrando a presença do bronze na cultura heládica antiga.

 

 

O bronze na Ilíada

A longa descrição das batalhas entre gregos e troianos, feita por Homero, é recheada de referências aos despotfre a que tinham direito os vencedores sobre os vencidos. Lanças, escudos, elmos, espadas, sabres, dardos, arneses, arcos e flechas, arreios etc, tudo era retirado de forma legítima aos mortos e levado para aumentar o tesouro pessoal do guerreiro mais forte. O bronze com que eram feitas ou decoradas estas peças era material de grande valor para a época em que o ferro, embora já conhecido, era ainda pouco utilizado.

A leitura desta grande obra no Grupo de Estudo de Mitologia do Traço Freudiano despertou a curiosidade dos participantes sobre a composição e a fabricação do bronze. Nossa pesquisa bibliográfica revelou tratar-se de uma liga de cobre e estanho. O nome vem do persa biring que significa cobre, mas a liga pode conter ainda, em quantidades variáveis, elementos como zinco, alumínio, antimônio, níquel, fósforo, chumbo, que foram sendo experimentados ao longo do tempo para torná-la mais adequada aos diversos usos. Mesmo obtida na forma simples da época da guerra de Troia, tinha a vantagem de não oxidar-se, ser maleável, embora bastante dura para resistir aos impactos de uma luta entre guerreiros e ter aparência de grande beleza após o polimento lhe dava brilho e cor próxima à do ouro.

Com o avanço das técnicas de fabricação o bronze foi sendo utilizado em muitos outros objetos tais como estátuas, sinos, ferramentas e instrumentos musicais.

O processo de fabricação consiste em misturar um mineral de cobre (calcopirita, malaquita ou outro) com o estanho (encontrado na cassiterita) em um alto-forno alimentado com carbono (carvão vegetal ou coque) e em seguida acrescetar os outros elementos já citados.

 

ODISSEU E TELÊMACO

 "Nenhum dos deuses eu sou; por que a um deus imortal me comparas?

Sou, sim, teu pai, por quem hás suspirado, saudoso, já tanto

e tantas dores sofrido, aguentando a violência de estranhos."

Os três versos acima são de Homero, na Odisseia. Telêmaco não queria acreditar que fosse seu pai aquele mendigo subitamente transformado, com ajuda de Atena, em um homem bem vestido e limpo. Pensou tratar-se de um deus. Com aquelas palavras, Odisseu revelou-se de forma tão sincera e convincente que ao filho não restou dúvida. Era seu pai, rei de Ítaca, retornando vinte anos depois de sua partida para a guerra. É o momento em que o filho reconhece e aceita o pai humano, herói, mas não imortal.

A leitura feita no Grupo de Mitologia do Traço Freudiano Veredas Lacanianas fez-me pensar instantaneamente na minha condição de filho e pai. Terei vivido um momento da minha vida em que percebi e aceitei meu pai, não como um deus, mas, humano, mortal? Sem a oniciência que lhe atribuía na minha infância, sujeito a equívocos, nem sempre afetuoso, incapaz, muitas vezes, de corresponder a minhas expectativas? Terá ele tido a vontade de dizer-me, alguma vez, o que Odisseu disse a Telêmaco? Não me lembro de ter duvidado que ele fosse meu pai, mas talvez o tenha julgado, em certas ocasiões, como se fosse infalível, qualidade divina. Que efeito teriam esses versos se lidos na minha adolescência?

Por outro lado, caberia perguntar a meus filhos se sempre lhes pareci um pai apenas humano e não um deus de quem pudessem esperar maravilhas. Não, nunca, nem de longe me assemelhei ao menor dos deuses e, ao contrário, sempre precisei de indulgência nos julgamentos que por ventura tenham feito de meu desempenho como pai. Gostaria de dizer-lhes: "nenhum dos deuses eu sou", sou, sim vosso pai, sujeito aos impulsos nem sempre controláveis que a natureza me legou. Capaz de desejar-lhes o que considero melhor, sabendo que vocês podem ter outros modos de ver, outras perspectivas.

