Apresentação do primeiro número de Veredas

Amigos da Psicanálise,

capa-veredas-1-4Nós, os que compomos TRAÇO FREUDIANO VEREDAS LACANIANAS, os convidamos para lhes apresentar hoje um dos produtos do nosso trabalho, a revista VEREDAS. Somos mais ou menos vinte estudiosos de Freud e de Lacan, incluindo seis psicanalistas, além de uma costumeira freqüência flutuante, mantendo sempre a indagação sobre como faz alguém para autorizar-se analista e qual é o nosso papel e nossa responsabilidade em relação a tal formação.

A partir do início do ano passado começamos a nos reunir para lermos Lacan. E, como ler Lacan significa necessariamente retornar de modo perene a Freud, retomamos sua doutrina a partir do relato que fez da análise dos restos dos seus próprios sonhos. Constituimos então mais um grupo de estudos. E foi assim que começamos e prosseguimos.

Sem sermos ecléticos, procuramos ser ecumênicos, ouvindo analistas e estudiosos de várias tendências, pois reconhecemos analistas não a partir de seitas, mas da escuta do inconsciente, além do reconhecimento natural do quanto a Psicanálise depende da Cultura para referenciar-se.

O que parecia ser uma reunião desprentenciosa entre alguns poucos tornou-se, num átimo, uma troça alegre com o apelido simpático e carinhoso de Grêmio Recreativo Lítero-Artístico-Musical-Psicanalítico Flor de Santana. E etílico, além de tabagista, com bebidas e fumo animando nossas reuniões. O recreio durou um bom tempo, mas, como nem tudo é recreação, esta foi cedendo lugar à sobriedade, ainda que sempre bem-humorada, diante da alteridade dos textos lidos e de nossa própria palavra nos debates. Afinal, Lacan foi um sujeito de muito bom humor, mas não brincava em serviço, e quem o estuda sabe o quanto é preciso "queimar as pestanas". Pareceu-nos, contudo, desde o início, desejarmos um ensino sem docência, livre da tirania e da vaidade dos mestres e da subserviência dos tolos. Talvez seja esta a nossa pretensa vaidade: um ensino sem docência, sem aspirações acadêmicas, o aprendermos lendo e conversando.

Há algo a ser frisado enquanto insubstituível: a passagem por longas análises dos psicanalistas reunidos neste projeto, acrescida pela experiência e convívio cotidiano com a clínica. Esperamos que nossa própria análise e o atendimento que fazemos não sirvam à inflação do ego, e que tenhamos convivido com a morte em suas dimensões possíveis na fala de nossa história e em nossos desetfre, mas que sintamo-nos animados, cheios de vitalidade, em decorrência do limite da própria vida, tal como enunciou Pindaro: "Ó minha alma, não aspires à vida imortal, mas esgota o campo do possível".

Daí VEREDAS ser também uma expressão de nossa luta de vida-e-morte, simbolizando-a na escrita. Há a morte física e a cultural. A morte cultural traduz-se no analfabetismo social, desejo realizado perversamente por nós através de nossos governantes. Quanto a nós, se reagimos à ameaça de nosso próprio analfabetismo literalizando a letra, procuramos retardar a nossa própria morte com cada letra que traçamos, prolongando nossa existência na memória dos outros através da escrita. Traçamos letras; são traços que delineiam as letras, a partir de um traço, o unário, como nos ensinou Freud em "Psicologia das Massas e Análise do Eu", e frisado por Lacan em "A Identificação".

Se o nosso "grêmio" original já portava o nome TRAÇO FREUDIANO, devia-se à insistência da repetição da letra que se quer escrita para dar forma ao traço originário. O traço primeiro foi a marca com a qual os vivos assinalaram a morte do outro, sendo a letra a elaboração de uma antevisão imaginária, através do semelhante, da nossa própria morte. Escrevemos sem cessar justamente porque não contemos tal inscrição em nosso inconsciente. Será que é por isso que dizem ser necessário plantar uma árvore, ter um filho e escrever um livro, pelo menos, para simbolizar nossa passagem pela vida? E o que pode nos ensinar a Psicanálise quanto a isto? Que nada, nem mesmo tais coisas, apreenderão a letra que falta, a letra que Lacan designou a, resto do que origina o desejo; que são marcas simbólicas a indagar sobre a paternidade e o desejo de morte do pai; que não há relação lógica possível que responda ao enigma da vida e da morte; que não há resposta única à indagação sexual sobre o ser filho ou filha enquanto sexualmente diferentes. Ser filho, condição universal, é ser portador de uma indagação da e à mãe sobre o pai, e o que quer uma mulher mãe ou não-mãe; ser filho é estar sempre no lugar da falta, o falo; é ser atravessado pelo desejo da mãe ao redor do seu próprio pai, circuito de uma repetição, mais que reprodução, que pode tornar-se estéril ou profícua.