Julgo surpreendente o impacto que a leitura me causou porque tenho dito em muitas ocasiões que a paternidade, ao contrário da maternidade, não passa de uma construção mental. O homem julga-se pai porque injetou semem na vagina da mulher que ele supõe honesta. Hoje, pode ter certeza se mandar fazer uma comparação de seu DNA com o do filho, ou seja, se recorrer ao conhecimento científico e tecnológico, pura construção mental. Claro, estou falando de paternidade biológica, mas a gravidez, o parto e a amamentação que constituem funções exclusivamente femininas, dispensam qualquer prova e favorecem a relação amorosa entre mãe e filho. Lembro aqui a chocante frase de James Joyce: "só conheço duas formas de amor: o da mãe por seu filho e o dos homens por suas mentiras".

Um cético não devia comover-se tanto lendo um poema que fala de deuses imortais e de um herói que fica vinte anos longe da família, mas nossos sentimentos às vezes nos surpreendem.

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Contribuição de Dulcinea Santos na leitura e debate dos textos de Homero, mostrando a ética heládica

A ética aristocrática na Grécia arcaica

É Homero o testemunho mais antigo da história da formação grega, conforme comenta o grande helenista Werner Jagger, ao analisar a ética aristocrática da Grécia arcaica, fundamentalmente baseada em três valores comunitários: arete, time e fama. Sobre essa sociedade primitiva Jaegger observa: A força educadora da nobreza reside no fato de despertar o sentimento do dever [aidos] em face do ideal e a sua violação desperta nos outros o sentimento que lhe está estreitamente vinculado, a nemesis [justiça distributiva].

Regidos por essas três categorias éticas, os Gregos arcaicos têm na arete a mais alta medida de valor da sociedade, que, na tradução ao vernáculo, se aproxima do conceito de virtude, excelência. Esse conceito representa, imaginariamente, duas ordens: a arete do corpo, cujo valor máximo é o vigor e a destreza, e a arete do espírito, representada pela sagacidade e penetração. Assim é que, em Homero, na Ilíada, texto anterior à Odisseia, os valores decantados em toda a epopeia concernem à primeira vertente, o que é notório, pois, conforme esclarece o grande helenista W. Jaegger, aí toda a história se desenvolve no campo de batalha, exigindo, portanto, uma arete do corpo. Jaegger comenta que até na paz se mostra a satisfação da rivalidade pela arete viril, ocasião para cada um se manifestar em jogos guerreiros, como a Ilíada os descreve a propósito dos jogos fúnebres realizados, numa curta pausa da guerra em honra do Pátroclo morto. Daí ser Aquiles, o guerreiro mais valoroso pela destreza física, a figura central dessa epopeia. Mais adiante, na Odisseia, entretanto, podemos observar um salto ético qualitativo, em direção à cultura, com a arete do espírito sendo agora voltada para a solércia de Ulisses. Jaegger comenta que essa epopeia homérica está voltada para, digamos na doce língua dos italianos, o dolce far niente da vida doméstica, na busca da Paz, da serenidade. Ulisses o tempo todo o que deseja é voltar para Ítaca, o lar que o aguarda no klinos, leito, cama, que tem como madeira de lei o carvalho de Zeus, deus protetor do oikos, lar.

Mas, conforme Jagger esclarece, não bastava aos heróis ser providos apenas de arete. Era-lhes necessário que adquirissem a honratime-, pois o homem só adquire consciência do seu valor pelo reconhecimento da sociedade a que pertence. Daí se constituir em maior tragédia, imposta ao aristocrata grego, a negação de sua honra. Ser piedoso, lembra Jaegger, é honrar aos Deuses. A impiedade resulta em castigos para os humanos, infligidos pela nemesis.

Aquiles incide na hybris rancorosa. Não foi por ambição pessoal, como arrazoa Jaegger, que ele se revoltou contra a tomada de seu butim de guerra – Criseida – por Agamemnon, mas sim pela negação de sua time, o não reconhecimento do comandante micênico do mérito a que tinha direito. Jagger também lembra a tragédia que abateu Ájax: quando as armas de Aquiles foram dadas a Ulisses e não a ele, fora acometido pela loucura passageira [lyssa]-, depois caindo fulminado pelo suicídio, por ter a honra ofendida. Portanto, para o imaginário dos gregos antigos, era necessário que o valor próprio do herói fosse reconhecido pelo elogio epainoV - e pela reprovação - yogoV -, a fonte da honra e da desonra (Jaegger).

Mas, além destes dois valores aristocráticos – arete e time – ainda era preciso a conquista de mais um valor. Sim, aristocráticos porque ao homem comum e à mulher não lhes era atribuída a arete, embora os cavalos de raça o fossem, pela velocidade que possuíssem. A arete era atributo exclusivo da nobreza, dos aristoi, os escolhidos. Para corresponder à ética aristocrática, seria necessário, ainda, que o herói conquistasse fama, tornando-se imortal, o que só era alcançado após a morte, pois a arete heroica só se aperfeiçoaria com a morte física. A fama do herói, conta-nos Jaegger, é o que perpetua a imagem de sua arete.

E, nos dias de hoje, perguntemos: - Que arete se mira e vê? Penso que a honestidade. Não é fácil manter-se afeito aos valores que lhe bordejam o núcleo, não é mesmo? Sabemos: a fonte que rege o prazer é muito difícil de ser domada! Exige mal-estar...

Dulcinea Santos

Junho 2012

 

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Aceno de despedida a Homero

No final do mês de outubro de 2012, o grupo Veredas Mitológicas encerrou a leitura dos livros atribuídos a Homero (Ilíada e Odisseia). Esse atravessamento sob a forma de leitura e de debate mostrou que tais marcos da cultura ocidental tratou de inúmeros temas, dentre os quais o principal diz respeito ao exame de elementos contraditórios constituintes do modo de pensar heládico que se expandiu pelo ocidente através do linguajar cotidiano.

Na Ilíada esse contraditório diz respeito à convivência entre o modo iracundo expresso por Aquiles e a súplica mostrada por Príamo. Aquiles é iracundo porque Agamenon extrai parte de seu quinhão do espólio de guerra, além de dirigir para Heitor, príncipe troiano, sua força de guerreiro, matando-o. Já Príamo é suplicante na medida em que esquece toda e qualquer imponência de rei troiano para curvar-se perante Aquiles querendo resgatar o corpo do seu filho morto e assim poder realizar os rituais fúnebres que iriam possibilitar sua entrada no Hades.

Na Odisseia esse contraditório coloca a vingança corporificada na situação de Penélope não reconhecer que o tempo afastado do marido quer significar que ele estaria morto, e que por isso deveria retornar à casa de seu pai e esperar ser novamente oferecida ao novo marido. Por não tomar tal resolução, vários pretendentes ficam na casa de Odisseu consumindo em lautos repastos os bens palacianos. Essa vingança é corporificada pelo filho Telêmaco e pelo próprio Odisseu que retorna a Ítaca na figura de um mendigo, devido à ajuda de Palas Atena. No entanto, essa vingança consumada é ponderada quando Odisseu repreende uma criada que louvava o fato de estar diante dos pretendentes mortos. Nesse momento o rei de Ítaca mostra que após a morte não há mais nada a combater naquele que foi o objeto de vingança.

Carlos Santos

 

No intuito de continuar focalizando a temática mítica e a literária, o grupo Veredas Mitológicas escolheu a leitura de Os Lusiadas, de Camões, dando abordando o tema do um e do múltiplo acerca da dimensão usada a partir das leituras de O Fausto, de Goethe, seguido com a Ilíada e a Odisseia, de Homero. Em função disso, o politeísmo e o monoteísmo não estão sendo apenas dimensionados a partir do sagrado, mas trazendo aspectos sobre a maneira como se pode pensar e articular o simbólico presente no linguajar.