O TRAÇO FREUDIANO impeliu-nos por tais VEREDAS, e se as denominamos LACANIANAS foi porque procuramos seguir certas trilhas abertas por Lacan. E hoje apresentamos VEREDAS, nossa árvore, nossa filha, nosso livro. Da filiação passamos à paternidade no cultivo das letras. Tornamo-nos Pai, permanecendo filhos. Gestação prolongada, não de nove, mas por dezenove meses. Seria impossível listar todos aqueles que permitiram seu nascimento. Começamos por Seminários de Leitura, e como seminário é uma palavra latina figurada para designar escola, sua origem correspondendo a um "viveiro de plantas", "sementeira", e seu radical sendo o mesmo de sêmem, "semente", aqui neste local não só se mente muito, mas também se procura algo verdadeiro e o cultivamos. A semente que germinou foi cultivada por todos aqueles que participam dos nossos seminários das quintas-feiras, e o que os leitores encontrarão como abertura deste periódico é o texto de alguém que começou conosco a ler Lacan pela primeira vez. Outros virão, por certo, nisto apostamos e fazemos fé. Quantos, impossível sabê-lo. Nos parece que nenhum se equivale a muitos, sendo ambas as situações inviabilizadoras de projetos autênticos. Observamos que, dentre as várias modalidades historicamente constatáveis, já consagradas, existentes no movimento psicanalítico lacaniano, a formação de (e em) pequenos grupos de estudos nos parece o modo mais próximo ao espírito lacaniano da proposição dos cartéis feita pelo próprio Lacan.

Finalmente resta frisar nossa filiação, certamente conhecida por todos vocês, e assim como há Um Pai, há a sua insuficiência enquanto Um, sendo este reportado na fala em pelo menos três dimensões: o Real, o Simbólico e o Imaginário. Assim é que temos Freud por Pai, Pai de toda a horda psicanalítica, o Pai da Lei, morto nesse mês de Setembro, no dia 13, data deste escrito [ Lapso referente à morte do pai, pois a data correta da morte de Freud é a de 23 de Setembro de 1939]; há o pai Lacan, patriarca de mais de uma família, aquele que "autoriza" a prática da análise leiga proposta por Freud, indicando o retorno perene ao Primeiro. Neles reconhecemos nossa origem. Mas há ainda aquele que particularizou de forma singular a transmissão da Psicanálise aqui entre nós, o outro Jacques, mais próximo, e quer isto lhe agrade ou não, agora, em nossa maturidade, reafirmando nossa filiação, adultos, pais também, o cercaremos com nossas atenções filiais, nem que seja para tão somente registrarmos nossa linhagem. Ao Jacques Laberge dedicamos o primeiro exemplar de nossa VEREDAS.

E, mais ainda, na repetição, diferenciada, indicando nossas origens no seu "Projeto" primeiro, retomaremos a partir da próxima semana nossos estudos sobre Literatura e Lendas do Brasil.

A primeira revista, TRAÇO, convalece da sina da primogenitura, que é a de ser devorada. Esperamos que VEREDAS, mais feminina, seja recebida com mais suavidade, sobreviva e procrie. VEREDAS é nossa "ata de fundação", renovável a cada edição.

Passo agora a palavra aos convidados para uma apresentação de leitura crítico-literária de VEREDAS: Ronaldo Brito, antigo companheiro de leituras de nossas lendas e de nossa Literatura, que falará primeiro, seguido por Fernando da Mota Lima, alguém que conhece na pele o que seja produzir uma revista, pois junto a um outro amigo aqui presente, Denis Antônio Bernardes, já confirmado para os comentários sobre o próximo número de VEREDAS, em preparação, ambos certa feita lançaram CENOURA, a qual em muito nos inspirou, o que demonstra haver sementes que germinam. Ronaldo, Fernando e Denis simbolizam nosso desejo por diálogo com a Literatura, a Arte e a História, pelo menos. A seguir poderemos todos conversar sobre o projeto que nos reuniu hoje aqui.

Paulo Roberto Medeiros

Recife, 16 de Setembro de 1993.