 

 

Contribuição de Carlos Santos para a leitura e debate de Os Lusiadas, de Luis de Camões

Procurando estabelecer o que se chamava na formação clássica de captatio belevolentiae, uma boa impressão na recepção da leitura e na exposição, seguem alguns aspectos que dimensionam o que é designado como sublimação e como transgressão presente em Os lusíadas. A partir desses dois pontos, Camões pode ser visto dentro dessa visão benevolente, pois o poeta traz uma explicitação literária e mítica acerca do que está sendo denominado como realidade considerada pela perspectiva do simulacro ou a realidade chamada na atualidade de líquida. Um acesso a esses termos é observado quando se trata do amor, cuja presença trágica ou sublimada aponta para os extremos que vai desde Homero até Camões.

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Tópicos sobre os tipos de amor

  1. O heroísmo no amor presente no reinado heládico era estabelecido pela hierarquia que designava o poder de se aproximar dos deuses olímpicos. Odisseu e Penélope na Odisseia, de Homero.
  2. Amor cortês, termo criado por Gaston Paris (1883), caracterizava práticas medievais no século XI em que se enaltecia o amor pela idealização da mulher colocando-a a distância. A amada era inatingível e ficava recolhida num extremo silêncio. Textos de Petrarca (1304-74).
  3. Amor romântico, a partir do movimento tempestade e ímpeto, criado por Goethe com seu Werther. O amor é impossível e gerador de sofrimentos no amante.
  4. Amor delirante, no qual entra a via do ciúme e a de compor sua relação com a utopia, instaurada por Thomas More.

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No campo do acesso à Coisa (das Ding), se estabelece o eixo do gozo impossível. No entanto, surgem dois principais recursos: A SUBLIMAÇÃO E A TRANSGRESSÃO.

A Sublimação

O máximo desse eixo pulsional é o Amor Cortês, como o que foi expresso pelos trovadores provençais, os quais cercavam uma mulher com um envoltório protetor, destituindo-a de corporeidade. Assim, protege o sujeito do encontro com o inominável, tendo o gozo domesticado pela beleza.

A transgressão

O máximo desse eixo é o encontro fatal com A Coisa, segundo o qual resulta na criação do espaço trágico, que se dá pela precipitação do amante e do amado no espaço da completa desrealização, tendo como extremo a morte.

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Carlos R. C. dos Santos

Contribuição escrita de 2009 para o grupo Veredas Mitológicas que acontece semanalmente na sede do Traço Freudiano Veredas Lacanianas

Durante as sessões de cinema animaram as Veredas Mitológicas, veio esse comentário acerca do julgamento de Sócrates, procurando mostrar uma das muitas interpretações sobre essa passagem da cultura ocidental, a partir do filme Sócrates, de Roberto Rossellini.

Notas de Xantipa

Num certo momento de sua obra, Freud declarou que o psicanalista escuta um analisante da mesma forma como um arqueólogo escava num sítio de pesquisa. Trata-se de uma das inúmeras comparações feitas para entender o sentido da função clínica exigida pela Psicanálise, segundo a qual o achado do já havido comprova o tipo de presença humana num determinado local e numa determinada época. No entanto, o motivo dessa confluência também representa uma distância qualitativa, de modo que o achado concernente ao analítico não é do campo do havido, mas o do constituinte da subjetividade Inconsciente. O fato, nesse caso, é inseparável do falasser.

Mesmo no contexto dessa ponderação, como nos mostrou Freud, em Totem e tabu, alguns achados arqueológicos sugerem ao analista um havido que dimensiona a subjetividade analítica, mesmo que não sejam classificados de modo concreto.

Nesse caso, os achados estão em sítios ficcionais, por meio dos quais são encontrados cacos cerâmicos nas entrelinhas de certos escritos. Seguindo essa perspectiva, a Apologia a Sócrates, de Platão, mostra alguns cacos do vaso em que se depositavam os vinhos, servidos nos momentos prazerosos retratados nos interiores das casas gregas, por meio dos quais pode se apontar a dimensão de uma subjetividade. Além desses, existem outros que trazem a acidez do que muitos contemporâneos de Sócrates tiveram que engolir na convivência com ele, principalmente a sua mulher e mãe dos seus filhos. Assim então, na Apologia a Sócrates, existem cacos que os analistas podem, por meio deles, edificar algum ensino, por exemplo, um objeto de uso ornamentado com traços que indicam certas Notas de Xantipa, mesmo constando apenas algumas palavras esparsas, as quais foram salvas da ação erosiva do tempo.

Tomando a Apologia escrita por Platão, Roberto Rossellini ambientou os momentos que antecederam o suicídio de Sócrates, mesmo sendo tomado como conclusão de um processo acusatório movido contra o filósofo, no qual foi condenado a beber veneno. Chamar de suicídio o que se deu com Sócrates, é contrariar o senso comum, cuja forma reflete o assassínio movido pelo Estado ateniense. A passagem do texto para a composição de cenas deixou surgir um resto cerâmico que mostrou a visão de Xantipa e o quanto ela propôs a Sócrates e aos seus discípulos. De acordo com suas Notas, a prática socrática não refletia uma adequada cidadania, pois não estava conforme o ideal proposto pela Pólis grega, a qual colocava em foco o provimento das obrigações ao lado das produções mais elevadas de amor à sabedoria.

O lugar de filósofo, na visão de Rossellini, refletindo a Apologia a Sócrates, denunciava uma função que não se adequava ao exigido em Atenas, segundo a qual o sustento da família era uma atividade essencial. Já Sócrates deixava os integrantes de sua família em constante carência de bens materiais que são necessários ao sustento e à satisfação de exigências básicas. Sua principal atividade, na companhia de discípulos que com ele circulavam pelas ruas pedregosas da cidade, era, por meio da Maiêutica, a arte da parturição das idéias, colocar um constante furo no saber produzido pelos Sofistas.

A principal idéia de Sócrates era a de levar o interlocutor, por meio de argüições, à destituição do saber, de modo que a certeza sofresse abalos suficientes para não edificar qualquer ensino. Sendo assim, Sócrates, com o Só sei que nada sei, ia minando qualquer outro lugar de transmissão, sustentando apenas o seu, de apresentar-se aos seguidores. Enfim, surgiram reações dos que viviam em função da circulação de conhecimentos – os Sofistas –, questionando o fato de haver no modo de ser de Sócrates um desvio, trazido pelo projeto que consistia em um jovem poder produzir um outro saber, em função de um saber Outro dos deuses.

Nesse caso, os argumentos de corromper os jovens e trazer novos deuses, que formalizaram a peça acusatória contra Sócrates, estão fundamentados por um arrazoamento que vai além da simples cobiça quanto às idéias que existem no interior dele, tal como foi expresso por Platão nos diálogos do Banquete, afirmando que o seu mestre assemelhava-se aos Silenos, por ser feio exteriormente, mas cheio de preciosidades.

Sócrates não entrou no âmbito dessa acusação só porque gerou, entre os humilhados, ao decair em suas certezas, rivalidades homicidas. Ele alterava o vínculo do Estado Ateniense com os destinos dos jovens e com o culto às múltiplas divindades. Em suma, não era descabido numa sociedade politeísta e fundada na formação do jovem, acusar alguém que não via a variedade das argumentações relacionadas à linguagem articulada, sob inspiração política, e que se considerava equiparado aos deuses, pois sequer aceitava o dizer oracular de ser um homem sábio. Sendo um homem sábio, ele teria um lugar constituindo o discurso que se adequaria à Pólis ateniense. Recusando esse lugar, o único que lhe restava era o de equiparar-se aos deuses, tomando a si mesmo como alternativa de adoração para os gregos.

O que hoje pode ser visto como o modo de os medíocres se livrarem dos verdadeiros homens que amam o saber, na época socrática cabia como motivo suficiente para que alguém fosse acusado de levar aos gregos outros deuses e de não permitir que os jovens pudessem errar em suas elaborações, mas depois vir a acertar, usando formulações diversificadas

Numa sociedade como a ateniense, tendo o panteão sagrado com diversos deuses, só é admissível a elevação multiplicada tantas vezes quantas os sofistas puderam fundamentar seus discursos. Além disso, prover a família se tratava de um modo objetivo de colocar um ordenamento do processo divinatório no contexto ateniense, visto que assim se constituía o lugar onde germinava a força do jovem que defenderia a cidade. A propósito das Notas de Xantipa, o que elas mostram é um Sócrates que viveu querendo constatar se ele seria mortal ou imortal, numa proporção concernente não à condição de sábio, mas a de um deus. Por mais que Xantipa quisesse mostrar-lhe a possibilidade de o amor ao saber ser condizente ao sustento da família, Sócrates negava dever direcionar o cotidiano ao ganho merecido pela sua prática de filósofo.

Estas são as Notas de Xantipa:
1. Pedras ... ruas ... buracos no que era dito.
2. Julgamento ... pena diferente.
3. Defesa na base da condenação.
4. Queria ... assassínio.

Trata-se de escritos ultimados pelas palavras que faz pensar Sócrates estar apostando na própria morte.
*A leitura de O Fausto levou o grupo a comentar o tanto que surgem referências à luz e ao processo de interação com as sombras e com o escuro. Por isso escrevi esse comentário que propicia dar uma formalização a tal aspecto literário.

A energia e o sonho no Fausto de Goethe

O ambiente cultural em que Goethe elaborou o seu Fausto antecedeu a mudança do significado sobre os termos harmonia e continuidade. Assim, o que virá com Plank e com Freud está anunciado literariamente, mas nas entrelinhas da luz fáustica, a qual visa formular um personagem voltado a absorver um saber além do meramente humano, qualificando os dotes do super-homem.

A harmonia e a continuidade serão redimensionadas depois que Plank fundamenta o conceito de quantum, segundo o qual está formalizado que a radiação gerada pela troca de energia entre os átomos não acontece de modo contínuo, tal como fora estabelecido por Newton. Nesse caso, o mundo físico não mais aclimatava a idéia de harmonia que circulava com total desenvoltura, no sentido de operar na construção de qualquer arrazoamento formal na sociedade ocidental. Desde a arte em geral, até à filosofia, o mundo não podia ser expresso por meio do equilíbrio harmonioso da continuidade, pois o quantum mostrou outra realidade.

Na mesma época em que Plank pôs um limite à aplicação da teoria de Newton, Freud irá mostrar aspectos da mente do ser humano que expressarão outro sentido para a subjetividade. Isso se deu na elaboração freudiana sobre o sonhar, determinando que o onírico não mais deveria ser abordado de modo tão desrespeitoso, mas como algo fundamental para mostrar a realidade do desejo. Assim, o mundo harmonioso da mente, cuja estruturação vinha pela visão cumulativa do processo de ensino-aprendizagem para edificar o processo de socialização, tem que estabelecer uma continuidade entre o sonhar e a realidade cotidiana. O sonhado não ficaria relegado à condição de produto do esquecimento, mas estava colocado no correr da vida em vigília.

A descontinuidade de Plank e a continuidade de Freud romperam com a perspectiva harmoniosa com que se olhava para o mundo cultural e para a subjetividade. Isso ocasionou uma retirada do contexto relacionado ao eu-ideal, concernente ao eixo imaginário, encaminhando o interesse para o ideal-do-eu, mais voltado para o registro simbólico. O efeito dessa passagem é o de que a sociedade e as pessoas experimentam o sentimento de despersonalização, não mais se reconhecendo da mesma forma que antes.

Mesmo que nas entrelinhas de Fausto seja possível ver os acenos acerca do corte dado ao sentido de harmonia, o texto lida com a luz do saber da maneira contínua, contrária a de Plank, e descontínua, afastando-se de Freud. Assim, é necessário que o leitor de Goethe vá até onde esse autor o pôde levar, não imputando-lhe atributos que somente aparecerão com a intervenção de Plank e a de Freud, relacionadas ao que o sonhar e a energia têm da natureza narrativa.

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Desde o início da leitura desse clássico da literatura ocidental, foi frisado que era importante que lêssemos o Livro de Jó. Dessa forma, o texto de Goethe expressa aspectos que podem até ultrapassar o sentido literário e ganhar dimensões bastante mais elevadas quanto à constituição do sentido dado ao ato de fé no domínio judaico-cristão.

 

O foco mitológico do livro de Jó no estudo de “O Fausto” de Goethe

O que mais se espera quando lemos o personagem Fausto de Goethe poder ambientar a leitura a partir do tipo de leitor pretendido pelo autor. Na teoria da recepção, o leitor não pode ser distanciado da obra lida, pois não há aspecto humano que não envolva o domínio do endereçamento. Em vista desse princípio, o esperado pelo autor, a partir da autoria demonstrada pelo próprio texto, é que a disposição entre Deus e o demônio seja ambientado seguindo a sinalização indicada pelo livro de Jó.
As perguntas que podem surgir ao leitor de Goethe:

O mefistofélico presente no livro de Goethe tem o caráter daquele que vem para indicar a perda da proximidade com Deus?

Mefistófeles é um demônio, no sentido de pretender afastar Fausto do bem?

A trajetória colocada pelo texto, relacionada ao lugar do demônio no Livro de Jó, indica que essas perguntas não encerram o verdadeiro sentido que tem Mefistófeles. Dentro do universo colocado pelo surgimento do mercantilismo ascendente, Mefistófeles recepciona o que designa como papel do demônio de Jó, principalmente naquilo que diz respeito ao sentido dado ao valor concernente aos bens e ao merecimento. O demônio pergunta a Deus se Jó o obedece somente porque nada lhe foi tirado, pois adorar Deus num estado de êxito constante não seria nada mais que a curvatura do agradecimento. Não haveria um gesto genuíno de fé quando se tem tudo, não faltando nada. Ai vem toda a indicação de Deus para Mefistófeles tirar o que puder de Jó, menos a sua vida. O demônio é, portanto, o eixo mais representativo do que virá com o movimento abraâmico de ter fé e obediência na privação radical daquilo que será tido como o maior bem.

O mefistofélico indica o sentido que o demônio de Jó coloca para estabelecer o movimento da ética judaico-cristã, não importando que lhe seja atribuído o estabelecimento em gerar o mal. O valor monetário que se eleva acima de qualquer relevância subjetiva, dá a base para que a ética fique restrita ao domínio do ter, esquecendo-se do sentido dado ao ser, no contexto de fundamentar o fato destacado por Lacan de que o ter se coloca diante do ser a partir da seguinte disposição:

1º Não é, sem tê-lo

2º Não tem, sem sê-lo

É assim que se pode questionar o dito que Freud colocou no frontispício da sua Traumdeutung:

Flectere si nequeo súperos, acheronta moverbo

O céu e o inferno estão colocados numa posição muito mais dinâmica do que se fossem apenas elementos antitéticos. O Fausto de Goethe indicou esse procedimento dinâmico, por meio das posições que foram enfatizadas por Lacan acerca do Ser e do Ter.

(Comentário a ser divulgado para os integrantes do grupo Veredas Mitológicas, que funciona nas quartas-feiras, das 17 horas até às 18:30, na sede do Traço Freudiano Veredas Lacanianas Escola de Psicanálise, coordenado por Adelaide Câmara e Dulcinea Santos)
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Cf. Comparação feita por Platão no “Banquete”, segundo a qual Sócrates era feio como a imagem dos Silenos, mas tendo preciosidades no interior. No caso de Sócrates, essas jóias são os conteúdos dos seus ensinamentos filosóficos.